Área de atuação: Medicina Ambulatorial
Especialidade: Medicina Interna, Pneumologia, Medicina de Família e Comunidade
Alguns estudos observacionais do tipo transversal têm mostrado uma associação de apneia obstrutiva do sono (AOS) e intolerância à glicose, resistência à insulina e diabetes melito do tipo 2 (DM tipo 2). Entretanto, não está demonstrado se a apneia do sono está independentemente associada ao desenvolvimento subsequente de diabetes melito tipo 2 (DM). Sendo assim, comentamos dois estudos que avaliaram as relações da AOS com o desenvolvimento de DM1 e o controle glicêmico noturno em pacientes com DM2.
O primeiro estudo1 é um estudo de coorte realizado nos EUA com veteranos de Connecticut. O estudo examinou 1.233 pacientes consecutivos encaminhados para avaliação de alterações respiratórias relacionadas ao sono. Deste total, 544 pacientes não tinham DM de base e realizaram uma polissonografia completa. A população de estudo foi dividida em quartis com base na severidade da apneia do sono medida pelo índice de apneia-hipopneia. O desfecho primário foi a incidência de DM, definido por uma glicemia de jejum > 126 mg/dL + um diagnóstico médico correspondente. A adesão à terapia de pressão positiva e seu impacto sobre o desfecho principal também foram avaliados.
Na análise não ajustada, um aumento na gravidade da apneia do sono associou-se com um risco aumentado de DM (p para tendência linear < 0,001). Após ajuste por idade, sexo, raça, glicemia de jejum de base, índice de massa corpórea (IMC) e mudança no peso, uma associação independente entre apneia do sono e DM incidente foi encontrada (OR por quartil = 1,43 IC95% 1,10-1,86). Entre os pacientes com apneia do sono mais grave (os dois quartis mais altos de severidade), 60% dos pacientes utilizavam regularmente o tratamento com pressão positiva, o que se associou com uma atenuação do risco de DM (p=0,04). Os autores concluem que a apneia do sono aumenta o risco de desenvolvimento de DM, independentemente de outros fatores de risco, e que, entre os pacientes mais graves, o uso de terapia com pressão positiva pode atenuar este risco.
O segundo estudo2 se trata de um pequeno estudo observacional em que foram avaliados 26 pacientes obesos ou sobrepeso com diabetes melito tipo 2 suspeitos de apresentarem AOS. Nos participantes com AOS (n=13), a glicemia noturna foi 38% mais elevada (principalmente na fase de sono REM) quando comparada com a glicemia dos pacientes sem AOS (p<0,008), independentemente do índice de massa corpórea.
Há muitas evidências de que a AOS é uma importante comorbidade do DM tipo 2. Estudos epidemiológicos indicam que 20 a 40% das pessoas com uma das condições também apresentam a outra. Embora a maior parte desta associação provavelmente se deva ao antecedente comum de obesidade, há evidências de que a AOS por si só predisponha ao desenvolvimento do DM tipo 2. Os dois estudos comentados aqui apontam para esta hipótese: a AOS é um fator de risco independente para hiperglicemia e desenvolvimento de DM, a despeito de outros fatores, incluindo idade, raça, sexo, glicemia de base, IMC e mudanças no IMC, e quanto maior sua gravidade, maior a incidência de DM. Uma pequena limitação deste estudo foi o fato de não ter havido ajuste para o grau de atividade física, uma variável de confusão potencial.
Inúmeros aspectos da fisiopatologia da AOS podem afetar adversamente o metabolismo de carboidratos, incluindo hipóxia, ativação simpática e disfunção hipotálamo-hipofisária em decorrência dos despertares noturnos, fragmentação do sono, inflamação sistêmica, alterações nos níveis de leptina e adiponectina, dentre outros. Além disso, parece que o tratamento da AOS com pressão positiva reduz a incidência de DM, como mostrou o primeiro estudo. Por fim, uma vez que ambas as condições são importantes fatores de risco, as implicações clínicas deste crescente corpo de evidências indicam uma necessidade de se considerar a presença destas duas condições em pacientes que apresentam uma delas. Do ponto de vista prático, em indivíduos com diabetes deve-se avaliar a presença dos aspectos clínicos cardinais da AOS (roncos, apneia presenciada e sonolência diurna) e depois, se necessário, investigar com polissonografia. Deve-se ressaltar, entretanto, que atualmente no Brasil, há uma grande dificuldade de se realizar polissonografias e, mais ainda, de se conseguir o tratamento com pressão positiva pelo Sistema Único de Saúde. Além disso, devemos tomar cuidado com a questão da medicalização social cada vez que se sugere procurar por doenças ocultas.
Índice de apneia-hipopneia (IAH): indica o número de vezes que o paciente para de respirar ou reduz a frequência ou profundidade das respirações durante o exame de polissonografia (número de hipopneias e apneias por hora). A hipopneia ocorre quando há episódios de ventilação muito superficial ou uma frequência respiratória muito baixa. Não é considerada significativa a menos que haja uma redução de 30% ou mais no fluxo durando 10 s ou mais e uma redução de 4% ou mais na saturação de O2 do paciente. Classifica-se a gravidade da AOS de acordo com o IAH:
de 5 a 15: leve (10 a 20 para alguns autores);
de 15 a 30: moderado (20 a 30 para alguns autores);
mais que 30: grave.
1. Botros N, Concato J, Mohsenin V, Selim B, Doctor K, Yaggi HK. Obstructive sleep apnea as a risk factor for type 2
2. Fendri S, Rose D, Myambu S, Jeanne S, Lalau JD. Nocturnal hyperglycaemia in type 2
3. Shaw JE. Obstructive sleep apnea and type 2