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Enurese Noturna

Autor:

Márcia Regina de Souza Amoroso Quedinho Paiva

Médica Assistente do Departamento de Pediatria e Puericultura da ISCMSP.

Última revisão: 03/03/2011

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INTRODUÇÃO

A palavra enurese tem origem grega (en-dured) e significa emissão involuntária de urina. É um problema antigo da humanidade, havendo relatos no papiro de Éber em 1550 a.C. Na infância, é um importante problema social e uma das mais comuns e importunas condições infantis.

A continência urinária é uma habilidade adquirida gradualmente e está ligada ao processo normal de maturação. É geralmente iniciada no 2º ano de vida e frequentemente só se completa aos 5 ou 6 anos, sendo que o controle diurno é estabelecido mais cedo (de 1 e meio a 2 anos e meio de idade) do que o noturno (3 a 6 anos).

Existe um nítido fator individual na aquisição desta habilidade, mas, de um modo geral, as meninas atingem o controle mais cedo do que os meninos.

Quando esta maturação não ocorre ou é retardada, aparece a incontinência urinária, com frequência geralmente noturna. Entretanto, pode ser também diurna, acompanhada de outras manifestações clínicas, quando passa então a ser considerada secundária. Nestes casos, representa somente mais um sintoma de doença adjacente.

Apesar de não ser doença grave, a enurese noturna é de tratamento prolongado, muitas vezes difícil e desgastante tanto para os pais como para a criança.

 

DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO

Embora não seja considerada como doença, é motivo frequente de queixas em consultórios médicos e é definida como a perda urinária involuntária durante o sono, mais de 2 vezes/mês, em crianças acima de 5 anos de idade.

A Associação Americana de Psiquiatria definiu enurese noturna como o ato de urinar na cama em criança maior de 5 anos de idade.

Alguns pesquisadores fazem distinção entre incontinência urinária primária e secundária. A enurese noturna pode ser classificada como primária quando a criança nunca chegou a estabelecer completo controle urinário durante a noite (bem mais frequente em meninos); e secundária, quando surge após um período significativo (6 a 12 meses) de controle completo. A enurese secundária geralmente implica perda do mecanismo normal de continência, sugerindo doença de base.

Outra classificação de enurese noturna se baseia na presença ou ausência de outros sintomas da bexiga. A enurese polissintomática seria o urinar na cama em associação com urgência urinária, aumento de frequência ou outros sintomas de bexiga instável. Aproximadamente 15 a 20% dos pacientes com enurese noturna apresentam incontinência urinária diurna, sendo classificados como casos de enurese noturna primária polissintomática.

A forma mais comum é a enurese noturna monossintomática, na qual não existem sintomas diurnos que indiquem disfunção miccional, isto é, a criança não tem urgência para urinar, micções interrompidas ou incontinência diurna. Por conta disso, a enurese monossintomática, por estar associada com urina normal durante o dia, é de mais fácil tratamento quando comparada à secundária.

 

DESENVOLVIMENTO DA CONTINÊNCIA URINÁRIA

A continência urinária representa um processo normal de maturação do sistema anatomofisiológico próprio da criança associado ao condicionamento determinado pela sociedade.

Durante a infância, o ato de urinar é um reflexo espinal de coordenação do esfíncter. A bexiga se enche à baixa pressão, porém sua capacidade de enchimento não está necessariamente coordenada com a contração simultânea do detrusor, o relaxamento do assoalho pélvico e o esvaziamento. O reflexo é coordenado ao nível da formação reticular mesencefálica pontina, sem controle voluntário ou modulação do processo.

Ao nascimento, a função vesical reflexa é coordenada diretamente pela região medular inferior e/ou centros primitivos cerebrais. O esvaziamento vesical é eficiente, porém descontrolado. A diurese do recém-nascido também pode iniciar por estímulos neurológicos como alimentação, banho etc.

Entre 2 e 4 anos de idade, a função vesical é controlada pelos centros supramedulares e centrais e a criança exibe variações do tempo de urinar. Durante este período, inicia-se o treinamento das funções fisiológicas, levando à formação de um hábito social de lugar e hora para urinar.

A modulação consciente da diurese permanece deficiente, podendo uma contração da bexiga produzir diurese em momento e tempo indesejáveis socialmente.

Algumas vezes, a criança evita urinar, pela contração do assoalho pélvico, levando à obstrução da saída da bexiga até que a urgência para urinar desapareça. Esta tentativa de adquirir continência social é feita por mecanismo voluntário de coordenação da vesícula esfinctérica e é logo abandonada. A persistência anormal deste padrão de urinar, após esta faixa etária, leva à enurese disfuncional.

Como citado, o desenvolvimento do controle vesical aparece com a maturação progressiva pela qual a criança primeiro percebe o enchimento vesical e, posteriormente, desenvolve a habilidade para suprimir as contrações voluntárias do detrusor e, finalmente, aprende a coordenar a liberação esfinctérica com as contrações deste músculo.

Com a maturação neurológica e social, a criança mais velha é capaz de reter a urina até que sua bexiga esteja completamente cheia. Não existe mais contração não inibida e a micção é mais bem coordenada com a contração simultânea do assoalho pélvico e do detrusor.

O esvaziamento da bexiga começa, então, pela ativação do músculo detrusor, via sistema nervoso autônomo parassimpático; segue-se a contração da bexiga, o relaxamento do esfíncter externo e, finalmente, a micção.

O controle dos esfíncteres e, em particular, o controle urinário noturno constituem etapas importantes no desenvolvimento neuropsicomotor, que obedece a uma sequência para cada espécie, porém com variação individual decorrente do ritmo de maturação. Esse controle está ligado ao fator genético (familiar hereditário) e a fatores ambientais e psicossociais (estímulo e treinamento).

O controle diurno das micções ocorre entre os 2 e 3 anos de idade e precede o controle noturno que se estabelece entre os 3 e 4 anos, considerando-se (pelo critério estatístico), como limites normais, as idades de 5 anos para meninas e 6 anos para os meninos.

A produção de urina, por sua vez, é regulada pela vasopressina (hormônio antidiurético), produzida no hipotálamo e que se liga aos túbulos por meio de receptores. Quando ocorre o enchimento vesical e a consequente percepção (vontade de urinar), nas crianças com nível adequado de maturidade, a micção é voluntária e pode sofrer adiamento durante o dia ou a criança pode acordar à noite para urinar. Para que isto aconteça, o mecanismo de despertar precisa estar ativo.

Próximo ao centro do despertar, existem também receptores de vasopressina. Tanto a insuficiência de vasopressina quanto a imaturidade de seus receptores implicam aumento da diurese e falha do despertar.

O recém-nascido urina aproximadamente 20 vezes/dia. Durante os primeiros 3 anos de vida, o número de micções por dia diminui aproximadamente para 11 vezes, enquanto o volume urinário aumenta em aproximadamente 4 vezes.

 

Figura 1. Desenvolvimento do ciclo miccional.

> 2 anos = controle centros supramedulares (desejo de micção)

RN até 2 anos = micção reflexa (nível medular)

Aos 4 anos de idade, a maioria das crianças urina cerca de 6 vezes/dia.

 

EPIDEMIOLOGIA

A prevalência da enurese noturna é de difícil estimativa, pela grande variação de definições em vários estratos sociais. Estima-se que 15 a 20% das crianças tenham algum grau de enurese noturna até o 5º ano de vida. Esta porcentagem vai caindo, progressivamente, até 1% aos 12 anos e pode permanecer entre 0,5 e 2% até a idade adulta, como mostra a Tabela 1.

 

Tabela 1. Prevalência de enurese noturna em crianças de acordo com a idade

Idade

% de enuréticos

5 anos

16%

6 anos

13%

7 anos

10%

8 anos

7%

10 anos

5%

12 a 14 anos

2 a 3%

= 15 anos

1 a 2%

 

É usualmente mais frequente no sexo masculino (60% dos que urinam na cama e 90% dos que urinam na cama à noite) do que no feminino, sendo cerca de 2 vezes mais comum em meninos até os 11 anos de idade, quando a incidência torna-se semelhante nos dois sexos.

Segundo Delvin,a incidência da enurese é inversamente proporcional à classe social. Entretanto, não se observa alteração em relação ao local de residência (rural ou urbana) ou tamanho da família. Alguns autores sugerem que a ordem de nascimento pode influenciar, sendo quase metade dos pacientes os filhos “do meio”.

Estudos comparativos têm sido difíceis por conta da não conformidade de conceitos e da faixa etária estudada. No entanto, parece ser verdadeira a existência de diferenças geográficas, decorrentes de raça, cultura e fatores ambientais.

Em estudo realizado por Hamburger et al.,em São Paulo, 11,5% da população entre 7 e 14 anos apresenta enurese e até 1% dos adultos são enuréticos.

A resolução espontânea da enurese noturna tem sido apontada como ocorrendo em torno de 15% dos casos anualmente, com resolução quase completa aos 12 anos. Aos 15 anos, menos de 2% dos pacientes permanecem enuréticos.

 

ETIOLOGIA

Apesar de todo conhecimento adquirido e de sua prevalência, a etiologia ainda permanece desconhecida.

A causa da enurese noturna tem sido muito debatida, porém ainda não é completamente conhecida. O padrão das crianças afetadas é o de uma incapacidade de reconhecer a sensação da bexiga cheia durante o sono e acordar para ir ao banheiro.

Muitas causas foram atribuídas à enurese: poliúria noturna, secreção inapropriada do hormônio antidiurético, alterações do sono pelo despertar difícil e reduzida capacidade funcional da bexiga, principalmente à noite.

A enurese noturna deve ser considerada um atraso no desenvolvimento com base genética (familiar), cuja equação básica é: o volume urinário noturno supera a capacidade da bexiga de retê-lo e a criança não acorda para urinar.

Embora os conhecimentos tenham se avolumado nos últimos anos, para um problema aparentemente simples, ainda não se conseguiu encontrar uma solução.

O conceito atual é que a patogênese da enurese noturna é multifatorial. Trata-se de um atraso do desenvolvimento com base genética poligênica, em que estão envolvidos, em proporções variáveis, três fatores:

 

1.   Poliúria noturna: insuficiência noturna de vasopressina (ADH). Em crianças sem enurese noturna, a produção de urina diminui durante a noite porque a secreção de ADH e outros hormônios reguladores seguem o modelo circadiano, com aumento da secreção durante a noite. Vários fatores relacionados à secreção do ADH em crianças com enurese têm sido utilizados para explicá-la. Estudos iniciais em crianças enuréticas sugerem que existe uma pequena resposta à vasopressina comparada com crianças controle na mesma faixa etária. Isto mostra que esta alteração pode permitir um fluxo urinário noturno suficientemente alto que exceda a capacidade vesical resultando em enurese. Estudos posteriores confirmam esta observação. Outros estudos mostram que crianças com enurese noturna apresentam uma redução na secreção de ADH a qual pode causar aumento da produção de urina durante a noite. O fato é que nenhuma destas observações (redução da resposta ou da produção noturna de ADH) explica o motivo de as crianças não acordarem ao urinar.

2.   Bexiga instável: decorrente da hiperirritabilidade do músculo detrusor que acarreta esvaziamento súbito da bexiga antes de sua repleção. Os dois fatores citados, mesmo juntos, não explicam por que a iminência do ato de urinar não acorda a criança. Daí, a necessidade do terceiro fator.

3.   Distúrbio do despertar: hoje, a enurese noturna é considerada basicamente um distúrbio do despertar com participação variável da insuficiência relativa da vasopressina e da instabilidade da bexiga, tendo como pano de fundo a hereditariedade.

 

Alguns autores têm sugerido outros fatores além da disfunção vesical e distúrbios do sono, como por exemplo: reação alérgica, malformações geniturinárias, fatores socioeconômicos, psicológicos e genéticos.

Dessa forma, a etiologia da enurese é caracterizada por uma interação entre os diversos fatores citados a seguir.

 

Fatores Genéticos

Atualmente, sabe-se que a enurese noturna pode se manifestar em associação a fatores predisponentes hereditários, pois, na maioria das crianças, existe história familiar. Se um dos pais teve enurese noturna, a probabilidade de enurese no filho é de 45%. Se os dois pais apresentavam o problema, a probabilidade aumenta para 77%. Por outro lado, apenas 15% das crianças são afetadas quando nenhum dos pais teve enurese.

A ocorrência em gêmeos idênticos é de 68%, sendo mais alta do que em gêmeos não fraternos (36%). A frequência e a duração da enurese também são semelhantes em membros da mesma família. A hereditariedade é fator causal, o que foi confirmado pela identificação de genes determinantes da enurese noturna primária em diferentes cromossomos.

Estudos genéticos definiram diferentes loci ou “intervalos cromossômicos”, nos cromossomos 12, 13, 14 e 22. Este fenômeno é conhecido como lócus heterogêneo e significa que genes em diferentes cromossomos podem manifestar a mesma disfunção.

Alguns estudos genéticos moleculares mostram claramente que a enurese noturna é doença complexa, com diferentes loci levando ao mesmo fenótipo sem haver uma clara definição de associação genótipo-fenótipo.

 

Atraso de Maturação

Apesar de ser a causa mais habitualmente aceita de enurese noturna primária, é a mais difícil de ser provada. Afirma-se que a imaturidade funcional do sistema nervoso central resulta em diminuição da percepção sensorial do enchimento vesical e na incapacidade de inibir o esvaziamento da bexiga, além de poucos mecanismos de censura. Os defensores desta teoria advogam a cura espontânea com o aumento da idade, o que confirmaria tal hipótese.

 

Alterações do Sono

É controverso que as anormalidades no padrão do sono contribuem para a enurese. O padrão do sono em pacientes com enurese é muito variável, sendo, por isto, difícil de interpretar. Os pais geralmente referem que estas crianças não acordam com facilidade na presença de barulho.

Wolfish confirma esta teoria relatando que crianças com enurese acordam com barulho em 8,5% do tempo e aquelas sem enurese acordam em 40% do tempo.

Em um estudo feito num laboratório de sono com 33 meninos com idades entre 7 e 12 anos (15 com enurese e 18 da mesma idade como grupo controle), o esforço de despertar foi melhor realizado pelo grupo controle do que pelos meninos com enurese (40% versus 9%). Além disso, o sono profundo parece contribuir para o aparecimento da enurese noturna tanto em adolescentes como em adultos.

Estudos do sono mostram que o padrão de sono em crianças com e sem enurese é similar. Estes estudos indicam que episódios enuréticos podem ocorrer completamente ao acaso na noite, mas primariamente durante a fase de movimentos lentos dos olhos (fase não REM). O EEG do sono mostra relação entre enurese e ondas cerebrais lentas em crianças.

Ao contrário, outros investigadores demonstram que a micção noturna pode ocorrer em diferentes fases do sono e que estas crianças apresentam padrão de sono normal. Esta controvérsia permanece até hoje sem uma definição.

A enurese noturna também se associa a episódios de apneia obstrutiva do sono em crianças com obstrução da via aérea superior. Os episódios de enurese diminuem após a correção da obstrução por adenoidectomia ou amidalectomia.

 

Causas Psicológicas

O fator psicológico é um dos principais aspectos a serem considerados na gênese da enurese noturna, ao lado de fatores biológicos e do meio ambiente, que também podem influenciar. Dados que contribuem para essa teoria é que a enurese noturna é comum em famílias de pais que estão desempregados, distúrbios matrimoniais, dificuldades financeiras e morte recente na família, onde prevalece um ambiente de estresse.

Sabe-se também que a enurese noturna monossintomática primária é causa de problemas psicológicos em crianças, com risco relativo 1,3 a 4,5 vezes maiores do que as crianças não enuréticas. Estudos mostraram, por exemplo, que 35% das enuréticas dizem que são muito infelizes, e outro trabalho relacionado aos aspectos psicológicos mostrou que 70% das crianças de 5 a 11 anos de idade indicavam claramente que molhar a cama era uma grande desvantagem em relação aos seus colegas, do ponto de vista social e afetivo, denotando um sentimento de isolamento e sensação de frio e umidade em relação ao seu corpo.

O impacto dos problemas psicológicos se manifesta, no geral, pela má adaptação ao tratamento. Por outro lado, a enurese pode, por si só, ser acompanhada de baixa autoestima e problemas psicológicos secundários.

 

Capacidade Vesical Funcional Reduzida

Alguns estudos demonstram que a capacidade funcional da bexiga é pequena em pacientes com enurese noturna. Estes achados têm sido questionados por outros investigadores. Se a bexiga é pequena, os pacientes podem também manifestar outros sintomas, como frequência diurna de diurese aumentada e urinar na cama todas as noites ou ocasionalmente, mas várias vezes durante uma mesma noite.

A capacidade vesical reduzida parece ser mais funcional do que anatômica. Isto já foi demonstrado em alguns estudos.

Alguns autores observaram que a capacidade vesical máxima durante o dia era similar em crianças com e sem enurese. Entretanto, entre as crianças com enurese, o volume máximo urinário eliminado durante a noite foi significativamente menor do que sua capacidade vesical máxima diurna, sugerindo uma inabilidade em segurar a urina durante o sono nos pacientes com enurese noturna.

 

Instabilidade do Detrusor

Estudos urodinâmicos em crianças com incontinência urinária diurna demonstram uma significante variedade de anormalidades funcionais do detrusor. Por outro lado, não está claro qual o padrão da anormalidade urodinâmica encontrada em crianças com enurese noturna primária monossintomática. Todavia, a disfunção vesical pode ser considerada em crianças com enurese noturna primária refratária.

A maior parte dos estudos sugere que a incidência da inabilidade vesical em crianças com enurese noturna monossintomática primária é semelhante à incidência em crianças normais (entre 3 e 5%). Entretanto, crianças com enurese noturna primária podem apresentar um defeito no ritmo circadiano de inibição do detrusor.

Quando o estudo urodinâmico foi realizado durante o sono, a única diferença entre crianças enuréticas e não enuréticas foi o aumento de contrações vesicais que ocorrem associadas a episódios de enurese. Juntamente a isso, estudos urodinâmicos durante o sono demonstraram uma relação entre a enurese noturna com a atividade do assoalho pélvico.

 

Outras

Outras causas associadas à enurese devem ser lembradas, como constipação, diabete melito ou insípido, hiperatividade e disfunção neurológica, assim como o abuso sexual em crianças.

 

DIAGNÓSTICO

Uma causa orgânica da enurese só é detectada em 2 a 3% dos pacientes. Outros 5 a 10% das crianças apresentam enurese polissintomática, que requer terapia específica. Vale ressaltar que o diagnóstico de enurese noturna primária é de exclusão, devendo ser afastadas outras causas de não controle da urina.

Na avaliação armada da enurese orgânica, é importante que se considere a idade do paciente, a severidade do problema, a percepção da seriedade da doença pela família e a aceitação do tratamento.

Uma história detalhada e o exame físico cuidadoso iniciam uma investigação de enurese, incluindo-se história familiar, duração e gravidade do quadro. O exame físico deve ser direcionado para excluir alterações neurológicas ou do trato geniturinário.

 

História

Para o diagnóstico clínico de enurese noturna, assim como para qualquer outra patologia, é fundamental que seja realizada uma minuciosa anamnese e também um exame físico criterioso e detalhado.

É importante que o médico detalhe a presença de incontinência urinária durante o dia, além do quadro noturno. Perguntar sobre os períodos em que a criança se mantém com a roupa seca e/ou úmida.

O diário miccional é solicitado aos pais para certificar sobre a frequência urinária diurna e os eventos enuréticos por semana. A avaliação com diário miccional por 2 a 3 dias é satisfatório para a maioria dos casos.

De grande importância, a história miccional diurna afasta a possibilidade da ocorrência de disfunção miccional na criança, o que caracteriza outro quadro clínico, de investigação diferenciada. Portanto, é de suma importância perguntar sobre o tipo de enurese (só noturna ou diurno-noturna), primária ou secundária, horário em que molha a cama (até 3 horas após se deitar ou amanhecer), número e volume das diureses, qualidade do jato urinário (fraco, forçado, interrompido, em gotejamento, urgência), tempo de intervalo entre uma micção e outra, dificuldades em iniciar, manter ou interromper o jato urinário, sensação de esvaziamento vesical incompleto, disúria, polaciúria, poliúria, história familiar de enurese, ambiente psicossocial etc.

A ingestão de líquidos e alimentos sólidos durante o dia deve ser anotada. Muitas crianças ingerem quantidades elevadas de líquidos antes de dormir, favorecendo a ocorrência da enurese noturna.

História de disúria, enurese intermitente diurna, polidipsia, poliúria, trauma do sistema nervoso central, obstipação intestinal e encoprese levam à indicação de tratamento médico. O manuseio cirúrgico pode ser considerado em pacientes que urinam constantemente – ureter ectópico, jato de urina anormal, com dificuldade ou baixo fluxo (válvula de uretra posterior).

Na anamnese, também devem constar dados sobre a história clínica da criança, por exemplo, a presença de roncos e apneia do sono (hipertrofia de adenoide), diabete, anemias hemolíticas, infecção do trato urinário (anterior e atual: febre, disúria, polaciúria, dor lombar), alterações neurológicas ou de marcha (neoplasia de medula), assim como alterações relacionadas ao trato intestinal.

A história familiar ou psicossocial é muito importante para determinar a atitude dos pais e da criança, visando a selecionar uma terapia apropriada. É importante que o médico seja informado sobre a história social familiar da criança e como a família e a própria criança reagem e lidam com o fato da enurese.

 

Exame Físico

Nas crianças com enurese noturna monossintomática noturna, o exame físico é habitualmente normal. O médico pediatra, no entanto, deve estar atento a certas particularidades que auxiliam, algumas vezes, no diagnóstico da provável etiologia da enurese noturna.

O exame físico deve incluir inspeção detalhada da genitália (para afastar meatites, vulvites, adesão labial ou sinais de abuso sexual), assim como a análise da região perianal (presença de escoriações) que pode indicar a presença de parasitoses intestinais (enterobíase e tricuríase), palpação e percussão abdominal (bexiga distendida, acúmulo de fezes) e avaliação do sistema neurológico. O exame detalhado da marcha da criança, tônus muscular, força e reflexos profundos da extremidade inferior podem revelar causa neurológica.

A inspeção da região lombossacral pode identificar desvios de simetria, assim como excluem estigmas cutâneos de disrafismos como hipertricose, sulco interglúteo alterado, lipomas etc. Se possível, seria interessante a avaliação do jato urinário com a posterior percussão e palpação abdominal a fim de avaliar o esvaziamento completo ou não da bexiga.

Também é importante observar a respiração bucal do paciente, que ocorre em criança com hipertrofia adenoidea. Esses pacientes podem urinar durante a apneia do sono, sendo indicada, nestes casos, a adenoidectomia

 

Investigação Laboratorial

Se a história clínica mostra uma enurese noturna monossintomática primária, não existe obrigatoriedade de se ampliar a investigação com outros exames, como a avaliação do fluxo urinário ou a realização de exames de imagem do trato urinário. Nos casos típicos de enurese noturna (não complicada) primária, história familiar positiva e exame físico normal, a rigor, nenhum exame é obrigatório, mas convém solicitar, pelo menos uma vez, exame de urina comum (tipo I ou sumário), urocultura, ultrassonografia de rins e vias urinárias, ureia e creatinina.

As seguintes investigações são úteis para detectar a causa de enurese e exclusão de todas as causas de enurese noturna secundária:

 

1.   Urina tipo I: investiga diabete melito; densidade > 1015 exclui diabete insípido. Pode também auxiliar no diagnóstico de outras patologias, como cetoacidose diabética, intoxicação hídrica e/ou sugerir infecção do trato urinário.

2.   Glicemia de jejum: para diagnóstico de diabete melito.

3.   Cultura de urina: em presença de sintomas de infecção do trato urinário ou em paciente com história de infecção urinária pregressa.

4.   Estudos radiológicos: não são necessários em todas as crianças com enurese noturna primária. Realizados em criança com história de infecção urinária, para excluir anormalidades estruturais associadas.

5.   Uretrocistografia miccional: é necessária em crianças com sintomas de obstrução do trato urinário ou bexiga neurogênica.

6.   Ultrassonografia vesical (pré e pós-miccional): está indicada em crianças com enurese diurna, falta de resposta à terapia e para que se exclua o enchimento parcial da bexiga. A ultrassonografia pode ser realizada para estimar a capacidade vesical. Em crianças com suspeita de bexiga hiperativa, alguns autores indicam a realização de exame urodinâmico, porém o assunto é controverso, por caracterizar exame invasivo.

7.   Determinação da capacidade vesical: parte importante na avaliação da criança que urina na cama, sendo com frequência desprezada. Pode ser facilmente realizada pedindo-se à criança que beba 300 mL de água e medindo-se o volume de urina na diurese seguinte.

 

Portanto, na coexistência de sintomas urinários (menos de 5% dos casos) ou alterações sugestivas no exame de urina, lembrar de pedir dosagens de ureia e creatinina, ultrassonografia renal e uretrocistografia miccional.

A avaliação neurológica é indicada quando existirem manifestações neurológicas concomitantes e a avaliação psicológica deve ser solicitada quando a anamnese mostrar dados sugestivos de distúrbios emocionais (primários ou secundários).

 

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

Outras causas de enurese noturna devem ser consideradas em crianças:

 

     incontinência urinária decorrente de problemas neurológicos (bexiga neurogênica) ou urológicos (anomalias do trato urinário);

     enurese complicada ou polissintomática: enurese associada à disfunção miccional diurna com infecções urinárias de repetição, constipação intestinal e encoprese;

     poliúria acentuada como no diabete melito e insípido;

     doenças orgânicas: anemia falciforme, diabete melito e insípido, hipertireoidismo etc.;

     insuficiência renal crônica;

     disrafia espinal;

     obstrução de vias aéreas superiores (apneia do sono);

     parasitoses intestinais (enterobíase e tricuríase);

     polidipsia psicogênica.

 

TRATAMENTO

Atualmente, diversas formas terapêuticas têm sido utilizadas, entretanto, com diferentes resultados, como o treinamento vesical, o condicionamento do comportamento, uso de drogas para o aumento da capacidade funcional da bexiga, antidiuréticos, alarmes e até anti-inflamatórios.

O envolvimento da família, principalmente da mãe, é de crucial importância para o sucesso do tratamento. É igualmente importante a criança sentir-se parte do tratamento. Deve-se, sempre que possível, recompensar a criança, incentivando e valorizando seus acertos, ou seja, os dias que não urinou durante o sono.

As falhas terapêuticas parecem decorrer sobretudo da falta de cooperação da mãe ou, ainda, da superproteção da criança. É óbvio que cada caso deve ser analisado individualmente, levando-se em conta os sentimentos da criança e a dinâmica da família. Em nossa cultura, frequentemente, a enurese causa distúrbios emocionais que são consequência, e não causas, da enurese e funcionam como estressor crônico, com efeitos negativos na personalidade. A autoestima costuma melhorar com o tratamento e, geralmente, não há substituição por outro sintoma.

Uma vez decidida a intervenção, pode-se pensar em algumas formas de abordagem que não são necessariamente desvinculadas e que costumam ser utilizadas concomitantemente na prática clínica rotineira.

O tratamento da enurese noturna primária pode ser dividido em duas categorias maiores: tratamento farmacológico e não farmacológico.

 

Métodos Não Farmacológicos

Incluem terapia motivacional, modificações da conduta, treinamento da bexiga, dieta e terapia. O tratamento de todos os casos deve começar com medidas comportamentais/motivacionais: a criança deve imaginar a intenção de acordar e ir ao banheiro. Se ela não consegue acordar sozinha, usar um despertador regulado para 3 horas após a hora de deitar e os próprios pais acordam a criança. O melhor enfoque dessa terapia é o “método da responsabilidade e reforço”, em que a criança é encorajada a assumir grande parte da responsabilidade por seu próprio aprendizado, ao mesmo tempo em que recebe apoio emocional e reforço positivo dos pais, o que inclui, por exemplo, o “calendário de estrelas”, em que a criança marca todas as noites secas e recebe uma recompensa por elas. Completar com exercícios de assoalho pélvico: exercícios de interrupção do jato urinário (manobra de Kegel).

 

Terapia Motivacional

Envolve conversas com a criança e seus pais, promovendo suporte emocional. A criança deve ser incentivada a cada noite que não molha a cama. A terapia motivacional é uma boa abordagem de primeira linha, especialmente na criança menor. Estima-se que a taxa de resolução com esta terapia seja de 25%, porém cerca de 70% das crianças apresentam melhora.

O tratamento da enurese pode durar um período prolongado, assim, tanto as crianças como os pais devem ser orientados e motivados para a tentativa de cura do problema. Casais separados, nível socioeconômico precário, pais impacientes e crianças com problemas comportamentais requerem outras formas de atuação e podem corresponder a grupos de difícil controle.

Como recurso simples e de grande valor, utiliza-se um calendário com elementos que alegram a criança, como estrelas douradas ou adesivos em forma de sol, colados no dia em que a criança não urinou na cama, auxiliando no processo educacional e motivador.

Sem dúvida, o sucesso do tratamento envolve a capacidade do médico em manter a família e a criança motivadas e cooperativas com o tratamento, que pode se prolongar por meses.

 

Programas de Acordar

As crianças maiores devem entender que cada noite sem urinar na cama representa uma noite em que devem levantar para urinar. Uma técnica de autoacordar é ensaiar uma sequência de eventos antes de ir dormir, nos quais a criança pretende ser acordada rapidamente no meio da noite se a bexiga estiver cheia e começar a doer. Uma abordagem similar pode ser adotada sob forma de ensaio durante o dia. Outros autores recomendam a auto-hipnose, com a sugestão de levantar e ir ao banheiro durante a noite. Os pesquisadores têm relatado taxa de 77% de cura com esta abordagem. Em caso de falha da técnica de autoacordar, os pais devem despertar a criança. Deve-se ressaltar que os pais não devem carregar a criança até o banheiro, mas que ela deve ser acordada para fazê-lo. Azum recomenda uma técnica trabalhosa: acordar a criança a cada hora, até 1 hora da madrugada. Se ela estiver seca, deve ser estimulada a urinar. Se estiver molhada, deve ser encorajada a trocar a roupa de cama. Na noite seguinte, a criança é acordada com até 3 horas de sono. Este intervalo é gradualmente diminuído até que seja acordada uma hora após ter dormido. Depois da 6ª noite, a criança deve acordar sozinha. Segundo os autores, a taxa de cura é de 92%.

 

Correção do Hábito Miccional (Uroterapia)

O risco de enurese noturna aumenta quando a criança não esvazia a bexiga por 8 horas durante o dia e é exposta a um volume urinário elevado à noite. É importante orientar a criança a realizar o ato miccional a cada 3 a 4 horas durante o dia (com intervalo marcado), antes de deitar e ao acordar.

 

Treinamento Vesical

A maioria das crianças com enurese noturna tem uma capacidade funcional vesical reduzida. Em crianças com bexiga pequena, o uso de técnicas de retenção de urina durante o dia – como incentivá-las a prender a urina pelo maior tempo possível – ajuda no aumento da capacidade da bexiga, favorecendo maiores períodos noturnos sem urinar. O treinamento vesical é efetivo no aumento da capacidade vesical. Entretanto, não está claro que o aumento da capacidade vesical afete a enurese noturna ou a resposta ao tratamento com o alarme noturno. Em alguns artigos, a terapia de treinamento vesical tem sido relatada como um importante fator de melhora (redução da enurese em mais de 80%) em 60% dos pacientes. Também tem sido avaliado o sucesso da melhora da enurese noturna (definida como 14 noites consecutivas sem molhar a cama) em 45% dos pacientes. Entretanto, alguns estudos randomizados encontraram que o aumento da capacidade vesical não está relacionado à resposta ao tratamento (definido como = 1 noite seca em 28 dias avaliados).

Uma revisão sistemática de simples intervenções físicas e comportamentais para enurese noturna em crianças não foram suficientes para avaliar a retenção vesical, seja cada uma delas isoladas, em associação ou adicionadas a outras intervenções.

Entretanto, a realização de exercícios para treinamento vesical é recomendada antes da utilização de alarmes e tratamento farmacológico, pois estes últimos exigem um maior esforço e têm mais efeitos colaterais.

 

Sistema de Alarme

Deve ser considerado como terapia aplicável a todos os pacientes com enurese noturna monossintomática. As recomendações para uso de alarme no tratamento da enurese são baseadas nos mais altos níveis da medicina baseada em evidências (nível 1, grau de recomendação A).

É constituído por um detector de umidade (costurado no pijama ou sob o lençol) e um despertador colocado junto ao ombro. Aos primeiros sinais de umidade, o despertador toca, a criança deve ir andando e terminar de urinar no banheiro. No início, a criança só acorda quando está bem molhada, progressivamente acorda mesmo seca e depois consegue dormir toda a noite sem molhar a cama. Isso se deve a uma resposta condicionada de despertar e de inibição da bexiga que é estabelecida pela associação com a distensão vesical. Possivelmente o alarme influencie, também, no ganho de capacidade funcional da bexiga.

O processo exige participação da família (fundamentalmente no início do tratamento) e treinamento da criança. É importante ressaltar que os familiares devem participar ativamente do uso do alarme, não só em relação à motivação da criança, mas quanto ao ato de acordá-la quando necessário.

O efeito é mais lento, mas uma vez conseguido o condicionamento, o índice de recaídas é muito menor e pode requerer novos períodos (mais curtos) de treinamento.

O alarme deve ser utilizado por vários meses antes de ser considerado como alternativa falha. Uma vez que a criança consiga o controle urinário, o alarme deverá ser continuado por mais 1 mês. A recidiva pode ocorrer, porém com taxas inferiores às observadas em tratamentos farmacológicos.

Quando ocorre falha no tratamento com o uso do alarme, a principal causa é a dificuldade de despertar da criança ou a falta de apoio dos familiares em relação à sua utilização.

Baseado em estudos da Sociedade Internacional de Continência em Crianças, o uso do alarme urinário parece ser a modalidade mais eficiente de tratamento da enurese noturna, atingindo 79% de sucesso.

 

Figura 2. Sistema de alarme.

 

Hipnoterapia, Psicoterapia e Dietoterapia

Não têm sido extensamente estudadas. A hipnoterapia e a psicoterapia têm obtido sucesso em poucos estudos.

A psicoterapia pretende a possibilidade de, utilizando os instrumentos psicológicos, compreender os sintomas como possibilidade de expressão da criança, proporcionando-lhe alternativas para essa expressão. A atuação psicoterápica pode ser estendida à família ou ser exclusiva dela.

A dietoterapia foi bem-sucedida em alguns pacientes no tratamento da enurese induzida por alimentos, entre os quais se incluem produtos contendo cafeína, produtos lácteos, chocolates, frutas cítricas e sucos. Alguns autores recomendam que pacientes com enurese bebam 40% do líquido diário pela manhã (das 7 ao meio-dia), 40% à tarde (das 12 às 17 horas) e somente 20% à noite (após as 17 horas).

 

Métodos Farmacológicos

Muitas drogas têm sido utilizadas para o tratamento da enurese noturna. Nenhum destes agentes produz cura definitiva, porém podem proporcionar um intervalo sem sintomas até que a criança seja capaz de acordar à noite para urinar.

Em geral, reserva-se a terapia com drogas para crianças que não responderam a outras opções de tratamento.

É um tratamento substitutivo e não curativo, isto é, suprime os sintomas, mas o índice de recaídas é muito alto após a suspensão da medicação. O índice de curas só é ligeiramente superior ao índice de cura espontânea e é melhor quando se associa terapia comportamental.

Podem ser utilizados os antidepressivos tricíclicos (imipramina e amitriptilina), anticolinérgicos (oxibutinina), desmopressina (análogo da vasopressina) e estudos recentes referem também que o uso de indometacina pode ser benéfico no tratamento da enurese.

Há tentativas de explicação do funcionamento dos antidepressivos no sintoma da enurese. As principais são as seguintes:

 

     efeito antidepressivo (alguns autores acreditam que a enurese é um equivalente depressivo);

     ação estimulante sobre o SNC, diminuindo a profundidade do sono;

     atividade anticolinérgica, aumentando a tonicidade do esfíncter vesical, atuação que determina a possibilidade de maior volume de urina ser contido pela bexiga antes que se produza o reflexo de esvaziamento.

 

A eficácia de cada uma das abordagens vai encontrar adeptos ou não de acordo com o autor, o método e a população estudada.

 

Antidepressivos Tricíclicos

Têm sido muito estudados no tratamento da enurese noturna desde 1960. Embora a imipramina seja a droga mais usada, outros antidepressivos tricíclicos também vêm sendo utilizados.

Seu mecanismo de ação inclui a alteração do sono e dos mecanismos de acordar, efeitos na inervação simpática da bexiga, relaxamento do músculo detrusor e estímulo da secreção de ADH.

Os modos de ação mais plausíveis e prováveis são a ação anticolinérgica de aumento da capacidade da bexiga e o efeito noradrenérgico de diminuir a excitabilidade vesical.

A imipramina deve ser administrada de 1 a 2 horas antes de dormir, e seu efeito tem duração de 8 a 12 horas. A dose inicial é de 0,8 a 0,9 a 1,5 mg/kg/dia. Normalmente, a dose utilizada é de 25 mg para crianças entre 5 e 8 anos de idade e 50 mg para crianças maiores (8 a 12 anos) e 75 mg para adolescentes. Se a resposta não for satisfatória após 1 a 2 semanas, a dose pode ser aumentada para 50 mg em crianças de 7 a 12 anos e para 75 mg em crianças maiores, não devendo estas doses serem excedidas. Alguns autores usam como dose máxima 50 mg para qualquer faixa etária. O efeito terapêutico da imipramina é rápido se a dose estiver adequada.Seu uso deve ser descontinuado se não houver melhora após 3 semanas de tratamento e pode ser retirado abruptamente.

O sucesso do tratamento com antidepressivos tricíclicos varia consideravelmente. Numa revisão sistemática, comparado com placebo, o tratamento com tricíclicos ou drogas correlatas associou-se a uma redução de aproximadamente 1 noite seca/semana em aproximadamente 1/5 das crianças que permaneceram secas durante o tratamento (14 noites seguidas). Os antidepressivos tricíclicos e a desmopressina tiveram efeito similar durante a terapia. Entretanto, o tratamento não se manteve após a suspensão de ambos os medicamentos. Aproximadamente 75% das crianças tratadas com antidepressivos tricíclicos apresentaram recidiva do quadro após a suspensão do medicamento.

Vários estudos controlados e duplo-cegos usando imipramina relatam taxa de cura de 10 a 60%, com recidiva de 90% com a suspensão da droga. A duração ótima da terapia ainda não foi determinada, porém achados empíricos sugerem o uso por 3 a 6 meses, diminuindo-se a dose progressivamente em 25 mg/vez, por 3 a 4 semanas. A baixa taxa de efeito tóxico terapêutico da imipramina é um fato já estabelecido.

Nas doses habituais, os antidepressivos tricíclicos têm poucos efeitos colaterais, por exemplo: boca seca, distúrbios do sono, ansiedade, nervosismo, constipação, alterações da personalidade, taquicardia ventricular, coma e convulsões. Os efeitos colaterais da imipramina são incomuns. Aproximadamente 5% das crianças tratadas com antidepressivos tricíclicos desenvolvem sintomas neurológicos incluindo nervosismo, alterações de personalidade e distúrbios do sono. O efeito colateral mais sério dos antidepressivos tricíclicos envolve o sistema cardiovascular, incluindo o risco de distúrbios de condução e depressão miocárdica, principalmente em casos de overdose. É importante advertir contra a ingestão acidental por crianças, com consequências graves (arritmia cardíaca, depressão respiratória, convulsões, alucinações).

 

Acetato de Desmopressina (DDAVP)

É um análogo sintético da arginina vasopressina (hormônio antidiurético), com efeito antidiurético específico no tubo distal e duração de ação estendida. Substitui o hormônio antidiurético; seu efeito é rápido e tem poucos efeitos adversos nas doses habituais. Em doses altas, pode ocasionar intoxicação hídrica e convulsões. Seu mecanismo de ação na enurese noturna ainda não está bem estabelecido.

A desmopressina é especialmente útil em pacientes com perda do ritmo normal de produção de ADH (normalmente, as crianças apresentam aumento noturno da produção de ADH, o que as permite dormir por um período maior).

Pode ser utilizada por via oral e intranasal por meio de spray de dose única. Esta última formulação está associada a um aumento no risco de hiponatremia e não está indicada em tratamentos prolongados de enurese, apesar de ser bem tolerada e absorvida pela mucosa nasal. É rapidamente absorvido, com picos de ação de 45 minutos e meia vida de 4 a 6 horas. A dose inicial para todas as idades é 20 mcg (um jato em cada narina).

Alguns autores afirmam que a forma nasal é pouco efetiva no tratamento da enurese, dando-se preferência ao tratamento por via oral. A dose por via oral preconizada inicialmente para crianças menores, com até 30 kg, é de 0,1 mg (10 mcg) por via oral, uma hora antes de dormir, podendo-se aumentar esta dose até 0,4 mg. Em crianças maiores (acima de 30 kg), a dose inicial preconizada é de 0,2 mg, podendo chegar ao máximo de 0,6 mg. Orientamos restrição hídrica, via oral, por 2 horas antes da ingestão do medicamento e urinar antes de dormir.

A resposta à terapia é avaliada após 2 semanas, podendo a dose ser aumentada em 10 mcg/semana ou a cada 10 dias, até o máximo de 40 mcg (crianças menores) e 60 mcg em pacientes com mais de 12 anos (ou acima de 30 kg), como citado anteriormente. Após 4 a 6 semanas, deve-se reavaliar a resposta ao tratamento. Naqueles pacientes que continuam sem urinar na cama com determinada dose, deve ser tentada uma dose 10 mcg menor.

Quando obtemos sucesso com a droga, mantemos o tratamento por pelo menos 3 a 4 meses, porém o tempo ideal de tratamento ainda não está bem estabelecido. Caso não haja resultado após este período, a interrupção do tratamento pode ser feita de forma abrupta podendo estar ou não associada com alta incidência de recidiva. Sendo assim, alguns autores preferem a redução progressiva da dose em intervalos de 10 mcg por mês.

Além da poliúria, fatores preditivos da resposta à desmopressina são menos noites sem urinar (< 3 noitessemana), apenas um evento por noite, idade de 8 anos ou mais e resposta sustentada à pequena dose de DDAVP (20mcg intranasal ou 0,2 mg via oral).

Os efeitos colaterais da desmopressina são pouco importantes, incluindo dor de cabeça, dor abdominal, náusea e desconforto nasal. Raros casos de hiponatremia sintomática foram relatados. Assim, é recomendável que o sódio sérico seja dosado periodicamente.

A droga é contraindicada em pacientes com polidipsia, hipertensão ou doença cardíaca.

A terapia por longo tempo com DDAVP em geral se mostra segura. A eficácia da desmopressina em vários estudos bem controlados tem sido ao redor de 70%.

A desmopressina pode ser usada, quando indicada, em pacientes que respondem a este tratamento e necessitam de alívio temporário dos sintomas, ou então em crianças em difícil situação psicológica. O maior fator limitante ao uso da desmopressina é seu custo elevado.

 

Drogas Anticolinérgicas

Hioscinamida e oxibutinina não são efetivas no tratamento da enurese noturna monossintomática. Entretanto, estes agentes podem ser utilizados em crianças que apresentem urgência miccional e incontinência urinária diurnas.

A utilização de drogas anticolinérgicas é indicada somente nos casos em que há suspeita de hiperatividade do detrusor e especialmente em crianças cuja resposta ao alarme e/ou à desmopressina é insatisfatória. Drogas anticolinérgicas promovem efeito anticolinérgico espasmódico, com relaxamento da musculatura lisa e diminuição da capacidade de contração.

A oxibutinina é um parassimpático, indicado apenas nos casos de enurese diurna e como coadjuvante nas enureses diurno-noturnas. É ministrada em doses de 5 a 10 mg, em crianças maiores de 5 anos de idade, e também deve ser dada à noite. Alguns autores preconizam utilizar inicialmente 2,5 mg 2 vezes/dia. Após 1 semana, se necessário, aumentar para 5 mg 2 vezes/dia em crianças maiores, entre 7 e 10 anos de idade. A duração do tratamento é de 3 a 4 meses. Após este período, testar a retirada do medicamento e reintroduzi-lo, se necessário. É possível repetir a tentativa a cada 3 meses.

A hioscinamida é fornecida em cápsulas de liberação lenta, devendo ser administrada por 8 semanas. Relatos não controlados indicam resposta favorável. A dose da forma de liberação estendida é de 0,375 mg, administrado à noite.

Efeitos colaterais dos anticolinérgicos incluem boca seca, rubores, visão turva, midríase, insônia, constipação e fraqueza.

Como já previamente citado, em estudos recentes e bem controlados, a oxibutinina não aumentou o número de noites sem urinar na cama em crianças com enurese noturna primária. Talvez se obtenham bons resultados em crianças com enurese noturna polissintomática.

 

Indometacina

Embora seja usada raramente, um pequeno estudo randomizado utilizou supositório de indometacina e placebo e observou aumento significante de noites sem enurese em crianças maiores de 6 anos de idade. Com enurese noturna primária que foram tratadas por 3 semanas (9 versus 4 noites secas). Nenhum efeito colateral foi relatado. Os mecanismos de ação possíveis incluem a remoção do efeito inibitório das prostaglandinas na resposta da vasopressina e a melhora na função vesical.

 

Outras Drogas

Fenmetrazina, sulfato de anfetamina, efedrina, atropina, furosemida, diclofenaco e clorprotixina são drogas que têm sido testadas. Uma revisão randomizada de outras drogas além dos tricíclicos e desmopressina no tratamento da enurese noturna demonstrou que, embora a indometacina e o diclofenaco sejam melhores do que o placebo, nenhuma das drogas foi melhor do que a desmopressina.

 

Tabela 2. Drogas utilizadas no tratamento da enurese noturna

Medicamento

Nome comercial

Apresentação

Dose utilizada

Imipramina

Tofranyl®

Drágeas: 10 e 25 mg

Cápsula: 75 mg

1,5 mg/kg/dia

Máximo: 75 mg à noite

DDAVP

DDAVP®

Comprimidos de 0,1 e 0,2 mg

0,2 mg/dia

Máximo: 0,3 mg à noite

Oxibutinina

Retemic®, Incontinol®

Comprimidos de 5 e 10 mg

Solução 1 mg/mL

0,4 mg/kg/dia, em 2 vezes

Máximo: 15 mg/dia (em 3 vezes)

 

Alternativas Terapêuticas e Complementares e a Escolha da Modalidade de Tratamento

Uma revisão de tratamentos complementares como a hipnose, psicoterapia e acupuntura encontrou evidências limitadas no suporte de cada uma destas modalidades para o tratamento da enurese noturna. A escolha da modalidade de tratamento deve ser feita após avaliação de custo, eficácia, efeitos colaterais e taxas de recidiva associadas com vários tratamentos.

O alarme da enurese parece ser a modalidade mais eficaz por propiciar cura permanente. O custo é baixo e não existem efeitos colaterais. As drogas são úteis por pequenos períodos, sendo apropriadas para uso intermitente em crianças menores de 8 anos de idade. Crianças com frequentes episódios de enurese devem usar uma combinação de droga e alarme de enurese. A droga reduz a necessidade de acordar à noite e o alarme fornece reforço. Após a criança permanecer sem urinar na cama por mais de 3 semanas, a droga deve ser retirada gradualmente. Terapias com drogas combinadas podem ser tentadas em pacientes com enurese noturna refratária quando o uso do alarme e a droga não forem eficazes. Nestes casos, a terapia combinada usando-se duas ou mais drogas pode ser efetiva.

Não existe consenso sobre que criança deve ser submetida à medicação contínua. Alguns autores indicam seu uso em pacientes mais velhos com enurese refratária e naqueles cujos pais não concordam em acordar a criança à noite para urinar. A duração do tratamento nestes casos é um dilema, já que muitos destes pacientes tendem a recair com a suspensão do mesmo. Nestes, o uso do alarme deve ser iniciado e mantido por 6 meses, quando então se tenta novamente retirar a medicação.

Nos casos em que não se consegue acordar a criança para urinar, o uso crônico de drogas pode ser indicado, devendo os efeitos colaterais ser discutidos com os pais.

 

TÓPICOS IMPORTANTES

     A enurese noturna monossintomática é o distúrbio pediátrico mais comum, com uma alta taxa de resolução espontânea.

     A maioria dos tratamentos deve ser adiada até a criança completar, no mínimo, 7 anos de idade e todos os tratamentos devem ser iniciados com crianças dispostas a participar ativamente no tratamento, assim como também é de fundamental importância a colaboração e o apoio dos pais.

     Vários tratamentos podem ser utilizados e a monoterapia é uma opção eficaz na maior parte dos casos.

     O tratamento deve ser avaliado pelo risco potencial de efeitos colaterais, pesando sempre os riscos e benefícios.

     Simples métodos comportamentais (terapia motivacional, exercícios de retenção vesical) são usualmente os primeiros tratamentos utilizados e ações mais intervencionistas devem ser consideradas em crianças mais velhas, pelo aumento da pressão social e naquelas cuja autoestima esteja afetada.

     O sistema de alarme de despertar se mostra o mais efetivo tratamento em longo prazo.

     Dietoterapia e treinamento vesical podem se mostrar como uma boa terapia coadjuvante.

     O tratamento farmacológico é efetivo em curto prazo, permitindo que as crianças executem suas atividades sociais, como acampar e dormir na casa de amigos.

     Embora existam diversas formas de abordar a criança enurética e seus familiares, o nível pedagógico, informativo e tranquilizador que o profissional pode oferecer a seus clientes constitui a base de qualquer atitude posterior.

     A escolha do tratamento tem a ver certamente com o profissional e seu paciente, com suas ideias acerca do fenômeno, com sua ideologia, história e instrumentos de intervenção.

     O prognóstico é bom, dificilmente o sintoma permanece indefinidamente e é raro atingir a puberdade; portanto, a necessidade de intervenção (familiar ou com a criança) deve ser avaliada pelo profissional e familiares.

     Frequentemente a tranquilização e a orientação trabalhadas pelo pediatra modificam significativamente o curso dos sintomas.

 

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14.Wyndaele JJ. Is the sensory innervation disturbed in the lower urinary tract of children with bed wetting? Eur Urol 1993; 24:81-9.

 

Comentários

Por: Atendimento MedicinaNET em 20/01/2014 às 15:03:27

"Prezada Dra. Telma, o padrão de formatação dos textos do MedicinaNET foi previamente definido pelo corpo editorial. Encaminharemos sua sugestão ao setor responsável. Agradecemos seu contato. Atenciosamente, Os Editores."

Por: TELMA em 16/01/2014 às 14:23:42

"Gostei da abordagem , bem completa.Tive dificuldades com o tamanho da letra. Sugiro realçar as referências bibliográficas junto ao texto."

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