Autor:
Lucas Santos Zambon
Doutorado pela Disciplina de Emergências Clínicas Faculdade de Medicina da USP; Médico e Especialista em Clínica Médica pelo HC-FMUSP; Diretor Científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente (IBSP); Membro da Academia Brasileira de Medicina Hospitalar (ABMH); Assessor da Diretoria Médica do Hospital Samaritano de São Paulo.
Última revisão: 15/03/2009
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Impacto hospitalar de uma ficha padronizada para o manejo da sepse grave com bacteremia.
Thiel SW et al. Hospital-wide impact of a standardized order set for the management of bacteremic severe sepsis. Critical Care Medicine 2009; Mar 37(3): 819-824. [Link livre para o artigo].
Apesar de muitos estudos terem dado nova luz ao tratamento da sepse grave e do choque séptico desde 2001(principalmente o trabalho de Rivers publicado no New England Journal of Medicine em 2001 [Link livre para o artigo]), sabemos que a mortalidade da sepse grave chega a 30% (para o choque séptico com disfunção de sistemas isso pode chegar a 70%) ainda hoje. Isso parece estar diretamente ligado com a falta da realização, de forma adequada, daquilo que está preconizado na Surviving Sepsis Campaign [Link livre para o artigo], diretriz internacional publicada em 2004, e que tem o objetivo de fornecer diretrizes baseadas em evidências para o tratamento da sepse grave e do choque séptico.
Este é um estudo retrospectivo, que comparou dois períodos de 18 meses (o primeiro de dezembro de 2003 a maio de 2005 e o segundo de junho de 2005 a dezembro de 2006), um antes e outro após a intervenção em questão (ficha de protocolo para sepse grave que devia ser seguida). Foi realizado em um hospital escola de 1200 leitos em Saint Louis (EUA). A ficha de tratamento é focada na ressuscitação volêmica e na terapia antimicrobiana, conforme as recomendações da Surviving Sepsis Campaign.
Todos os médicos, enfermeiros e demais profissionais que participam da assistência desses pacientes receberam treinamento focado na realização do protocolo na fase da intervenção (principalmente no PS e na UTI do hospital).
Os pacientes incluídos no estudo eram os que tinham sinais de sepse grave e hemocultura positiva. Os autores optaram pela necessidade de bacteremia confirmada por hemocultura com intenção de uniformizar mais os pacientes quanto ao tipo de infecção. Pacientes que morreram com menos de 12 horas do início do choque séptico foram excluídos da análise. Foram excluídos também os pacientes com choque por outro motivo (cardiogênico, obstrutivo, hipovolêmico) e aqueles com ordem para não-ressuscitação.
Os desfechos primários avaliados foram a quantidade de volume administrado e o uso apropriado de antimicrobianos. Os desfechos secundários foram a mortalidade intra-hospitalar e o tempo de internação destes pacientes.
Foram elegíveis 200 pacientes em cada fase do estudo. As características demográficas de base dos pacientes não tinham diferenças significativas. Foram diagnosticados mais pacientes no PS que na UTI na fase “depois” do estudo (o que pode apontar uma melhora no diagnóstico no setor de emergência após o treinamento) e o APACHE II da fase “antes” era pior nos pacientes oriundos do PS (provavelmente decorrente de um manejo menos adequado dos pacientes nesse setor no período antes do treinamento).
Podemos ver com detalhes os desfechos na Tabela 1 e na Figura 1.
Tabela 1: desfechos do Estudo
Desfechos Primários |
Grupo ANTES |
Grupo DEPOIS |
P | |
Volume nas primeiras 12 horas (mL) |
1627 ± 1862 |
2054 ± 2237 |
0,04 | |
1ª dose de antibiótico adequada para o provável foco |
53% |
65,5% |
0,01 | |
Tempo para receber 1ª dose de antibiótico (min.) |
995 ± 1270 |
737 ± 1089 |
0,04 | |
Desfechos Secundários |
Grupo ANTES |
Grupo DEPOIS |
P | |
Tempo de internação (dias) |
28,7 ± 30,1 |
22,4 ± 20,9 |
0,02 | |
Mortalidade geral |
55% |
39,5% |
< 0,01 | |
Mortalidade na UTI |
67,4% |
47,4% |
0,02 | |
Outros Desfechos |
Grupo ANTES |
Grupo DEPOIS |
P | |
Necessidade de vasopressores após ressuscitação inicial |
68,5% |
52,5% |
< 0,01 | |
Incidência de Insuficiência Renal Aguda |
49% |
36% |
< 0,01 | |
Incidência de Insuficiência Cardiovascular |
70,5% |
57% |
< 0,01 | |
Incidência de Insuficiência Respiratória |
70% |
55% |
< 0,01 | |
Análise multivariada para fatores de risco de morte | ||||
Ser tratado no grupo “ANTES” |
OR 1,76 (IC 95% 1,40 – 2,21 / P = 0,01) | |||
Figura 1: Curva de Kaplan-Meier - Probabilidade de permanecer vivo em 28 dias
O grupo “ANTES” é a linha dos triângulos. O grupo “DEPOIS” é a linha dos círculos. Houve maior chance de sobrevida no grupo “DEPOIS” de forma significativa (P < 0,01).
Este estudo mostra que seguir as recomendações da Surviving Sepsis Campaign resulta em maior uso de volume na ressuscitação dos pacientes, bem como maior chance de uso adequado e no tempo correto de antibióticos. Isso impacta diretamente em um menor tempo de permanência hospitalar, uma menor chance de disfunções orgânicas e uma menor mortalidade, principalmente na UTI (há inclusive uma maior chance de sobrevida em 28 dias para os pacientes da intervenção como visto na Figura 1).
Esse mesmo impacto de mortalidade não foi evidenciado em pacientes oriundos de enfermarias, o que mostra que nessas áreas um trabalho focado deve ser feito, visto que são áreas que em geral tem menos pessoas familiarizadas com condutas de urgência como no PS e na UTI.
O foco deste estudo focou principalmente no chamado “Bundle das primeiras 6 horas” para a sepse grave, onde as intervenções mais importantes são a ressuscitação volêmica e o uso precoce e adequado de antibióticos. É possível observar como a melhor adequação quanto a essas intervenções já produz grande impacto. Como são intervenções de grande custo-benefício e aplicáveis a todo e qualquer paciente (diferentemente do uso da drotrecogina-alfa, por exemplo), deveriam ser foco de qualquer instituição. Não foi o foco deste estudo, mas fica fácil imaginar que só pelo fato desses pacientes terem menos disfunções orgânicas (menos disfunção renal cardiovascular e respiratória), o uso de terapias e suporte que tem mais custo também foi menor (diálise, ventilador mecânico, drogas vasoativas em infusão contínua), o que deve diminuir de forma brutal o custo deste paciente durante a internação. É absurdamente óbvio que nenhum custo com educação da equipe (como foi feito nesse estudo) tem como ser maior que a diminuição de custo impactada pela adequação das intervenções, fazendo com que essa conta sempre mostre benefício em se realizar o treinamento focado no protocolo de sepse grave. È de se imaginar inclusive que quanto mais precoce e rápida for a abordagem dos casos de sepse grave, é possível minimizar inclusive as internações em ambiente de terapia intensiva.
Assim como no IAM se busca um “tempo porta-agulha” rápido, assim deveria ser também na sepse grave, doença que tem mortalidade bem maior que a do IAM, e cujo custo de tratamento é até maior quando as medidas iniciais e mais simples (volume e antibiótico) não são feitas de forma adequada.
Infelizmente esse estudo foi feito em um único local, mas é compatível com outros dados semelhantes da literatura, o que o torna aplicável a outras realidades. Outro dado que deve ser lembrado é o design retrospectivo, que pode gerar falhas nos dados obtidos, mas o que não torna os resultados menos impactantes. Também é importante lembrar que os benefícios atingidos podem ter relação com o fato de se estar fazendo um estudo, e que após esse período os profissionais da assistência podem “relaxar” quanto às atitudes preconizadas pelo protocolo. Isso cria a necessidade de monitorizações periódicas em toda instituição que implementar protocolos de forma semelhante, para que os resultados sejam sustentáveis.
Estamos em um momento crítico no sistema de saúde, tanto público quanto privado, onde é necessária uma mudança de paradigmas que favoreçam um pagamento por performance: os hospitais deveriam investir em educação voltada para melhorar o impacto de sua assistência, enquanto que as fontes pagadoras (sejam públicas ou privadas), deveriam favorecer financeiramente quem apresentasse melhores resultados, pois pagar melhor quem trata melhor seus pacientes é infinitamente mais barato para o sistema, do que pagar o custo de todas as complicações decorrentes de uma abordagem falha de doenças graves como a sepse.
1. Rivers E, Nguyen B, Havstad S, et al: Early goal-directed therapy in the treatment of severe sepsis and septic shock. N Engl J Med 2001; 345:1368–1377. [Link livre para o artigo]
2. Dellinger RP, Levy MM, Carlet JM, et al: Surviving Sepsis Campaign: International guidelines for management of severe sepsis and septic shock: 2008. Crit Care Med 2008; 36:296–327[Link livre para o artigo].
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