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Febre Reumática

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 24/05/2020

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A febre reumática(FR) é uma complicação tardia não supurativa de uma infecção faríngea por sepasde Streptococcus pyogenes ß-hemolítico do grupo A de Lancefield, ocorrendo comumentede 2 a 3 semanas após a infecção estreptocócica. Outras complicações nãosupurativas incluem a glomerulonefrite difusa aguda e a febre escarlatina.

A FR aguda(FRA) ocorre principalmente em países de pior nível socioeconômico. Na décadade 1920 a 1950, a FRA foi a principal causa de morte em crianças americanas e acausa mais comum de doença cardíaca em pacientes com menos de 40 anos de idade,mas sua incidência diminuiu drasticamente devido ao tratamento antibiótico dasinfecções estreptocócicas, ao declínio da prevalência das cepas mais virulentasdos estreptococos do grupo A e à melhoria das condições de vida.

Estima-seque ocorram 470 mil casos novos de FR no mundo com cerca de 250 mil mortesatribuíveis a FR ao ano. A maior parte dos casos ocorre na faixa etária entre 5e 34 anos de idade, sendo os casos antes de 4 anos de idade extremamente raros.

 

Fisiopatologia

 

Osmecanismos patogênicos da FRA não são completamente conhecidos. A FRA é umacomplicação não supurativa tardia da faringite estreptocócica, e a infecçãoestreptocócica é uma condição necessária para que ocorra a FR. O local dainfecção estreptocócica também é importante; assim, a FR só ocorre apósfaringite estreptocócica ou surtos de escarlatina, não se manifestando compneumonia e outras infecções estreptocócicas.

O risco dedesenvolver FR após infecção estreptocócica cutânea parece ser limitado aregiões tropicais. A ocorrência também depende do tipo de cepa, mas mesmoinfecções por cepas sabidamente reumatogênicas implicam em risco de apenas 1 a3% de desenvolver FR. Alguns estudos questionam a existência de cepasreumatogênicas, implicando que qualquer cepa tem potencial de induzir respostaindutora de FR.

Osestreptococos apresentam diversos componentes que podem apresentar semelhançaquímica com estruturas presentes em tecidos humanos (mimetismo antigênico), induzindoa formação de anticorpos, configurando a chamada reação cruzada. A Proteína M cujafunção consiste em dificultar a fagocitose pelas células imunológicas dohospedeiro é capaz de induzir anticorpos contra a tropomiosina muscular devido àsemelhança da ß-D-glicosamina, que tem epípetos similares à miosina cardíaca. Outrasproteínas também parecem estar envolvidas nessa reação imune cruzada.

Dessaforma, a FR resulta de uma resposta imunológica exagerada aos estreptococos ß-hemolíticosdo grupo A que originam anticorpos que reagem de forma cruzada aos tecidos docoração, articulações, pele e sistema nervoso central. Pacientes com históriade FR estão predispostos a recorrer a infecções, e infecções repetidas levam adanos cardíacos progressivos.

Apredisposição genética parece exercer um papel importante na gênese da FR comuma associação importante de ocorrência da doença em gêmeos monozigóticos evários polimorfismos genéticos associados com risco aumentado dedesenvolvimento de FR.

 

Características Clínicas

 

A FR agudaocorre, aproximadamente, 3 semanas após o início da faringite (variando de 1 a4 semanas). Até um terço dos pacientes com FRA documentada não se lembra de tertido faringite no mês anterior.

Diversasmanifestações podem estar presentes na apresentação com:

·              Cardite com ou sem valvulite (pancardite): 50a 70% dos casos.

·              Artrite: normalmente, poliartrite migratóriaem 35 a 66% dos casos.

·              Coreia: presente em 10 a 30% dos casos.

·              Nódulos subcutâneos: 0 a 10% dos casos.

·              Eritema marginado: <6% dos casos.

 

Aapresentação inicial tem duas formas características. A mais comum,representando 70 a 75% dos casos, é na forma de doença febril aguda, raramentedurando mais de 2 semanas sem um padrão característico da febre. Juntamente coma febre, manifestações maiores de FRA podem estar presentes, incluindo artrite,cardite, coreia, nódulos subcutâneos e eritema marginado. Outra forma mais raraé a apresentação com alterações neurológicas/comportamentais,caracteristicamente a coreia de Syndeham; nesses últimos pacientes, a artrite écomumente ausente.

A artriteé, frequentemente, a manifestação específica mais precoce, ocorrendo nosprimeiros 21 dias após a infecção estreptocócica. Em geral, a artrite ocorre naforma de poliartrite migratória de grandes articulações. A duração da artrite costumaser menor que 2 a 3 semanas, com cada articulação sendo afetada por 1 a 3 dias,e com resposta drástica ao uso de ácido acetilsalicílico e outrosanti-inflamatórios não esteroidais, evoluindo para a cura completa, raramentecom sequelas.

Empacientes com uso precoce de anti-inflamatórios não esteroidais, pode ocorrerinterrupção do processo de migração da artrite, causando a falsa impressão dese tratar de monoartrite. O quadro articular pode, ainda, ser incaracterísticocom artrite aditiva, com duração mais prolongada. O aparecimento da artrite frequentementecoincide com aumento no título de anticorpos estreptocócicos.

Asarticulações maiores mais envolvidas são joelhos, tornozelos, cotovelos epunhos, e a dor pode ser mais intensa do que os achados físicos sugerem. Examesradiológicos apresentam apenas efusões sinoviais normalmente discretas, e aanálise do líquido sinovial costuma revelar um líquido inflamatório estéril.

A cardite estápresente em 65% dos casos de FR no nosso País e, normalmente, a manifestaçãofaz o diagnóstico. As cardites subclínicas podem aparecer antes do quadro deartrite. As manifestações cardíacas da FR podem ser sutis e incluem sintomas esinais de pericardite, miocardite e endocardite, podendo aparecer em até 6semanas da infecção estreptocócica. A endocardite reumática é a manifestaçãoprincipal, e a valva mitral é a válvula mais comumente afetada na FR, causandoregurgitação mitral.

Ainflamação do endocárdio valvar pode resultar em deformidade permanente ecomprometimento de uma ou mais válvulas cardíacas ao longo de décadas. Lesõesestenóticas das valvas mitral ou aórtica são incomuns na apresentação, mas sãomanifestações tardias comuns da doença reumática crônica.

A coreiade Syndeham, também conhecida como coreia menor ou dança de São Vito, écaracterizada por movimentos aleatórios, rápidos, não rítmicos e sem propósito,em geral das extremidades superiores e da face e comumente unilaterais ouassimétricos e desaparecem durante o período de sono. Alterações emocionaispodem acompanhar o quadro. A coreia é relativamente rara, sendo mais comum emmulheres e tende a ocorrer após um período de latência mais longo do que as outrasmanifestações, embora, em uma pequena porcentagem dos pacientes, pode ser amanifestação inicial.

O eritemamarginado e os nódulos subcutâneos são encontrados em menos de 10% dos casos deFRA. Sua presença, no entanto, deve sugerir o diagnóstico. O eritema marginadoé não pruriginoso, róseo, indolor, com extensão centrífuga e evanescente, emgeral com duração de poucas horas. Envolve sobretudo o tronco, mas também osmembros, porém poupando a face.

Os nódulossubcutâneos costumam ser de poucos milímetros até 2cm, ou seja, do tamanho deuma ervilha, e não respondem à terapia. Eles, em geral, aparecem sobre assuperfícies ósseas próximas a tendões dos punhos, cotovelos, joelhos e,ocasionalmente, a coluna, com os cotovelos sendo a estrutura mais comumenteenvolvida, e a pele ao redor, normalmente, não apresenta sinais inflamatórios.Podem ocorrer precocemente na FR ou várias semanas após a infecçãoestreptocócica e aparecerem principalmente em pacientes com cardite de maiorintensidade.

Asmanifestações menores incluem febre, artralgias, em geral em múltiplasarticulações. Alguns raros pacientes podem apresentar a chamada artropatia deJaccoud, em que alterações de tecidos periarticulares podem dar a impressão dedeformidade articular. Essas alterações são transitórias, indolores e nãoalteram a capacidade funcional.

 

Exames Complementares e Diagnóstico

 

Nãoexistem alterações laboratoriais nem marcadores sorológicos patognomônicos deFR e, por esse motivo, o diagnóstico se baseia em critérios diagnósticos. Em1944, Jones formulou critérios maiores e menores para o diagnóstico de IRA.Após múltiplas revisões, os critérios de Jones continuam sendo a basediagnóstica para essa doença.

Odiagnóstico da FR requer evidência de infecção prévia por estreptococos e, pelomenos, duas manifestações maiores, ou uma manifestação maior e duas menores,dentre os critérios de Jones. Embora as culturas da garganta sejam geralmentenegativas no momento do início clínico da FRA, a antistreptolisina pode serutilizada para o diagnóstico, e os títulos de anticorpos permanecem positivos por4 a 6 semanas a partir do momento da infecção.

Sãoconsiderados diagnósticos de infecção estreptocócica prévia:

·              Cultura positiva para estreptococo ß-hemolíticodo grupo A.

·              Teste rápido positivo para antígenoestreptocócico.

·              Títulos de Aslo elevados.

 

A sorologiapara estreptococos também pode ser útil para o diagnóstico de infecção préviapor estreptococos devido ao aparecimento tardio de suas manifestações. Acultura de orofaringe, infelizmente, é negativa em 75% dos casos no momento em queas manifestações de FR aparecem, e o teste rápido também costuma ser negativo;muitas vezes, o diagnóstico de infecção estreptocócica prévia é difícil de serconfirmado a acaba dependendo dos títulos de Aslo.

Avelocidade de sedimentação de eritrócitos (VHS) e os níveis de proteína C-reativa(PCR) são tipicamente elevados, e um intervalo PR prolongado noeletrocardiograma é comum e sugestivo do diagnóstico de FR. O ecodopplercardiogramadeve ser solicitado na suspeita de FR por ser um exame útil no diagnóstico devalvulopatias discretas, de disfunção miocárdica e pericardite.

Examespara afastar outros possíveis diagnósticos devem ser considerados, comohemoculturas para endocardite (presença de febre e sopro deve levar àsuspeição), cultura do líquido sinovial nas monoartrites, anticorpo antinuclear(FAN) e fator reumatoide e anticorpos contra peptídeos citrulinados quando apoliartrite não puder ser diferenciada de lúpus eritematoso sistêmico (LES) e artritereumatoide (AR).

Odiagnóstico, conforme já mencionado, é feito com base na presença de doiscritérios maiores ou um critério maior e dois menores. Esses critérios estãosumarizados no Quadro 1:

 

Quadro 1

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS DE JONES PARA FEBRE REUMÁTICA

Critérios maiores

·               Cardite

·               Poliartrite

·               Coreia

·               Eritema marginatum

·               Nódulos subcutâneos

Critérios menores

·               Artralgias

·               Febre

·               Aumento da taxa de sedimentação de eritrócitos ou nível de PCR

·               Intervalo PR prolongado

Evidência de infecção estreptocócica prévia

·               Cultura de garganta positiva para estreptococos ß-hemolíticos do grupo A ou teste de antígeno estreptocócico rápido positivo

·               Títulos elevados ou crescentes de anticorpos estreptocócicos, geralmente antiestreptolisina O

PCR: proteína C-reativa.

 

Manejo

 

Todos ospacientes com FRA devem receber antibioticoterapia, independentemente dahistória clínica de faringite, com o objetivo de erradicar a presença deestreptococo do grupo A. O tratamento antibióticoapropriado reduz a frequência de FR quando administrado até 9 dias após inícioda faringite, e níveis adequados de antibiótico devem ser mantidos por 10 diaspara erradicação do estreptococo.

A maior parte dos pacientes apresenta melhorasignificativa da faringoamigdalite após 2 a 3 dias do início do quadro, com ousem tratamento, o que dificulta a terapêutica oral durante os 10 dias detratamento necessários; logo, a dose intramuscular de penicilina G é preferida emcomparação com o tratamento por via oral, pela facilidade posológica e garantiade tratamento.

Opções de antibioticoterapia via oral incluemamoxacilina associada ou não ao ácido clavulânico e ampicilina. Outrosantibióticos, como as cefalosporinas (cefalexina, cefadroxil, cefaclor,cefuroxime) são opções terapêuticas aceitáveis. Os macrolídeos têm eficáciasemelhante à da penicilina V. O tratamento da artrite consiste no uso deagentes anti-inflamatórios, geralmente ácido acetilsalicílico, administradosaté que os sintomas estejam ausentes e a taxa de sedimentação de eritrócitos ea concentração de PCR se normalizem.

Pacientes com cardite grave são frequentemente tratados com corticosteroides,mas nenhuma evidência suporta esse tratamento. Pacientes com insuficiênciacardíaca devem ser tratados conforme a recomendação de diretrizes. O tratamentode pacientes com FRA envolve apenas alívio dos sintomas e não diminui a probabilidadede progressão para doença cardíaca crônica.

Aprevenção primária envolve o tratamento de pessoas com faringite estreptocócicado grupo A dentro de 9 dias do início dos sintomas, porque isso diminui muito orisco de FRA. Pacientes com história de FR devem receber antibióticosprofiláticos contínuos (geralmente penicilina) para prevenir recidivas. Aduração recomendada da profilaxia secundária varia de acordo com a presença e agravidade do envolvimento cardíaco.

Asrecomendações de diretrizes em relação à profilaxia secundária são asseguintes:

·              Pacientes sem cardite: até os 18anos ou tempo mínimo de 5 anos, com preferência pelo período mais longo.1

·              Pacientes com cardite na fase aguda, mas semcardiopatia crônica residual: Até a idade de 25 anos ou tempo mínimo de 10anos, com preferência pelo período mais longo.

·              Pacientes com cardiopatia crônica residual ousubmetidos à implantação de próteses valvares: tempo indeterminado.

 

Opções para profilaxia secundária incluem:

·              Penicilina G Benzatina 1.200.000U, IM, a cada3 semanas.

·              Penicilina V, 125mg, VO, 2x/dia por 5 anos.

·              Eritromicina, 250mg, 2x/dia, VO.

 

 

Bibliografia

1-KosowskiJM, Takhar SS. Infectiveendocarditis, rheumatic fever and valvular heart disease in Rosen?s EmergencyMedicine 2018.

2-Gewitz MH, Baltimore RS, Tani LY, et al. Revision of theJones Criteria for the diagnosis of acute rheumatic fever in the era of Dopplerechocardiography: a scientific statement from the American Heart Association.Circulation 2015; 131:1806.

3- Gerber MA, Baltimore RS, Eaton CB, et al. Prevention ofrheumatic fever and diagnosis and treatment of acute Streptococcal pharyngitis:a scientific statement from the American Heart Association Rheumatic Fever,Endocarditis, and Kawasaki Disease Committee of the Council on CardiovascularDisease in the Young, the Interdisciplinary Council on Functional Genomics andTranslational Biology, and the Interdisciplinary Council on Quality of Care andOutcomes Research: endorsed by the American Academy of Pediatrics. Circulation2009; 119:1541.

4-Webb RH, Grant C, Harnden A. Acute rheumatic fever. BMJ2015; 351:h3443.

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