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Hepatopatia Alcoólica

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 04/10/2011

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Introdução

Provavelmente representa a primeira forma de injúria hepática descrita na história da humanidade, com casos de hepatopatia alcoólica provavelmente ocorrendo desde o período neolítico. Cerca de 7,4% da população norte-americana tem história de dependência ao álcool. Deve-se acrescentar ainda que a hepatopatia por álcool é a maior causa de mortes secundárias a hepatopatia, sendo responsável por 44% das 26.000 mortes/ano por cirrose em 1998. Apesar de a abstinência reverter os danos na maioria dos pacientes, em pacientes com fibrose hepática, o dano hepatocelular pode se perpetuar mesmo após abstinência. Ao discutir hepatopatia por álcool devemos nos lembrar das principais características da dependência do alcoolismo, que incluem os instrumentos do chamado CAGE, usado para rastreamento de dependência do álcool:

 

         tolerância: estado de adaptação quando quantidades crescentes de álcool são necessárias para levar aos efeitos desejados;

         dependência física: paciente apresenta sintomas de abstinência quando não usa álcool;

         controle prejudicado: indivíduo não consegue controlar a quantidade de álcool após iniciado o uso;

         craving: termo sem tradução precisa; paciente apresenta disforia quando em abstinência que leva a recidiva.

 

Quando utilizado o CAGE, deve-se considerar que a presença de duas das condições citadas deve ser considerada um rastreamento positivo para dependência de álcool. A sensibilidade do teste é de 70 a 96% com especificidade de 91 a 95%. Entretanto, o teste falha em verificar quem ingeriu álcool o suficiente para desenvolver doenças hepáticas.

Apenas 8 a 20% dos pacientes etilistas importantes desenvolvem cirrose hepática, mostrando influência de fatores genéticos no aparecimento da doença; ainda em etilistas importantes, cerca de 10 a 35% apresentarão hepatite alcoólica e 90% dos etilistas importantes com mais de 12 anos de uso apresentam esteatose hepática.

 

Fatores de risco

O mais importante fator de risco e preditor do desenvolvimento de hepatopatia alcoólica é a quantidade de álcool ingerida, ou seja, quantidades superiores a 60 a 80 g de etanol ao dia por 10 a 12 anos em homem e 20 g em mulher. Em pacientes que utilizam álcool nestes níveis, 6 a 41% progridem para cirrose. Também o tipo de álcool é importante, pois para cerveja e destilados o risco é maior do que para o vinho. Beber fora de refeições aumenta o risco de desenvolver cirrose em 2,7 vezes. Alterações genéticas como polimorfismos de genes que influenciam o metabolismo da álcool-desidrogenase e atividade das enzimas do citocromo p450 aumentam risco de gravidade. Dados recentes demonstraram que doses menores que as citadas habitualmente na literatura podem ser tóxicas. A obesidade é um fator de risco independente para desenvolvimento de hepatopatia. Existe ainda forte associação com o vírus da hepatite C sendo um grande fator de risco para o desenvolvimento do carcinoma hepatocelular a associação entre consumo de álcool e vírus C.

 

Diagnóstico

O diagnóstico é baseado em história clínica, exame físico e alterações laboratoriais, lembrando que o limiar de 10 g de álcool não é absoluto e doença alcoólica pode aparecer com doses menores. Instrumentos para avaliar consumo de álcool como o CAGE e AUDIT são validados pela literatura. Um exame físico detalhado procurando sinais e sintomas de doença hepática é necessário. Estes achados podem ser relacionados a hipertensão portal como ascite, esplenomegalia, colaterais abdominais, telangiectasias cutâneas, eritema palmar e baqueteamento digital. A contratura de Dupuytren (secundária a neuropatia periférica) e a feminilização (ginecomastia e hipogonadismo) são relativamente específicos para doença causada por álcool. Nenhum achado, entretanto, confirma o diagnóstico, e o exame físico é ruim em determinar volume hepático.

Os exames laboratoriais devem incluir bioquímica hepática com albumina, transaminases (AST/ALT), bilirrubinas, hemograma completo e tempo de protrombina (TP/INR). Em casos em que o diagnóstico é duvidoso, pode ser necessário realizar biópsia hepática.

Anormalidades laboratoriais típicas de doenças hepáticas por álcool incluem aspartato aminotransferase (AST) maior que alaninatransferase (ALT), mas ambas menores que 300 u/L. O aumento da AST ou TGO apresenta sensibilidade de 50% e especificidade de 82% para o diagnóstico de hepatopatia alcoólica; já o aumento da ALT/TGP tem 35% de sensibilidade e 82% de especificidade para o diagnóstico Normalmente, AST é maior que 2 vezes o valor do limite superior da normalidade, e valores de AST em geral são maiores que a ALT, mas nenhuma das duas apresenta valor mais que 7 vezes acima do normal, exceto se associada toxicidade com acetaminofeno. O aumento da gamaglutamiltransferase (GGT) tem sido usado como rastreamento do uso de álcool e apresenta sensibilidade de 69 a 73%, especificidade de 65 a 80% para consumo de álcool excessivo. O volume corpuscular médio (VCM) é outro achado descrito tanto em pacientes hepatopatas, como principalmente em etilistas. No entanto, o exame apresenta baixa sensibilidade, variando entre 27 e 52%, mas apresenta especificidade melhor, variando entre 85 a 91%.

Alterações metabólicas são descritas e incluem hiperglicemia, hipertrigliceridemia e hiperuricemia. Anormalidades eletrolíticas incluem hipocalemia, hipomagnesemia e hipofosfatemia, já testes de função hepática, como albumina sérica, TP e bilirrubina sérica, podem ser normais até o paciente desenvolver doença hepática significativa.

Alterações hematológicas incluem anemia leve, sendo comum macrocitose, como já descrito, e que pode ocorrer independentemente da deficiência de folato, comum em etilistas. As plaquetas, por sua vez podem estar em número normal ou diminuídas, às vezes com marcante plaquetopenia. Já leucocitose pode ocorrer quando o paciente evolui com hepatite alcoólica aguda; nestes casos, pode ocorrer significativo desvio à esquerda com formas jovens de leucócitos no sangue periférico. Nos raros casos em que a etiologia ainda é indefinida, pode-se considerar a realização de biópsia hepática. O procedimento é relativamente seguro, com morbidade de 0,1 a 0,6%, mortalidade de 0,01 a 0,03%, sensibilidade de 91% e valor preditivo positivo de 88% do diagnóstico clínico de doença hepática alcoólica.

 

Tratamento

O mais importante fator no tratamento é a abstinência a longo prazo, com evidências de boa qualidade verificando que a manutenção do uso acelera a progressão para doença hepática. O uso da naltrexona pode ser considerado em pacientes com grande dependência, tendo apresentado algum sucesso em pequenos estudos.

A manutenção de estado nutricional adequado é fundamental para garantir evolução favorável. Embora este conceito seja bem definido, apenas recentemente dados sobre eficácia foram demonstrados. Um estudo demonstrou que nutrição enteral nos pacientes com desnutrição importante teve benefício em sobrevida, melhora de função hepática, escore de Child e melhora de encefalopatia hepática. Um segundo estudo usou aminoácidos de cadeia aromática com caseína e conseguiu um melhor controle de encefalopatia. As recomendações em relação à dieta incluem:

 

         ingesta de proteína correspondente a 1 a 1,5 g/kg de peso corpóreo reservando doses menores para os pacientes com encefalopatia refratária;

         calorias totais da dieta de 1,2 a 1,4 vezes gasto calórico basal, com, no mínimo, 30 kcal/kg de peso corpóreo;

         preferência por uso de via oral ou enteral para alimentação;

         ingesta de água e sódio ajustada para estado eletrolítico e de volemia do paciente;

         sem restrição ao uso de multivitamínicos e minerais;

         para quem não tolera os aminoácidos habituais da dieta, os aminoácidos de cadeia aromática complementados com suplemento de colina, tirosina, cistina e taurina podem ser benéficos;

         alimentações frequentes, principalmente com lanche noturno e refeição matutina, mantendo equilíbrio nitrogenado e prevenindo hipoglicemia.

 

As complicações da cirrose, como ascite e hemorragia digestiva, devem ser tratadas e prevenidas adequadamente. Uma discussão mais aprofundada não será nosso objetivo nesta revisão. O transplante hepático para doença terminal é uma opção, mas para ser considerado para o paciente tem que permanecer pelo menos seis meses em abstinência. Nesses pacientes, o prognóstico é excelente, pois a taxa de recidiva é relacionada com abstinência.

 

Medicações estudadas

Propiltiluracil (PTU)

O álcool aumenta o consumo hepático de oxigênio. Por diminuir o metabolismo celular e o consumo de oxigênio, o PTU poderia ser benéfico. Apenas um estudo com 360 pacientes usou PTU 150 mg contra placebo; neste estudo, ocorreu uma diminuição de mortalidade de 12% em 2 anos apenas nos pacientes com disfunção severa. Outros estudos não encontraram benefícios e uma meta-análise da Cochrane analisou seis estudos sem verificar benefício em comparação com placebo. Assim, a medicação não tem indicação na hepatopatia alcoólica.

 

Colchicina

A colchicina inibe a produção de colágeno, com aumento da colagenase hepática. A medicação teria o potencial de inibir a produção de citocinas, a inflamação e a produção de fibroblastos. Um estudo no México com 100 pacientes seguidos por 14 anos mostrou que a sobrevida com colchicina foi de 11 anos e com placebo, 3,5 anos. O trabalho teve sérios problemas metodológicos, sendo que 20% dos pacientes perderam o seguimento. O efeito benéfico só foi observado após 30 meses de tratamento. Outros estudos não demonstraram benefício, assim a medicação não é recomendada para esta situação.

 

Hepatite alcoólica aguda

O diagnóstico de hepatite alcoólica é relativamente fácil. Os pacientes apresentam quadro de mal-estar, astenia, febre que pode chegar até mais de 39°C, dor abdominal e icterícia de início abrupto. O hemograma apresenta leucocitose, por vezes marcante e com desvio à esquerda significativo. Mesmo em pacientes sem antecedente prévio de cirrose, pode ocorrer ascite e encefalopatia hepática, que são reversíveis após abstinência. Também pode ocorrer na circunstância de um paciente já com hepatopatia crônica e cirrose; neste caso, piora aguda da função hepática pode ocorrer com complicações como ascite.

Aumento de transaminases é a principal alteração laboratorial encontrada. Os valores raramente ultrapassam 300 u/L, e valores acima de 500 u/L são excludentes, exceto se outras causas estiverem associadas, sobretudo uso de paracetamol. A relação entre AST/ALT é maior que 2 na maioria dos casos e quando maior que 3, tem valor preditivo de 98% para o diagnóstico de hepatite alcoólica.

Raramente, é necessária a confirmação histológica, mas quando realizada a biópsia, pode-se selecionar melhor os pacientes para tratamento específico com corticoterapia, por exemplo. Ainda assim, o risco de sangramento invalida a realização do procedimento, confirmando-se o diagnóstico apenas com os dados de história, exame físico e avaliação laboratorial.

Em todos os pacientes, está indicado o tratamento com suporte nutricional. Se a via oral estiver indisponível, a dieta enteral é preferida, por preservar a função intestinal. Apesar de ser associado com melhora de histologia hepática, o uso de aminoácidos suplementares não alterou desfechos relevantes na maioria dos estudos.

Na hepatite alcoólica, é importante determinar sua severidade. A presença de encefalopatia hepática é um dos fatores mais importantes para determinar sua severidade. O discriminador de função, também chamado de índice de Maddrey, é utilizado para este fim e consiste na seguinte fórmula:

 

Discriminador de função = 4,6 x alteração TP (alteração em segundos sendo o normal 13 segundos) + bilirrubina total (mg/dL)

 

Quando este índice é superior a 32, a hepatite é considerada severa. Neste caso, deve-se considerar a utilização de corticosteroides ou pentoxifilina. Outra indicação para o uso destas medicações é a presença de encefalopatia severa. Deve-se acrescentar que o uso destas medicações não foi avaliado adequadamente em pacientes com pancreatite concomitante, sangramentos, insuficiência renal e infecção ativa.

 

Tratamento

Corticosteroides

Foram realizados 12 estudos randomizados com corticosteroides em pacientes com hepatite alcoólica: cinco apresentaram diminuição da mortalidade e sete não apresentaram diferença. Também foram realizadas três meta-análises, que demonstraram benefício com o uso de glicocorticoides e um sem benefício, mas com problemas metodológicos sérios em sua realização. A melhora de sobrevida ocorre em um ano, mas não se mantém em dois anos. Apenas o subgrupo com doença severa determinada pelo discriminador de função maior que 32 e encefalopatia hepática apresentou benefício com o tratamento.

A dose recomendada é de prednisona 40 mg/dia por quatro semanas, ou prednisolona na mesma dose. Em teoria, a prednisolona apresenta o benefício de não necessitar de metabolização hepática.

 

Pentoxifilina

Medicação com potencial de inibir a produção de citocinas e TNF-alfa. Foi avaliada recentemente e, em um estudo inicial, diminuiu a mortalidade evitando uma morte a cada 5 pacientes tratados. Foi estudada ainda em associação com os corticosteroides, sem benefício adicional. Recentemente, um artigo comparou a pentoxifilina com corticosteroide, com benefício com uso da pentoxifilina diminuindo a mortalidade. A diminuição do desenvolvimento de síndrome hepatorrenal no grupo pentoxifilina pareceu ser a responsável pela diminuição de mortalidade.

De qualquer forma, o estudo foi cheio de problemas metodológicos e, por este motivo, o consenso da American Association of Studies of Liver Disease ainda considera os glicocorticoides como a primeira opção nestes pacientes. A dose da pentoxifilina é de 400 mg a cada oito horas por quatro semanas. O uso de outras medicações anti-TNF-alfa, como o etanercepte, não foi associado a benefício.

 

Fatores prognósticos

A mortalidade varia muito conforme a apresentação, sendo que em doença leve só se justifica se houver tratamento de suporte e uso de sintomáticos. Além do discriminador de função, também são validados como índices de severidade nestes pacientes a classificação de Child, MELD e o Glasgow Alcoholic Score. A escala MELD foi validada em um estudo em pacientes com hepatite alcoólica aguda, grupo em que valores acima de 18 são marcadores de mau prognóstico. Pacientes com hepatopatia crônica e agudização por hepatite alcoólica com piora de 2 pontos no MELD também apresentam pior prognóstico. O escore GAS maior que 8 implica em pior prognóstico em pacientes com hepatite aguda, mas é pouco utilizado atualmente. Os tratamentos medicamentosos como corticosteroides e pentoxifilina são usualmente indicados conforme os resultados do discriminador de função, que acaba sendo o principal marcador prognóstico nestes pacientes.

 

Bibliografia recomendada

1.     Lucey MR, Mathurin P, Morgan TR. Alcoholic hepatitis. N Engl J Med 2009; 360:2758.

2.     De BK, Gangopadhyay S, Dutta D, Baksi SD, Pani A, Ghosh P. Pentoxifylline versus prednisolone for severe alcoholic hepatitis: a randomized controlled trial. World J Gastroenterol 2009; 15(13):1613.

3.     O´Shea R, Dasarathy S, McCulloughAJ. . Alcoholic liver disease. Hepatology 2009; 51(1): 307-28.

 

Comentários

Por: flavia ribeiro em 17/01/2012 às 15:09:21

"Gostei do texto dessa revisão, por ser bastante objetivo e esclarecedor."

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