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N-acetilcisteína em insuficiência hepática aguda não relacionada ao uso de paracetamol

N-acetilcisteína em insuficiência hepática aguda não relacionada ao uso de paracetamol

 

N-acetilcisteína melhora a sobrevida livre de transplante em insuficiência hepática aguda de baixo grau não relacionada ao uso de paracetamol1 [Link para Abstract]

 

Contexto Clínico

            Insuficiência hepática aguda é uma condição muito grave e associada a elevada mortalidade e que frequentemente leva a necessidade de transplante hepático de urgência. Nos Estados Unidos e Europa a causa mais frequente de insuficiência hepática aguda é a intoxicação por paracetamol (intencional ou não) e, nestes casos, o tratamento padrão é a administração de N-acetilcisteína endovenosa, que previne ou diminui a lesão hepática. Já as outras causas de insuficiência hepática aguda não são tratadas com N-acetilcisteína, embora alguns estudos sugiram que a N-acetilcisteína também possa beneficiar pacientes com outras formas de insuficiência hepática aguda, através de melhora na oferta de oxigênio aos tecidos e aumento no fluxo sanguíneo hepático,2,3,4,5,6 mas não há ensaios clínicos que comprovem a melhora do prognóstico nestes casos.

 

O Estudo

            Ensaio clínico randomizado, multicêntrico, placebo controlado e duplo cego (características que conferem qualidade ao estudo). Foram incluídos na randomização pacientes acima de 18 anos com insuficiência hepática aguda (com qualquer grau de encefalopatia ou INR > 1,5) não causada por paracetamol, isquemia, gravidez ou câncer. Um total de 173 pacientes foram randomizados para N-acetilcisteína endovenosa por 72 horas (n = 81) ou placebo (n = 92). Neste estudo, as principais causas de insuficiência hepática aguda foram: drogas (n = 45), hepatite autoimune (n = 26), hepatite B (n = 37) e indeterminada (n = 41).

 

Resultados

            A sobrevida em 3 semanas não diferiu nos dois grupos (70% N-acetilcisteína e 66% placebo), mas a sobrevida livre de transplante foi maior no grupo tratamento do que no grupo placebo (40% vs 27%; p = 0,04), principalmente devido ao benefício nos pacientes com coma estágios I e II (52% vs 30%; p = 0,01). As taxas de transplante foram menores no grupo N-acetilcisteína (32% vs 45%), porém sem significância estatística (p = 0,09). Os pacientes tratados também tiveram tempo de internação menor (média de 9 vs 13 dias), porém também sem significância estatística (p = 0,56).

 

Aplicação para prática clínica

            Embora o estudo seja de boa qualidade, ainda é um estudo com poucos pacientes e os dados idealmente deveriam ser confirmados por outros estudos maiores. No entanto, dada a raridade desta condição, isso não deve ocorrer em um curto espaço de tempo e, possivelmente, nem venha a ocorrer. No estudo em questão foram necessários oito anos para alocar os 173 pacientes. Logo, na decisão se estes dados são suficientes para modificar a prática clínica devemos levar algumas coisas em consideração:

 

1.     Toxicidade do tratamento – trata-se de uma droga pouco tóxica e o único efeito colateral que ocorreu com mais freqüência com a medicação foi náusea (14% vs 4%).

2.     Custo – o tratamento é de baixo custo.

3.     Efeitos de longo prazo – muitos estudos demonstram benefícios de algumas drogas de uso contínuo em ensaios clínicos de poucos anos de duração. Nestes casos, é importante considerar que talvez existam efeitos adversos em períodos mais longos de utilização da medicação. Isso não se aplica a este estudo, visto que a droga é utilizada somente por 72 horas

4.     Quem patrocinou o estudo? – estudos patrocinados pela indústria farmacêutica são associados mais frequentemente a resultados positivos do que estudos não patrocinados. Neste estudo nenhum dos autores declarou qualquer conflito de interesses.

5.     Os pacientes podem esperar novos estudos? – exemplificando com um estudo recente demonstrando benefícios do uso de estatina em pacientes não dislipidêmicos com PCR elevado (ver: editorial do Estudo Júpiter): embora o estudo tenha mostrado benefícios estatisticamente significativos em um estudo robusto com 18.000 pacientes, o risco da população do estudo é muito baixo, sendo prudente análise de custo-efetividade e outras ponderações antes de se adotar tais resultados para a prática clínica. Os pacientes deste estudo, pelo contrário, tem doença extremamente grave e de rápida evolução e qualquer tratamento possivelmente benéfico deverá ser considerado imediatamente.

 

            Levando tudo isso em consideração e assumindo que melhores dados não surgirão em um curto período de tempo em virtude da relativa raridade da condição, é opinião destes editores que o tratamento com N-acetilcisteína deva ser considerado em pacientes com insuficiência hepática aguda não apenas nos pacientes com intoxicação por paracetamol, mas também em outras condições (exceto isquemia, câncer e gravidez). Embora os dados não sejam definitivos, a baixa toxicidade e o baixo custo sugerem que esta escolha levará a um possível benefício e dificilmente prejudicará o paciente ou onerará o nosso sistema de saúde.

 

Esquema de utilização da N-acetilcisteína no estudo

 

1.     Diluir em glicose a 5%

2.     Dose inicial: 150 mg/kg/h em 1 hora

3.     Dose nas 4 horas seguintes: 12,5mg/kg/h pelas 4 horas seguintes

4.     Dose nas 67 horas seguintes: 6,25 mg/kg/h

 

Bibliografia

1.     Lee WM et al Intravenous N-Acetylcysteine Improves Transplant-Free Survival in Early Stage Non-Acetaminophen Acute Liver Failure. Gastroenterology 2009;137:856–864. [link para abstract]

2.     Harrison PM, Wendon JA, Gimson AE, et al. Improvement by acetylcysteine of hemodynamics and oxygen transport in fulminant hepatic failure. N Engl J Med 1991;324:1852–1857.

3.     Walsh TS, Hopton P, Philips BJ, et al. The effect of N-acetylcysteine n oxygen transport and uptake in patients with fulminant hepatic failure. Hepatology 1998;27:1332–1340.

4.     Rank N, Michel C, Haertel C, et al. N-acetylcysteine increases liver blood flow and improves liver function in septic shock patients: results of a prospective, randomized, double-blind study. Crit Care Med 2000;28:3799–3807.

5.     Zwingmann C, Bilodeau M. Metabolic insights into the hepatoprotective effect of N-acetylcysteine in mouse liver. Hepatology 2006;443:454–463.

6.     Hein OV, Ohring R, Schilling A, et al. N-acetylcysteine decreases lactate signal intensities in liver tissue and improves liver function in septic shock patients, as shown by magnetic resonance spectroscopy: extended case report. Crit Care 2004;8:R66–R71.