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Práticas na solicitação de papanicolau na atenção primária

Práticas na solicitação de papanicolau na atenção primária

 

Diferenças entre especialidades nos relatos de médicos de atenção primária a respeito das práticas em relação à solicitação do papanicolau: um inquérito nacional, 2006 a 20071 [Link para o Abstract].

 

Fator de impacto da revista (Annals of Internal Medicine): 17,457

 

Contexto Clínico

            Existem diretrizes bem definidas sobre o rastreamento de câncer de colo de útero que foram revisadas em 2002. O US Preventive Services Task Force (USPSTF) recomenda2 que o rastreamento do câncer de colo de útero seja realizado em todas as mulheres com vida sexual ativa e que tenham colo de útero. O USPSTF encontrou boas evidências provenientes de múltiplos estudos observacionais sugerindo que o rastreamento através da citologia cervical (papanicolau) reduz a incidência e a mortalidade pelo câncer de colo de útero. Não há boas evidências diretas de qual seria a idade ótima de início e término do rastreamento nem de qual seria o intervalo ideal, entretanto evidências indiretas sugerem que o rastreamento deva ser iniciado em até três anos após o início da atividade sexual ou a partir dos 21 anos (o que chegar primeiro), e que seja realizado pelo menos a cada 3 anos. A maioria das organizações recomenda que o intervalo de 3 anos seja adotado após a realização de 2 a 3 rastreamentos anuais com resultados negativos, uma vez que a sensibilidade de apenas um exame citológico para lesões de alto grau é de apenas 60 a 80%. O USPSTF não recomenda que o rastreamento seja feito em mulheres com mais de 65 anos que tenham tido rastreamento recente adequado com citologias normais e não estejam sob alto risco de câncer de colo. Também não se recomenda a realização de rastreamento em mulheres que tenham realizado uma histerectomia total por doença benigna. Entretanto pouco se conhece sobre as práticas de rastreamento do câncer cervical (incluindo início, intervalo e término) entre os médicos de atenção primária. Sendo assim, os autores realizaram um inquérito para avaliar esta prática entre médicos de atenção primária nos Estados Unidos.

 

O Estudo

            Trata-se de um inquérito populacional (tipo transversal), realizado com uma amostra nacionalmente representativa de médicos, em 2006 e 2007, que incluiu 1212 médicos generalistas da atenção primária. O inquérito incluiu questões sobre as características e recomendações do médico e do serviço de origem quanto à realização de rastreamento de câncer cervical. As questões eram apresentadas na forma de casos clínicos (vinhetas) descrevendo mulheres pela idade e pela história sexual e de rastreamento prévio. Uma medida composta (recomendações consistentes com as diretrizes) foi criada utilizando-se respostas aos casos clínicos nas quais as principais diretrizes eram uniformes.

 

Resultados

            A maioria dos médicos (91%) relatou prover rastreamento com papanicolau para suas pacientes elegíveis (IC 95% 89,0% - 92,6%). Entre os médicos que provinham rastreamento (n=1114) as práticas de rastreamento, incluindo o número de testes solicitados, a utilização de sistemas com lembretes para os pacientes e o método de citologia utilizado, variaram de acordo com a especialidade médica (p<0,001). Embora a maioria dos provedores de rastreamento relatasse que as diretrizes clínicas tinham uma grande influência em suas práticas, poucos faziam recomendações consistentes com tais diretrizes para início e término do rastreamento nas suas respostas a vários casos clínicos (22,3% IC 95% 19,9% - 25%). Recomendações consistentes com diretrizes clínicas variaram de acordo com a especialidade médica (ginecologia/obstetrícia = 16,4%; clínica médica/medicina interna = 27,5%; medicina de família/generalista = 21,1%). Comparados aos ginecologistas/obstetras, os especialistas em medicina interna/clínica médica e os generalistas/médicos de família tinham uma chance maior de realizar recomendações consistentes com as diretrizes clínicas (OR: 1,98 IC95% 1,22 – 3,23 e OR:1,45 IC95% 0,99 – 2,13 respectivamente) na análise multivariada. Os autores concluem que as recomendações dos médicos da atenção primária para o rastreamento do câncer de colo de útero não são consistentes com as diretrizes de rastreamento, refletindo uma utilização excessiva do papanicolau. Concluem, ainda, que a implantação de intervenções efetivas que foquem em fatores potencialmente modificáveis relacionados aos médicos e aos serviços é necessária para melhorar a prática do rastreamento.

 

Aplicações para a Prática Clínica

            É um estudo muito interessante por nos mostrar como é a prática médica dos médicos de atenção primária no que concerne a um tipo específico, e muito bem sedimentado na prática médica, de rastreamento de doença. Embora os resultados nos mostrem que apenas 22,3% dos médicos fazem recomendações consistentes com as diretrizes clínicas, esta porcentagem pode, na verdade, estar superestimada, uma vez que os resultados se referem a recomendações realizadas no contexto de um estudo e para casos clínicos hipotéticos. Na prática clínica real, é possível que os médicos se distanciem ainda mais das recomendações das diretrizes. Embora existam críticas à forma como algumas diretrizes clínicas são confeccionadas, em geral seus objetivos são nobres, como melhorar a qualidade da assistência e alocar os recursos de forma mais eficiente. A reduzida taxa de aderência às diretrizes é um fato comum, principalmente na área do rastreamento de doenças, em que as recomendações são geralmente muito excessivas. Os famosos check-ups completos incluem um número absolutamente excessivo de exames, a maioria dos quais não tem indicação de ser realizado como rastreamento, levando a uma cascata de novos exames, que encarece a prática médica e produz iatrogenias, além de medicalizar a vida das pessoas. Esta prática, comum em serviços privados, tem contaminado até mesmo os serviços públicos. A não aderência a diretrizes de rastreamento é ainda mais comum quando se trata de um rastreamento para o qual existem recomendações diferentes de acordo com a sociedade de especialistas que as lançam. O exemplo típico se refere ao rastreamento do câncer de próstata, para o qual não existem evidências definitivas de benefício. O USPSTF não recomenda nem contra nem a favor, uma vez que as evidências atuais são insuficientes para avaliar o balanço entre risco e benefício do rastreamento de câncer de próstata em homens com menos de 75 anos, mas recomenda contra o rastreamento do câncer de próstata em homens com mais de 75 anos3.  Já as diretrizes das sociedades de urologia e oncologia recomendam o rastreamento do câncer de próstata em homens com mais de 50 anos anualmente com o PSA e o toque retal. Outro aspecto interessante do estudo é que os clínicos gerais e médicos de família fazem significativamente mais recomendações consistentes com as diretrizes que os ginecologistas. Este fato tem relação com a questão das sociedades de especialistas, que geralmente tem uma visão mais liberal em relação às recomendações de rastreamentos, e ao fato de especialistas da área em questão se sentirem mais aptos a realizar recomendações distintas das diretrizes, por “entenderem do assunto”. De qualquer forma é sempre bom lembrar que rastreamento de doenças não é um tipo de intervenção isenta de riscos, e que ao mesmo tempo em que podem salvar vidas, se indicados de forma embasada, podem causar sofrimento e iatrogenias se indicados de forma não baseada em evidências.

 

Bibliografia

1.     Yabroff KR, Saraiya M, Meissner HI, Haggstrom DA, Wideroff L, Yuan G, Berkowitz Z, Davis WW, Benard VB, Coughlin SS. Specialty Differences in Primary Care Physician Reports of Papanicolaou Test Screening Practices: A National Survey, 2006 to 2007. Ann Intern Med, 2009; 151(9):602-611.

2.     U.S. Preventive Services Task Force.  Guide to Clinical Preventive Services, 2001-2004. Screening for Cervical Cancer: Recommendations and Rationale [Link para a Recomendação].

3.     U.S. Preventive Services Task Force (USPSTF). Screening for Prostate Cancer. Recommendation Statement. Ann Intern Med 2008;149:185-191 [Link para a Recomendação].