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Porfirias

Autor:

Denise Lehugeur

Médica internista e hematologista contratada da Emergência de Adultos do HCPA.

Última revisão: 14/05/2014

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Versão original publicada na obra Fochesatto Filho L, Barros E. Medicina Interna na Prática Clínica. Porto Alegre: Artmed; 2013.

 

Caso Clínico

Um paciente do sexo masculino, 19 anos, apresentou fraqueza ascendente nos quatro membros com início há uma semana. Relatou dificuldade para engolir, e sua voz esteve anasalada. O paciente desenvolveu dor abdominal intensa associada a vômitos e seguida por convulsões generalizadas. Em relação à história clínica, foram descritos crises de convulsões tônico-clônicas, dor abdominal intensa e vômitos com adenopatia mesentérica, derrame pleural e ascite um ano antes. Para isso, realizou tratamento com tuberculostáticos durante seis meses. Ao realizar exame, foram verificadas pressão arterial de 110/70 mmHg, frequência cardíaca de 82 bpm, e o paciente apresentou-se consciente, alerta, quadriparético (força 0/5), com fraqueza bifacial e bulbar, com reflexo cutâneo plantar flexor bilateral e normal no que diz respeito ao restante do exame físico.

O uso de fenitoína e valproato de sódio para tratar as convulsões agravou a situação do paciente, que desenvolveu insuficiência respiratória, sendo necessário realizar entubação e ventilação mecânica.

 

Definição

As porfirias são um grupo de oito distúrbios metabólicos causados por atividades alteradas das enzimas dentro da via biossintética do heme, com consequente acúmulo de vários precursores dessa rota. A alteração na atividade enzimática ocorre geralmente devido a uma mutação herdada no gene para aquela enzima.

O heme é essencial para todas as células e funciona como o grupo prostético de numerosas hemoproteínas, como hemoglobina, mioglobina, citocromos P450 (CYPs), óxido nítrico sintase, entre outras.

 

Epidemiologia

A porfiria intermitente aguda (PIA) é a de incidência mais comum entre as porfirias agudas no mundo, apresentando uma prevalência de aproximadamente 1 a 2/100.000 e 2,4/100.000 na Finlândia. Ela ocorre em indivíduos de todas as etnias, mas é muito mais frequente nos países do norte da Europa. Estima-se que a PIA afete cerca de 75 mil pessoas nos países europeus, exceto no norte da Suécia, onde é mais frequente (1:1000).

O heme é sintetizado em cada célula humana para reações respiratórias e de oxidação e redução, sendo produzido principalmente nas células eritropoiéticas da medula óssea para síntese de hemoglobina (85%). O fígado é responsável pela maior parte do processo restante da síntese total do heme, onde este é utilizado primariamente para a produção das várias enzimas dos citocromos P450 (CYPs) (Fig. 56.1).

Oito enzimas sintetizam o heme a partir de glicina e succinil-CoA.

 

Regulação da Síntese do Heme

O controle do processo de produção do heme é realizado pelo fígado e pela medula óssea, especialmente devido às taxas de síntese da ALAS.

 

 

Figura 56.1

Via de biossíntese do heme e porfirias.

Caixa de Texto em verde = porfirias Eritropoiéticas. Em cinza = porfirias Hepáticas.

ALA, ácido 5-aminolevulínico; PBG, porfobilinogênio; I, III e IX, isômeros; ALAS, ALA-sintase; ALAD, ALA-deidratase; PBGD, porfobilinogênio deaminase; UROIIIS, uroporfirinogênio III sintase; UROD, uroporfirinogênio descarboxilase; CPO, coproporfirinogênio oxidase; PPOX, protoporfirinogênio oxidase; FECH, ferroquelatase; Fe²+, ferro ferroso.

 

A ALAS ocorre de duas formas diferentes: ALAS1 ou ALASN (encontrada em todos os tecidos, codificada pelo gene localizado no cromossomo 3); ALAS2 ou ALAS-E (eritroide-específica e transcrita somente nos eritroblastos da medula óssea, codificada pelo gene eritroide-específico localizado no cromossomo X, lócus p11,21).

A ALAS1 é uma enzima taxa-limitante na produção do heme no fígado e é controlada por retroalimentação negativa pelo reservatório de heme intracelular não comprometido. Isso proporciona um mecanismo de retroalimentação sensível, por meio do qual ALAS1 é ativada quando a necessidade do heme no fígado aumenta e sub-regulada quando o suprimento de heme é suficiente. Esses mecanismos de retroalimentação são importantes para pacientes com porfirias agudas que são agravadas quando a ALAS1 hepática é induzida. De acordo com isso, as porfirias agudas podem ser tratadas com heme exógeno, que é levado primeiramente aos hepatócitos, onde ele repleta o reservatório regulatório do heme, sub-regula ALAS1 e melhora o ataque agudo.

Nas células eritroides, a síntese do heme é regulada durante a diferenciação eritroide em resposta à eritropoietina (EPO), a fim de fornecer heme na quantidade requerida para a síntese da hemoglobina. Nessas células, a síntese de ALAS2 é induzida apenas durante a síntese ativa do heme. A taxa é limitada pela disponibilidade de ferro e não é inibida pelo heme. Os macrófagos do baço e do fígado degradam o heme e reciclam o ferro após a eritrofagocitose. Diferente da ALAS1, que é inibida pelo heme, a atividade da ALAS2 é estimulada, nas células eritroides, pelo heme e pelo ferro.

 

Classificação

As porfirias são frequentemente classificadas como hepáticas ou eritropoiéticas, de acordo com o local de acúmulo do precursor heme. Elas também são classificadas como agudas ou cutâneas, evidenciando a manifestação clínica primária Tab. 56.1. Essas classificações não são completamente distintas e, em alguns casos, se sobrepõem.

 

Porfiriasagudas (PA). As PAs apresentam uma variedade de sintomas neuroviscerais não específicos (p. ex., dor abdominal, distúrbios psiquiátricos, sintomas neurológicos), dos quais o mais comum é a dor abdominal. Os sintomas em geral ocorrem como ataques agudos, mas algumas vezes são crônicos.

 

porfirias cutâneas (PC). As PCs são associadas à fotossensibilidade devido à ativação das porfirinas da pele pelas longas ondas de luz ultravioleta (UVA). A maioria das PCs manifesta-se por lesões cutâneas bolhosas crônicas nas áreas da pele expostas ao sol, particularmente no dorso das mãos. A fotossensibilidade aguda, não bolhosa, observada em pacientes com protoporfiria eritropoiética (PPE) é diferente das outras PCs.

 

Sinais e Sintomas

O reconhecimento de que diferentes porfirias evidenciam diversidade em suas manifestações clínicas é imprescindível para entender esses distúrbios. Adicionalmente, as três porfirias mais comuns – porfiria cutânea tarda (PCT), PIA e PPE – não apresentam nenhuma característica clínica em comum (Tabs. 56.2 e 56.3 e Fig. 56.2).

Os pacientes com as porfirias agudas autossômicas dominantes – PIA, porfiria variegata (PV), e coproporfiria hereditária (CPH) – podem apresentar uma crise aguda com risco de vida. Esses ataques são raros porque a penetrância é baixa, e eles são difíceis de se diagnosticar devido à inespecificidade. Os ataques agudos ocorrem em pacientes com qualquer uma das porfirias agudas. A maioria dos pacientes tem um ou poucos ataques e recupera-se completamente pelo resto da vida, e menos de 10% deles desenvolvem ataques recorrentes.

As lesões dermatológicas nunca se desenvolvem em casos de PIA, mas são o único tipo de manifestação em alguns pacientes com PV (60% dos casos), e raramente se desenvolvem em pacientes com CPH (5% dos casos).

 

O chumbo, em pacientes com intoxicação por esse metal pesado, inibe enzimas da rota do heme (ALAD e FECH), podendo causar, dessa forma, um quadro clínico similar ao de algumas porfirias.

 

Patogênese dos achados clínicos

porfirias eritropoiéticas (PPE)

As porfirinas, em estado oxidado, são avermelhadas, fluorescentes e fotossensibilizantes, enquanto os precursores das porfirinas e os porfirinogênios reduzidos são incolores e não fluorescentes. A maioria dos normoblastos da medula óssea apresenta acentuada fluorescência como resultado do acúmulo de porfirinas, principalmente no núcleo. A maior parte do excesso de produção e excreção das porfirinas causa eritropoiese inefetiva na medula óssea. A concentração de porfirinas também é elevada nos eritrócitos circulantes, e a hemólise pode resultar nos capilares dérmicos pela exposição à luz, causando dano celular e lise intravascular ou retirada pelo baço. A esplenomegalia é muito comum em pacientes com PEC e é presumida se secundária ao processo hemolítico. O excesso de porfirinas, produzidas pela medula óssea ou liberadas pela hemólise, é transportado no plasma até a pele ocasionando fotossensibilidade.

 

porfirias aguda (PA)

Os seguintes mecanismos potenciais tem sido propostos para explicar a disfunção neurológica que ocorre em pacientes com PAs:

•A via do heme intermediária ou os produtos derivados dessa via podem ser neurotóxicos.

•A deficiência de PBG deaminase nos tecidos do sistema nervoso pode limitar a síntese do heme e a formação de importantes hemoproteínas.

•A síntese prejudicada de heme no fígado durante um ataque pode causar diminuição da atividade de triptofano pirrolase hepática, a qual pode aumentar os níveis de triptofano no plasma e no cérebro, resultando em uma elevação da síntese do neurotransmissor 5-hidroxitriptamina.

•O vasospasmo pode ocorrer devido à pouca produção de óxido nítrico pela enzima hemoproteica óxido nítrico sintase, e ele determina as manifes tações cerebrais da PIA e possivelmente compromete o fluxo sanguíneo intestinal.

 

porfirias cutâneas (PC)

Uma característica distinta da PCT é o acúmulo ma ciço de porfirinas no fígado. O tecido hepático fresco apresenta forte fluorescência vermelha na exposição à luz UV de ondas longas. As porfirinas em excesso são transportadas no plasma do fígado à pele, gerando vesículas na pele.

 

 

 

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Diagnóstico

A medida dos precursores da porfirina ALA e PBG, bem como das porfirinas na urina, no plasma, nos eritrócitos e nas fezes, é importante para o diagnóstico das diversas porfirias (Tabs. 56.2 e 56.4 e Fig. 56.2). Entretanto, objetivando a triagem, deve-se preferir os testes de primeira linha que podem determinar ou descartar o diagnóstico de porfiria. Testes diagnósticos adicionais são apropriados se um teste de triagem for positivo. O exame de excesso de PBG na urina é o teste de primeira linha essencial para pacientes com um ataque suspeito de PA. A medida do ácido5-aminolevulínico não é essencial para estabelecer o diagnóstico, mas pode ser útil para a diferenciação de outras causas metabólicas de dor abdominal, como, por exemplo, a intoxicação por chumbo.

 

Ácido delta-aminolevulínico (ALA): a excreção normal urinária de ALA é de menos de 7 mg/24 h (53 mmol/24 h).

 

Porfobilinogênio (PBG): a excreção urinária normal de PBG varia de 2 a 4 mg/24 h ou de menos de 9 a 18mol/L. Em casos graves de PIA, a urina pode apresentar uma cor de vinho do porto devido à alta concentração de porfobilina, um produto acastanhado da auto-oxidação do PBG, e das porfirinas, que são avermelhadas.

 

 

Tratamento

A escolha de tratamento para pacientes com porfirias depende do diagnóstico específico, e as PAs, PCT e PPE, são tratadas de maneira bem diferente.

Os ataques de indivíduos com porfirias agudas devem ser tratados urgentemente com hemina ou glicose para evitar doença prolongada e complicações fatais. Havendo aumento substancial do PBG, amostras de urina, sangue e fezes devem ser prontamente coletadas para posterior análise a fim de estabelecer o tipo de porfiria aguda en quanto o tratamento é iniciado imediatamente (Tab. 56.5 e Quadro 56.1).

Pacientes que apresentam PCT respondem rapidamente ao tratamento de redução do ferro, por exemplo, por repetidas flebotomias ou por um regime de dose baixa de hidroxicloroquina.

Deve-se evitar a exposição solar para casos de PEC e PPE e para pacientes com PV e PCH que apresentam vesículas na pele. O betacaroteno pode melhorar a tolerância ao sol na PPE.

 

 

Figura 56.2

Manifestações clínicas das porfi rias e testes diagnósticos de primeira linha.

PBG, porfobilinogênio; ALA, ácido 5-aminolevulínico.

 

 

Caso Clínico Comentado

Nesse caso, realizou-se estudo eletrofisiológico que evidenciou neuropatia desmielinizante e axonal mista assimétrica sensório-motora, envolvendo os quatro membros, predominanemente os membros superiores. O porfirinogênio urinário foi positivo, possibilitando o diagnóstico de porfiria aguda. O uso de fenitoína e valproato de sódio, seguido de levetiracetam, agravou a situação, como observado pela elevação do porfirinogênio urinário. Esses medicamentos foram substituídos então por gabapentina. A maioria das drogas danosas nas PAs são os indutores das CYPs hepáticas, como os tuberculostáticos e os anticonvulsivantes que o paciente utilizou e que podem ter desencadeado e também agravado o ataque porfírico.

O manejo conservador foi mantido na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) durante três meses, e o paciente recuperou gradualmente o quadro neurológico e recebeu alta após normalização das funções bulbares, como deglutição e recuperação parcial da força motora em 2-3/5.

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Leituras Recomendadas

Bonkovsky HL. Neurovisceral porphyrias: what a hematologist needs to know. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2005:24-30.

Deybach JC, Badminton M, Puy H, Sandberg S, Frank J, Harper P, et al. European porphyria initiative(EPI): a platform to develop a common approach to the management of porphyrias and to promote research in the field. Physiol Res. 2006;55 Suppl 2:S67-73.

Hoffman R, Benz EJ Jr, Shattil Sj, Furie B, Cohen HJ, Silberstein LE, editors. Hematology: basic principles and practice. 5th ed. Philadelphia: Elsevier; 2009.

Lecha M, Puy H, Deybach JC. Erythropoietic protoporphyria. Orphanet J Rare Dis. 2009;4:19.

Mehta M, Rath GP, Padhy UP, Marda M, Mahajan C, Dash HH. Intensive care management of patients with acute intermittent porphyria: clinical report of four cases and review of literature. Indian J Crit Care Med.2010;14(2):1-10.

Phillips JD, Anderson KE. The porphyrias. In: Kaushansky K, Lichtman MA, Beutler E, Kipps TJ, Prchal JT, Seligsohn U, editors. Williams hematology. 8th ed. New York: McGraw-Hill; 2010. Chapter 57.

Puy H, Gouya L, Deybach JC. Porphyrias. Lancet. 2010;375(9718):924-37.

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