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Tempestade tireotóxica

Quadro clínico

            Paciente com 36 anos de idade do sexo feminino, com antecedente de doença de Graves, em uso de propiltiluracil (PTU) 300 mg ao dia. Há 7 dias apresenta tosse com expectoração amarelada, dispnéia aos esforços e febre. Nos últimos dois dias evoluiu com icterícia, diarréia com cerca de 10 evacuações liquidas diárias, confusão mental e piora da dispnéia, que passou a ocorrer aos mínimos esforços. Ao exame:

 

Ictérica ++/4+, acianótica, desidratada +/4+

PA: 180/85mmHg

FC: 145 b.p.m

Temperatura: 39,8 graus

Presença de lid-lag

Aumento de região cervical na forma de bócio

Ap Resp: MV +, com estertores crepitantes à direita em campo médio

Ap CV: 2BANF, sem sopros em ritmo de fibrilação atrial

TGI: Plano, flácido, RHA +. Fígado a cerca de 4 cm do rebordo costal direito

MMII: Pulsos +, edema +/4+

 

RX de tórax: consolidação em campo médio à direita

ECG: fibrilação atrial aguda

 

Comentário

            Paciente com antecedente de hipertiroidismo evoluindo com quadro sugestivo de broncopneumonia, além fibrilação atrial, dispnéia aos mínimos esfoços e edema de membros inferiores, sugerindo descompensação cardíaca. Apresenta também confusão mental e icterícia, todos achados sugestivos de hipertiroidismo descompensado, que deve ter sido desencadeado pelo quadro de pneumonia. A associação destas duas condições torna difícil interpretar se alterações como o aumento de temperatura, dispnéia e aumento de freqüência cardíaca são atribuíveis ao quadro pneumônico ou ao hipertiroidismo. Mesmo sendo difícil interpretar quais alterações se devem a pneumonia ou ao hipertireoidismo per se, a paciente preenche critérios para tempestade tireotóxica. Estes critérios são denominados critérios de Bursch e Wartofski e estão expostos na tabela 1.

 

 Tabela 1: critérios diagnósticos de tempestade tireotóxica

Disfunção termoregulatória

Temperatura

         37,0-37,7

         37,8-38,1

         38,2-38,5

         38,6-38,8

         38,9-39,2

         > 39,3

 

Pts

5

10

15

20

25

30

Disfunção Cardiovascular

Taquicardia

         90-109

         110-119

         120-129

         130-139

         > 140

 

Pts

5

10

15

20

25

Efeitos SNC

         Ausente

         Leve (agitação)

         Moderado (delirium, psicose, letargia)

         Grave (convulsão, coma)

 

0

10

20

 

30

ICC

         Ausente

         Leve (edema MMII)

         Moderada (estertores em bases)

         Grave (EAP)

 

0

5

10

 

15

Disfunção gastrointestinal / hepática

         Ausente

         Moderada (dor abdominal, diarréia, vômitos)

         Grave (icterícia)

 

 

 

0

10

 

20

Fibrilação Atrial

         Ausente

         Presente

 

0

10

Fator Precipitante

Negativo

Positivo

 

0

10

         Escore superior a 45 pontos indica tempestade tireotóxica

         Escore entre 25 e 44 pontos indica que a crise é eminente

         Escore menor do que 25 pontos indica que a crise é improvável

 

            No caso a paciente apresenta 30 pontos pelo critério de temperatura, 20 pontos pelo critério de efeitos sobre o sistema nervoso central, 20 pontos pela icterícia, 25 pontos pela taquicardia, 10 pontos pela fibrilação atrial e 10 pontos pela presença de fator precipitante, indicando claramente uma tempestade tireotóxica.

 

Tratamento

         As tionamidas são a droga de escolha para o tratamento do hipertireoidismo descompensado. As doses durante a tempestade tireoidiana são de PTU 200-250 mg 4/4 h e de tapazol 20 mg 4/4 h

         PTU seria a primeira escolha teórica devido a ação simultânea na inibição da conversão periférica de T4 em T3, porém estudos não demonstram haver diferença com o tapazol

         Agentes iodados durante a tempestade tireoidiana podem ser usados de 2 a 3 horas após o início das tionamidas. Ácido iopanóico é o agente iodado de escolha na dose de 1g 8/8 h no 1o dia e após 500 mg 12/12 h, podendo ser usado o iodeto de potássio 4-8 gotas 6/6 ou 8/8 h.

         Carbonato de lítio pode ser usado na contra-indicação do uso de tionamidas, em dose de 300 mg 6/6 horas

         Hemodiálise e hemoperfusão podem ser usadas como terapia de ultima linha.

         Os beta-bloqueadores podem ser usados para o bloqueio periférico da ação dos hormônios tireoidianos. O propranolol é a droga de escolha na dose de 60-120 mg 6/6 horas

         Corticoesteróides podem ser eventualmente utilizados como a hidrocortisona 100 mg a cada 8 horas.

 

            O paciente ainda precisa receber antibiótico para o manejo da pneumonia. Esta é uma pneumonia com indicação de internação hospitalar. São alternativas aceitáveis de antibioticoterapia uma cefalosporina de terceira geração associada à macrolídeo ou quinolona respiratória isoladamente.

           

Prescrição

 

Tabela 1: Prescrição da paciente

Prescrição

Comentário

1 – Dieta hipossódica

A dieta hipossódica é uma recomendação praticamente universal nos pacientes com descompensação cardíaca associada ao hipertireoidismo

2 - Ceftriaxone 2g EV 1 x ao dia + Claritromicina 500 mg via oral a cada 12/12 horas

A paciente tem indicação de internação hospitalar em unidade de terapia intensiva, e a associação de uma cefalosporina de 3ª geração com macrolídeo é uma opção muito utilizada nesta situação

4-propiltiluracil 300m mg de 6/6 horas ou 200 mg a cada 4/4 horas

O propiltiluracil é preferivel devido à ação periférica que o tapazol não apresenta. Entretanto, nenhum estudo demonstrou diferenças significativas do propiltiluracil em comparação ao tapazol.

5-Lugol 10 gotas via oral a cada 6/6 horas

Diminui a organificação e secreção do hormônio tireoidiano, porém só deve ser administrado apos 1 hora do uso da tionamida, pois pode piorar a descompensação tireoidiana devido a sobrecarga de iodo.

5-propranolol 40 mg a cada 6/6 horas

O beta-bloqueador irá impedir os efeitos periféricos do hormônio tireoidiano. O propranolol é o beta-bloqueador mais estudado para este propósito. A dose deve ser dividida de 6/6 horas devido a rápida metabolização da droga em pacientes com hipertireoidismo.

6-Dexametasona 2 mg 6/ 6 horas

 

Usada na dose de 2 mg de 6/6 horas, inibe a secreção glandular do hormônio tireoidiano e a conversão periférica de T4 em T3. Usado como terapia adjuvante em tireotoxicose grave.

7-Dipirona 2 ml a cada 6/ 6 horas

A paciente apresenta febre alta e pode se beneficiar do uso de anti-piréticos

Outras medicações:


Carbonato de lítio

Doses de 300 a 450 mg ao dia divididas a cada 8 horas podem ser usadas para controle do hipertireoidismo apenas em pacientes com contra-indicações ao uso das tionamidas em tempestade tireoidiana. Deve-se ter o cuidado de manter a litemia em torno de 1mEq-L.

 

Medicações


Propiltiluracil

            Droga da classe das tiocarbamidas, inibe a síntese de hormônios tireoidianos sendo, portanto, eficaz para o tratamento do hipertireoidismo.

 

Modo de ação

            Tionamida que age inibindo a oxidação e organificação do iodo tireoidiano para formação de hormônio tireoidiano. Altas doses de propiltiluracil também alteram a conversão de T4 em T3 pela deiodinase tipo 1 nos tecidos periféricos. Esta ação poderia tornar o PTU a medicação de escolha em relação ao metimazol na tempestade tireoidiana, porém a diferença entre elas não foi demonstrada pela literatura.

 

Indicações

            Tratamento do hipertireoidismo, como tratamento primário ou como preparação para o tratamento cirúrgico e radioiodoterapia. Seu uso tem sido estudado para tratamento da hepatite alcoólica, embora sem evidências que suportem o uso rotineiro.

 

Posologia

            Dose entre 200-900 mg dia, excepcionalmente doses até 1200 mg dia são usadas para o tratamento do hipertireoidismo. Normalmente iniciada em dose de 100 mg 3 vezes ao dia, sendo eventualmente iniciada em dose de 200-300 mg 3 vezes ao dia em hipertireoidismo severo, para atingir controle mais rápido da doença.

            Apesar de haverem estudos que demonstrem possibilidade de controle com dose única diária de metimazol, é altamente improvável conseguir controle com dose única diária de propiltiluracil.

 

Efeitos Colaterais

            O efeito colateral potencialmente de maior dano é a agranulocitose, ocorrendo leucopenia em 10% dos pacientes tratados com a medicação. Trombocitopenia e anemia aplástica também são complicações potenciais da terapêutica. A medicação em alguns pacientes apresenta atividade anti-vitamina K devendo se prestar atenção quando associada a dicumarínicos.

            Síndrome lupus-like e hepatite também são relatados, assim como dermatite exfoliativa.

            Efeitos adversos menores são urticária, parestesias, neurite, náuseas, dispepsia, alteração de paladar, mialgias e linfadenopatia.

 

Apresentações comerciais

            propiltiluracil, Propil e Propilracil  - comprimidos de 100 mg

 

Monitorização

            Monitorização periódica da função tireoidiana durante o tratamento, normalmente a cada  4-6 semanas. Enzimas hepáticas, hemograma e tempo de protrombina também devem ser monitorados a cada 6-8 semanas no início do tratamento.

 

Classificação na Gravidez

            Classe D

            Contra-indicado o uso por mães que amamentam

 

Interações medicamentosas

            A medicação apresenta atividade anti-vitamina K que pode aumentar o efeito de anticoagulantes

 

Metimazol

            Droga da classe das tionamidas, inibe a síntese de hormônios tireoidianos.

 

Modo de ação

            Semelhante ao propiltiluracil, inibe a síntese dos hormônios tireoidianos pelo mesmo mecanismo. Considerando equivalência de miligramagem a droga é cerca de 10 vezes mais potente que o PTU e apresenta meia vida mais prolongada existindo estudos clínicos que demonstram eficácia mesmo em dose única diária.

 

Indicações e nível de evidência

            Tratamento do hipertireoidismo, como tratamento primário ou como preparação para o tratamento cirúrgico e radioiodoterapia. Apenas um estudo comparou o metimazol com o propiltiluracil em doses terapêuticas equivalentes, com resultados que tendem a ser favoráveis ao metimazol.

 

Posologia

            Dose inicial de 10-30 mg dia, dividido normalmente em 2 doses diárias, embora existam estudos demonstrando eficácia de dose única diária. Dose máxima entre 60-100 mg dia. Início de tratamento com doses maiores, como 40 mg ao dia são opção para pacientes com hipertireoidismo grave(T4>21 mcg/dl), levando a controle mais rápido da doença. Apresenta desvantagem teórica em relação ao PTU devido a ausência de efeito na conversão periférica do hormônio tireoidiano, mas estudos  clínicos demonstram eficácia semelhante mesmo para pacientes em tempestade tireotóxica, tendo a vantagem de melhor comodidade de posologia.

 

Efeitos Adversos

            O efeito colateral potencialmente de maior dano é a agranulocitose, semelhante ao PTU. Trombocitopenia e anemia aplástica também são complicações potenciais da terapêutica. A medicação apresenta atividade anti-vitamina K em alguns pacientes, devendo se prestar atenção quando associada a dicumarínicos.

            Síndrome lupus-like e hepatite associada a seu uso também são relatados, assim como dermatite exfoliativa.

            Efeitos adversos menores são urticária e intolerância gastrointestinal, citados em 5% dos casos. Parestesias, neurite, náuseas, alteração de paladar, mialgias e linfadenopatia também são relatados.

 

Apresentações comerciais

            Tapazol em comprimidos de 5 e 10 mg

 

Monitorização

            Monitorização periódica da função tireoidiana durante o tratamento, normalmente a cada  4-6 semanas. Dosagem de enzimas hepáticas, hemograma e tempo de protrombina também devem ser monitorados a cada 6-8 semanas no início do tratamento.

 

Classificação na Gravidez

            Classe D

            Contra-indicado para mães amamentando

 

Interações medicamentosas

            Apresenta efeito anti-vitamina K semelhante ao propiltiluracil. Deve-se acrescentar que quando o paciente com hipertireoidismo retorna ao estado de eutireoidismo algumas medicações como teofilina, beta-bloqueadores e digitálicos podem ter seus níveis aumentados, necessitando eventualmente de redução de dosagem.

 

Iodeto de Potássio

            Possui múltiplas ações inibitórias na função tireoidiana: diminui o transporte de iodo e diminui a organificação e secreção de iodo pela glândula. Cada gota da solução de lugol contém 8 mg de iodeto de potássio. No  caso da solução saturada, cada gota apresenta 35 mg do iodeto. É usado principalmente em casos de tempestade tireoidiana nas doses citadas previamente.

Comentários

Por: Arinaldo das Dores Costa em 29/01/2016 às 11:25:54

"Excelente caso clínico para estudo e discussão, principalmente a orientação terapêutica. Parabéns ao autor."