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Poliglobulias

Autores:

Renato Failace

Especialista em Hematologia e Patologia Clínica pela Associação Médica Brasileira.
Professor Titular (inativo) de Hematologia da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre.
Professor Adjunto (inativo) de Medicina Interna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Flavo Beno Fernandes

Especialista em Hematologia e Patologia Clínica/Medicina Laboratorial pela Associação Médica Brasileira.
Gerente técnico do Laboratório Weinmann (Porto Alegre).
Médico do Serviço de Patologia Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Última revisão: 30/01/2015

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Poliglobulias

 

Versão original publicada na obra de Failace R, organizador, Fernandes FB. Hemograma [et al.] – Porto Alegre: Artmed, 2009.

 

O aumento conjunto das cifras do eritrograma (E, Hgb e Hct) –poliglobulia – pode decorrer tanto de aumento real da massa eritroide/ hemoglobínica circulante como da diminuição da volemia plasmática. O hematócrito, por tradição, a cifra mais usada para expressar e quantificar a poliglobulia, está sendo substituído ou acompanhado para esse fim pela taxa de hemoglobina. O número de eritrócitos é ina­ propriado; quando há microcitose, o aumento da contagem – eritro­ citose – pode não se acompanhar do aumento de Hgb e Hct ou até fazer parte de um quadro de anemia, como na talassemia minor. Por outro lado, embora teoricamente possível, não há aumento de Hct/ Hgb sem eritrocitose. O termo policitemia era usado como sinônimo de poliglobulia, mas, por participar do nome da síndrome mieloproliferativa policitemia vera, talvez seja preferível usá-lo somente nessa designação.

Quando a poliglobulia da amostra representa aumento verdadeiro da massa eritroide/hemoglobínica circulante, há poliglobulia real. Quando se deve à baixa da volemia plasmática, a poliglobulia é relativa ou pseudopoliglobulia; nesse caso, o aumento dos valores hematimétricos expressa a hemoconcentração. A diferença, obviamente, não pode ser deduzida do eritrograma. Na maioria das vezes, entretanto, a história e os dados clínicos apontam situações claras de perda plasmática.

Algumas vezes, a distinção segura entre poliglobulia real e pseudopoliglobulia só pode ser feita pela determinação da volemia globular com 51Cr; os limites de referência são 24 a 36 mL/kg de peso corporal para homens e 20 a 32 mL/kg para mulheres. As dificuldades de se oferecer um exame de medicina nuclear raramente solicitado, entretanto, diminuiu o uso da técnica, apesar de insubstituível em alguns casos, como no diagnóstico de poliglobulia inaparente. Uma poliglobulia real torna-se inaparente no eritrograma se estiver disfarçada por aumento simultâneo da volemia plasmática. O fenômeno só pode ser evidenciado pela medida radioisotópica simultânea das volemias globular e plasmática; é visto algumas vezes em pacientes com policitemia vera, nunca em poliglobulias secundárias.

poliglobulias acentuadas, com Hct > 55%, Hgb >18,5 g/dL (em homens) e Hct > 50%, Hgb > 17,0 g/dL (em mulheres), sempre são reais, geralmente têm causa facilmente identificável ou se trata de policitemia vera. poliglobulias menores constituem-se em difícil diagnóstico diferencial. O eritrograma fornece apenas dados relativos (relação plasma/glóbulos), o mielograma é inútil, e a clínica é fundamental.

Antes de partir para a elaboração diagnóstica em torno de hemograma­ com poliglobulia, convém confirmar se os resultados são fidedignos e representativos. Certificar-se das boas condições de hidratação do paciente, excluir ação recente de diuréticos, repetir os exames em laboratório de confiança, atentar para o horário de coleta. Um hemograma coletado em condições basais, com o paciente­ ainda na horizontal após noite de sono, comparado com o hemograma coletado no fim do dia, mostrará casos em que a hemoconcentração se deve à retenção de líquidos nos membros inferiores por horas de trabalho em pé ou sentado; essa diferença é particularmente elevada em pessoas obesas, idosas e cardíacas. Diferenças tão grandes como 6 pontos percentuais no Hct, ou 2 g/dL na Hgb, têm sido vistas pelo autor com esses cuidados.

 

Poliglobulias moderadas

No caso de poliglobulias moderadas, com Hct < 55%, Hgb < 18,5 g/dL (homem) e Hct < 50%, Hgb < 17,0 g/dL (mulher), deve-se procurar as causas que seguem:

1. Normal do paciente: no Rio Grande do Sul, bem como na Argentina e no Uruguai, valores até Hct 50% (homem) e 46% (mulher), sem causa aparente, não são raros; os mesmos valores são incomuns no Norte e Nordeste do Brasil. Que as altas taxas dos sulinos decorram de condições socioeconômicas e hábitos alimentares, com alta ingestão de proteínas animais, é uma hipótese atraente, mas sem qualquer confirmação.

2.  Altitude: a poliglobulia fisiologicamente desencadeada pela baixa tensão do oxigênio da atmosfera rarefeita só é notada em residentes acima de 1.500 m de altitude. São inexistentes no Brasil, mas comuns nas populações andinas. Nos residentes em altitudes entre 2.000 e 3.200 m, a Hgb eleva-se de 1 a 2 g/dL, e o efeito é benéfico. Os visitantes, nas primeiras horas ou dias, costumam ter cefaleia, fatigabilidade, palpitações e lipotimias,­ causadas pela falta de O2, e cefaléia e náuseas pelo edema cerebral; o tratamento preventivo com acetazolamida e/ou corticoides é útil. Altitudes maiores causam elevação excessiva e ineficaz das cifras hematimétricas nos residentes, porque a viscosidade sanguínea aumenta desproporcionalmente e supera o ganho no transporte de O2; em alguns, originam a doença de Monge, com hipóxia tecidual, descompensação cardiorrespiratória e caquexia.

3. Fumo: a inalação da fumaça de mais de 20 cigarros por dia causa aumento do monóxido de carbono no sangue, com formação de carboxiemoglobina, inútil para o transporte de O2; há hipoxemia, aumento de produção de eritropoetina (Epo) e poliglobulia. A longo prazo, o enfisema acrescenta mais um componente causal. Os atuais aparelhos para gasometria arterial podem fornecer a dosagem de carboxiemoglobina no exame rotineiro.

4. Obesidade e estresse: causam pseudopoliglobulia; o mecanismo da diminuição da volemia plasmática não está esclarecido. O personagem obeso e sonolento de Charles Dickens originou a denominação de síndrome de Pickwick ao conjunto. O obeso fumante tem poliglobulia aditiva. A obesidade mórbida, principalmente em idosos, ocasiona restrição à expansão respiratória e anoxemia, com poliglobulia e policromatocitose no eritrograma.

5. Doença broncopulmonar obstrutiva crônica (DBPOC): a poliglobulia é proporcional à baixa do pO2 arterial e, até certo nível, benéfica. Quando o Hct ultrapassa 52%, a hiperviscosidade­ ultrapassa o benefício e a poliglobulia torna-se definidamente prejudicial com Hct > 55%; nesse caso, o paciente com DBPOC pode até beneficiar-se de sangrias terapêuticas.

6. Síndrome de apneia noturna: a anoxemia durante os ciclos de apneia causa poliglobulia; o diagnóstico pode ser feito pela monitoração do sono em laboratórios especializados.

7. Tumores que secretam eritropoetina: o mais comum é o hipernefroma; ecografia e/ou tomografia computadorizada abdominais são indispensáveis em toda a poliglobulia sem causa óbvia. Pode haver secreção inapropriada de Epo também nos seguintes tumores: hemangioma cerebelar, hepatomas, grandes miomas uterinos, cistos renais; no rim policístico, há poliglobulia, que, eventualmente, retarda a anemia da insuficiência renal. Pode haver poliglobulia pós-transplante renal.

 

Poliglobulias acentuadas

Diante de poliglobulias acentuadas, em pacientes acima de 50 anos, o primeiro diagnóstico a considerar é o de policitemia vera, discutida no capítulo das neoplasias mieloproliferativas (Capítulo 23). Quando a poliglobulia decorrer da evolução dos casos dos itens 5 e 7 supracitados, os sinais da causa estarão evidentes: dispneia, cianose e baixo pO2 na DBPOC, tumor palpável ou caquexia no hipernefroma, etc. É sempre possível que casos incipientes de policitemia vera sejam notados por hemograma ocasional, ainda com poliglobulia discreta; a pesquisa de JAK2 – mutação V617F – por PCR, já de uso corrente, é fundamental (ver Capítulo 23, p. 354-355). Esses números servem como parâmetros para raciocínio clínico, não como limites fixos. Em muitos casos, só a evolução será esclarecedora.

Além da pseudopoliglobulia­ das desidratações agudas de causas óbvias (diarreia continuada,­ sudorese intensa, etc.), pode haver perda súbita de plasma para o tecido extravascular por alteração da permeabilidade vascular em:

 

Reações alérgicas sistêmicas: a perda de plasma é parte do quadro do choque anafilático; nas reações alérgicas graves, acompanha-se de urticária, edema de Quincke ou espasmo brônquico.

 

Síndrome de choque da dengue: a dengue hemorrágica pode evoluir para a síndrome de choque por súbita alteração da permeabilidade­ vascular. Há extravasamento de eritrócitos nos tegumentos, com petéquias disseminadas e confluentes, e extravasamento considerável de plasma, com aumento das cifras eritroides da ordem de 10 a 20% em 12 a 24 horas, com hipotensão e choque. Hemogramas seriados, com poucas horas de intervalo, são indispensáveis, mas a previsão dessa necessidade é difícil. A hidratação apropriada é eficaz para evitar o choque.

 

Poliglobulia provocada pelo uso de eritropoetina humana recom­binante

Relatos esporádicos, dos anos 1990, referem que atletas de esportes altamente competitivos usaram autotransfusões de glóbulos para aumentar a hemoglobina, favorecer com isso o transporte de oxigênio e melhorar o desempenho. Esse modelo antiquado de doping fazia sentido; trabalhos de 1989 comprovaram que, para cada 100 g de aumento da massa hemoglobínica, há um aumento de 600 mL da capacidade de captar O2; isso significa que, para cada elevação da hemoblobina de 1 g/dL, haverá aumento de 1 a 4% do O2 oferecido aos tecidos.

O conhecimento desse dado fisiológico coincidiu com a introdução da eritropoetina humana recombinante (rHu-Epo) em Medicina para o tratamento da anemia da insuficiência renal crônica; não demorou a estender-se o uso da droga para o doping farmacológico. A eficácia estimulante da poliglobulia induzida pela rHu-Epo, obviamente contrária ao fair play e proibida por todos os Comitês Olímpicos, é fácil de compreender, quando se considera que as provas entre atletas de elite são vencidas por frações de porcentagens; quando cronométricas,­ às vezes, por frações de segundo. As diferenças são particularmente importantes em modalidades esportivas que dependem mais da resistência do que de uma impulsão momentânea ou de curta duração, como ciclismo, natação ou corrida de longas distâncias, e esportes de inverno; esses últimos ainda mais, porque são geralmente praticados em atmosferas rarefeitas pela altitude. O doping com rHu-Epo não é desprovido de risco – crê-se que houve ao menos dois óbitos de ciclistas no Tour de France causados por hiperviscosidade do sangue decorrente da poliglobulia complicada por desidratação.

A vantagem flagrante da rHu-Epo sobre as demais drogas estimulantes proibidas decorria da dificuldade de evidenciá-la nos testes antidoping, já que é quase idêntica ao hormônio natural. A partir de 2002, entretanto, a rHu-Epo injetável passou a ser identificada em laboratório por sutil diferença entre a molécula recombinante e a fisio­ lógica. Já há descrição de doping com a C.E.R.A. (ver Capítulo 9, p. 202), recém-aprovada pela FDA.

 

Poliglobulias notadas na infância

Costumam decorrer de cardiopatias congênitas; raramente, de defeitos genéticos da hemoglobina ou deficiências enzimáticas.

 

Cardiopatias congênitas: quando há passagem de sangue venoso para o lado arterial, a poliglobulia é notada já nos primeiros meses de vida; é proporcional à magnitude do shunt D E. O Hct pode ultrapassar 70%, com todos os sinais de pletora e hiperviscosidade, incluindo cianose e baqueteamento digital. Nos primeiros anos, costuma haver microcitose e hipocromia por falta de ferro para suprir a eritropoese exagerada. A cirurgia corretiva é eficaz também para a poliglobulia.

 

Hemoglobinas de alta afinidade ao oxigênio: há variantes raras da Hgb que não liberam adequadamente o O2 aos tecidos e causam poliglobulia. Há casos de genética dominante e casos cuja Hgb variante evidencia-se à HPLC ou à eletroforese. Os pacientes toleram bem a poliglobulia; o autor só viu três casos, um dos quais beneficia-se de sangrias periódicas.

 

Metemoglobinemia: poliglobulia mínima, acompanhada de cianose permanente, leva a este raro diagnóstico. O sangue arterial, coletado para a gasometria, tem uma cor achocolatada que não clareia com o arejamento, o que se nota com facilidade no laboratório. Há duas causas genéticas:

§  Hemoglobina M: a molécula é defeituosa e há auto-oxidação do heme. O defeito é dominante e confirma-se pela HPLC ou pela eletroforese da Hgb. É intratável, mas benigno, com mais consequências estéticas do que sintomas clínicos.

§  Deficiência de NADH-citocromo b5-redutase (ou metemoglobino­-re­dutase): é um defeito recessivo. O uso oral permanente de 1 g/dia de ácido ascórbico, pelo efeito redutor, diminui a metemoglobina e melhora notavelmente a cianose.

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