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Hemoglobinúria Paroxística Noturna

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 13/01/2021

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Ahemoglobinúria paroxística noturna (HPN), ou doença de Marchiafava-Micheli, éuma doença clonal rara do tecido hematopoiético capaz de afetar todas as suaslinhagens e que apresenta achados clínicos pouco habituais. Sua apresentaçãoinicial por vezes é como anemia hemolítica, mas ela é fundamentalmente umadoença da steam-cell que apresenta formação de granulócitos e plaquetasdefeituosos e eritropoiese anormal, e frequentemente seu diagnóstico é atrasadopor causa dessas características. Os eritrócitos anormais da HPN são maissuscetíveis a lise intravascular pelo complemento.

 

Epidemiologia

 

Adoença é rara, com incidência anual de 1 a 10 casos a cada milhão depessoas/ano. É possível que a incidência seja subestimada, pois trata-se de patologiade difícil diagnóstico. Ocorre principalmente em adultos, com a maioria dosdiagnósticos após os 30 anos de idade. Os homens são acometidos na mesmafrequência que as mulheres, e a distribuição da doença é mundial, acometendotodas as populações.

 

Etiologia e Patogênese

 

Ospacientes com HPN apresentam lise pelo complemento, a qual ocorre devido a defeitocelular. Esses defeitos celulares são associados à ausência de certas proteínasnas hemácias. Historicamente, duas proteínas foram descritas como diminuídas nessespacientes: a fosfatase alcalina leucocitária e a acetilcolinesterase deeritrócitos. Entretanto, elas não parecem ter grande influência na maiorsuscetibilidade da lise ao complemento dessas células. Posteriormente, adescoberta das proteínas regulatórias do complemento (CD55 e CD59) ajudou aelucidar a fisiopatologia dessa condição.

Oprincipal fator para o aparecimento da doença parece ser resultado de mutaçãosomática adquirida do gene PIG-A, cujo produto é essencial à biossíntese deglicosilfosfatidilinositol (GPI), um fosfolípide que é acrescentado adeterminadas proteínas logo após a sua tradução para fixá-las à membranacelular externa. Para ocorrer a alteração, é necessário que a mutação aconteçaem células clonais em autorrenovação e com clone em expansão. Várias mutaçõesdo PIG-A são descritas, a maioria resultando em produção de proteína instável ede rápida degradação. Os pacientes, além de apresentarem deficiência de GPI, proliferaçãoe transformação da steam-cell, com aparecimento de clone anormal, tambémapresentam grande número de deficiências de proteínas de membrana, que incluem principalmenteo decay acellarating fator (DAF ou CD55) e CD59. A proliferação e a transformaçãoda steam-cell com aparecimento desse clone anormal levam à formação decélulas com sensibilidade elevada àlise pelo complemento tanto pela via clássica como pela via alternativa. Aausência de CD59 parece ser o fator isolado com o papel mais importante no aumentoà sensibilidade à lise pelo complemento.

Fatoresde risco para a ocorrência dessas mutações incluem exposição a radioterapia,quimioterapia mutagênica e defeitos na capacidade de reparo do DNA.

Empacientes com anemia aplásica, a presença de clones de células da HPN ocorre em65% dos casos, e muitos pacientes com HPN têm algum grau de disfunção medularaté a aplasia.

Acausa de anemia em pacientes com HPN é principalmente a hemólise intravascular,mas fatores como disfunção de medula óssea e deficiência de ferro também desempenhamum papel. A trombose é um achado característico da doença e apresenta patologiamultifatorial. A hemoglobina livre liberada pela hemólise intravascular consumeóxido nítrico e causa vasoconstrição. Outros fatores contribuintes incluem aliberação de micropartículas pró-coagulantes e deficiência de fatoresanticoagulantes e fibrinolíticos, além do aumento de C5a, que estimula apró-coagulação e libera citocinas inflamatórias, como IL-6, IL-8 e fator denecrose tumoral.

 

Achados Clínicos

 

Osachados clínicos são múltiplos, e sua gravidade depende do tamanho do clone deHPN, embora essa correlação seja imperfeita. Fadiga e dispneia são descritas em80% e 64% dos casos. O achado mais típico, que é a hemoglobinúria, ocorre em62% dos pacientes. Dor abdominal é comum, sendo relatada em 44% dos pacientes,podendo ser associada com quadros trombóticos. Como a hemoglobinúria consumeóxido nítrico, pode ocorrer dor abdominal em espasmo muscular, assim como espasmosesofágicos e disfagia por distonia muscular. Disfunção erétil é descrita em poucomenos de 40% dos casos.

Outrasmanifestações incluem supressão de medula óssea, em 44% dos casos, dor torácica,em 33% dos pacientes, além de trombose e lesão renal, em cerca de 15% doscasos. Cefaleia, icterícia, confusão mental e disfagia são também descritas.

 

1-Hemoglobinúria

 

Oprincipal achado é a presença de hemoglobinúria, descrita como urina vermelhaou amarronzada, que ocorre em 60 a 65% dos pacientes, em geral pela manhã. Noentanto, essa relação cíclica não ocorre em todos os pacientes, e é mais importantea relação com o sono do que o período do dia. Uma das teorias que tentaramexplicar esse achado era a de que ocorria diminuição do PH sanguíneo durante osono, mas este não parece ser o caso.

Namaioria das vezes, o aparecimento da hemoglobinúria é irregular. Outros fatoresprecipitantes incluem infecções, cirurgia, exercício ou exames radiológicos comcontraste.

 

2-Hemólisecrônica

Paroxismosde hemólise dão o nome à síndrome, mas hemólise crônica é mais frequente. Ospacientes podem apresentar sinais de anemia secundária a hemólise crônica, comodispneia, palidez cutânea, fraqueza. Alguns pacientes podem ter esplenomeglia,mas a maioria apresenta apenas aumento discreto do baço. Sintomas que parecemter relação com a hemólise nesses pacientes incluem episódios de dor abdominal,espasmo esofágico, impotência e disfunção erétil, que pioram durante esses episódios.É descrita, ainda, devido ao consumo de óxido nítrico, hipertensão pulmonar empouco menos da metade dos pacientes em algumas séries.

Agravidade da anemia hemolítica tem relação com o número de células defeituosasou células HPN. Quando há completa ausência de células com GPI, tem-se o que sechama de ?células HPN tipo 3?. Quando essa ausência é parcial, existem as célulasHPN tipo 2, e, quando estas são normais, têm-se as células HPN tipo 1.

 

Deficiência de Ferro

 

Comperda da hemossiderina e da hemoglobina, podem ocorrer ferropenia e suasmanifestações, como a pica; entretanto, são muito raras. A hematopoieseineficaz é outra causa de anemia nesses pacientes.

 

Sangramento

 

Ospacientes podem ter plaquetopenia, que apresenta gravidade variável; eventualmente,podem ocorrer fenômenos hemorrágicos.

 

Trombose

 

Ospacientes apresentam tendência trombótica, embora o motivo não esteja bemexplicado, e tromboses representam a maior causa de morte nesses pacientes. Aprevalência de mutação no fator V de Leyden é semelhante à do restante dapopulação.

Édescrito desenvolvimento de síndrome de Budd-Chiari em até 15% dos pacientes. Outrasmanifestações importantes são infarto intestinal e hipertensão pulmonar. Porsua vez, tromboses arteriais, embora possam ocorrer, parecem raras. Ospacientes têm sítios atípicos de tromboses venosas, incluindo veias hepáticas, veiacava inferior, veias dérmicas e trombose venosa cerebral.

Ematé 30 a 40% dos casos, o óbito nesses pacientes é relacionado a eventostrombóticos.

 

Distonia

 

Édescrita distonia de musculatura lisa nesses pacientes, o que pode levar asintomas como dor abdominal e disfagia, além de disfunção erétil. O mecanismoenvolve metabolismo de óxido nítrico pelas hemácias hemolisadas.

 

Hipertensão Pulmonar

 

Depleçãode óxido nítrico na circulação pulmonar e tromboembolismo pulmonar crônicopodem levar ao aparecimento de hipertensão pulmonar nesses pacientes, mashipertensão pulmonar significativa é rara.

 

Gestação

 

Associaçãocom aumento do risco de aborto e trombose venosa profunda; entretanto, um terçodas gestações cursa sem quaisquer complicações.

 

Manifestações Renais

 

Édescrita maior prevalência de HAS e de alterações tubulares. Aumento de tamanhorenal e infartos corticais também são comuns. Quando os pacientes apresentamhemoglobinúria maciça, pode ocorrer lesão tubular associada ao pigmento; já nahemólise crônica, a hemossiderose renal pode levar a alteração da função renal.Os pacientes podem evoluir com insuficiência renal em quase 15% dos casos.

 

Manifestações Neurológicas

 

Cefaleiasevera e dores em região periocular são descritas, mas geralmente semalterações neurológicas associadas. Trombose venosa cerebral é grave, masinfrequente.

 

Leucemia, Mielodisplasia e Infecções

 

Mielodisplasiaé descrita em 5 a 9% dos pacientes com HPN, principalmente no subtipo de anemiarefratária da síndrome mielodisplásica; já a incidência de leucemia parece ser menor.Apesar de séries descreverem que até 5% dos pacientes podem ter leucemia aguda,dois grandes estudos de longa duração verificaram que apenas 0,7% dos pacientesdesenvolveram leucemia aguda. A forma mais comum de leucemia nesses pacientes éa leucemia mieloide aguda, muitas vezes o subtipo de eritroleucemia.

Infecçõessão mais frequentes nesses pacientes e parecem ter relação com a presença degranulocitopenia, e não com deficiências de proteínas de receptor. Particularmenteinfecções por Neisseria podem ocorrer, e recomenda-se vacinaçãoespecífica para esses pacientes.

 

Achados Laboratoriais

 

Anemiapode ser severa, com alguns pacientes podendo ter hemoglobina menor que valoresde 5 g/dL. Os pacientes costumam apresentar reticulocitose de leve a moderadacom discreta macrocitose; porém, se houver deficiência de ferro, podem ocorrerhipocromia e microcitose. Achados típicos de hemólise, como aumento de LDH e bilirrubinaindireta, e diminuição de haptoglobina são frequentes. O esfregaço de sangueperiférico mostra aumento de hemoglobina livre no soro.

Pacientescom anemia hemolítica com Coombs negativo devem criar a suspeita para odiagnóstico de HPN.

Osleucócitos por sua vez são tipicamente diminuídos assim como a fosfatasealcalina leucocitária. Os pacientes podem apresentar citopenias isoladas e atépancitopenia

Namedula óssea, há, em geral, hiperplasia eritroide discreta. Ferropenia pode sersevera, às vezes com ausência de ferro medular, e, em uma pequena parcela doscasos, a medula óssea é hipocelular, mimetizando anemia aplástica ou a síndromemielodisplásica variante hipocelular.

Oexame de urina revela hemoglobinúria e eventualmente presença de cilindroshemáticos; a presença de hemossidenúria é uma das maiores pistas para odiagnóstico e é um achado constante.

Ospacientes podem ainda apresentar aumento de ureia e creatinina por lesão renal,alteração de função hepática devido a trombose hepática e citopenias levescausadas pela trombose de veia portal e esplênica.

 

Diagnóstico

 

Odiagnóstico deve ser considerado nas seguintes situações:

-emtodos pacientes com pancitopenia de causa desconhecida;

-hemóliseadquirida principalmente se teste de Coombs negativo e principalmente se ahemólise for intravascular;

-leucopeniaou trombocitopenia com aumento de reticulócitos;

-anemiaaplásica;

-trombosevenosa de veias abdominais e cerebrais;

-mielodisplasiana variante de anemia refratária;

-pacientecom dor abdominal ou espasmo esofageano na vigência de hemólise.

 

Oteste de rastreamento tradicional é o teste de Ham (em que se diminui o PH daamostra) ou o teste da sucrose, que avaliam a presença de hemólise após esses estímulos.A citometria de fluxo mostra a ausência de CD55 e CD59, sendo hoje o principalexame diagnóstico.

Umdiagnóstico diferencial é a síndrome HEMPAS (Hereditary ErythroblasticMultinuclearity with a Positive Acidified Serum lysin test).

Ospacientes podem ser classificados em:

-HPNclássica: HPN com sinais de hemólise, mas sem outras alterações de medula óssea;

-HPNassociada com outras alterações de medula óssea, como anemia aplásica, síndromemielodisplásica ou mielofibrose;

-HPNsubclínica: sem evidências de hemólise.

 

Tratamento

 

Éimportante fazer a monitorização do paciente. Saber níveis de hemoglobina, DLH,haptoglobina e bilirrubinas de base ajuda a verificar quando ocorreexacerbações, e, caso ocorra pancitopenia significativa, é necessário avaliar amedula óssea. As alternativas terapêuticas para esses pacientes incluem:

 

-Transfusões:podem ser necessárias, mas indicadas apenas se necessidade clínica, comopacientes com hemoglobina menor que 7 g/dL. Transfusões desnecessárias podemaumentar a hemoglobinúria.

-Eculizumab:trata-se de um anticorpo monoclonal que se liga ao componente C5 do complemento,inibindo sua ativação. A medicação é associada com diminuição da necessidade detransfusão, diminuição dos episódios de hemólise e melhora da qualidade devida. Para pacientes com transfusões recentes, o uso de agentes anticomplementocomo o eculizumab é indicado. De fato, o eculizumab é a única terapêuticaespecífica estabelecida. A medicação é recomendada em pacientes com fadigasignificativa, dependência transfusional, paroxismos de dor, trombose, lesãorenal progressiva e disfunção de órgãos. Em pacientes com muitos episódios dedor por distonia muscular associada, também há indicação do uso de eculizumab.

-Reposiçãode ferro: esses pacientes frequentemente apresentam perda de ferro, de formaque a reposição é indicada e geralmente realizada por via oral. No entanto, elapode aumentar a hemoglobinúria por elevar a produção medular. A necessidade deferro pode ser de 10 a 20 vezes acima do normal, e, exceto em pacientes querealizarão transfusões, será necessária a reposição do mineral.

-Ácidofólico: é necessário em todos os pacientes devido às necessidades medularesaumentadas.

-Esteroides:são descritos benefícios tanto com glicocorticoides como com esteroides. Esquemascomuns são o de prednisona 20 a 60 mg em dias alternados ou oximetolona 20 a 30mg/dia, que leva a aumento discreto dos níveis de hemoglobina. Não foram descritosbenefícios significativos com o danazol, embora alguns autores ainda advoguemseu uso. Em geral, o uso está restrito aos períodos de hemólise.

-Anticoagulantes:uso profilático tem sido descrito, mas sem evidência clara de benefício. Sua maiorutilidade é em pacientes com síndrome de Budd-Chiari.

-Esplenectomia:pode beneficiar alguns pacientes com hemólise importante, mas em geral não éindicada. Deve-se iniciar anticoagulação profilática antes do procedimento,pois há alta taxa de trombose após.

-Transplantede medula óssea: eficaz, mas associado a complicações. Indicado a pacientes compancitopenia e principalmente neutropenia grave por anemia aplásica e episódiostrombóticos graves. O transplante deve ser considerado, ainda, em crianças como diagnóstico da síndrome.

-Episódiostrombóticos: em HPN de grandes veias ou em situações de risco de morte, a trombólisepode ser realizada em pacientes com aparecimento de sintomas até 4 dias. Oprocedimento deve ser realizado com cautela se trombose de seios venososcerebrais, devido ao risco de evento hemorrágico. A anticoagulação é indicada geralmentecom heparina, e pacientes com indicação de anticoagulação crônica podem recebervarfarina. Os pacientes com tromboses repetidas podem também se beneficiar deterapia anticomplemento com eculizumab.

 

Considerações Adicionais do Uso de Eculizumab

 

Adose é de 600 mg endovenosa 1 vez por semana por 4 semanas e depois 900 mg endovenosapor semana, com monitoração dos níveis de hemoglobina, reticulócitos, DHL,bilirrubinas e haptoglobina.

 

Outrasopções de tratamento:

-eritropoetina;

-suprimirclone anormal na medula com 6-mercaptopurina ou ciclosporina ou usarprecursores de granulócitos, como o C-GSF.

 

Evolução e Prognóstico

 

Grandevariabilidade na evolução. Em casos raros, pode ocorrer óbito alguns meses apóso diagnóstico. Na maioria das vezes, a doença assume curso crônico com gravidadevariável. O aparecimento de leucemia e mielodisplasia é raro, mas bemdocumentado.

 

Sobrevida:

 

65%em 10 anos;

48%em 15 anos.

 

Bibliografia

 

1-           Brodsky RA. How I treat paroxysmalnocturnal hemoglobinuria. Blood 2009; 113:6522.

2-           Hill A,et al. Paroxysmal nocturnal hemoglobinuria. Nat Rev Primers 2017; 3: 17028.

3-           Brodsky RA. Paroxysmal nocturnalhemoglobinuria. Blood 2014; 124:2804.

Paroxysmal nocturnal hemoglobinuria.Willia

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