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Diarreia Aguda Inflamatória

QUADRO CLÍNICO

Paciente do sexo feminino, 47 anos de idade, apresentou-se no serviço de emergência com quadro de diarreia há 4 a 5 dias, com 6 a 8 evacuações diárias, dor abdominal associada e há 2 dias com fezes com laivos de sangue.

 

Exame Físico

      Pressão arterial: 130/80 mmHg.

      Frequência cardíaca: 95 bpm.

      Temperatura: 38,6°C.

      Propedêutica abdominal: ruídos hidroaéreos aumentados, dor abdominal referida à palpação profunda.

 

COMENTÁRIOS

Paciente apresenta-se com quadro de diarreia aguda com febre e presença de sangue nas fezes e com febre de 38,6°C. Ao contrário do paciente discutido na semana anterior, desta feita trata-se de um paciente com quadro de diarreia com características que sugerem uma diarreia inflamatória.

A chamada diarreia inflamatória é caracterizada por evacuações frequentes, usualmente de menor volume, com presença de produtos patógenos nas fezes, como muco, pus ou sangue. Nesses pacientes, é frequente o aparecimento de febre (acima de 38,5°C), toxemia, dor abdominal intensa e tenesmo. As fezes apresentam uma grande quantidade de leucócitos e de sangue quando avaliadas em exame coprológico. As causas mais frequentes são bactérias enteroinvasivas.

As duas principais causas de diarreia inflamatória são as infecções por Shigella e Campylobacter. Um estudo avaliando pacientes com diarreia sanguinolenta encontrou Shigella em cerca de 15% dos pacientes e Campylobacter em pouco mais de 6% dos espécimes.

A incidência calculada de casos de infecção por Campylobacter nos EUA em 2006 foi de aproximadamente 12,7 casos a cada 100.000 pessoas, o que é um numero relativamente elevado. O período de incubação é de 2 a 5 dias, e aves são um dos seus principais reservatórios. Pode afetar todas as faixas etárias e é descrita com alguma frequência causando infecção oportunista em pacientes com Aids. Caracteristicamente, os pacientes apresentam sintomas constitucionais alguns dias antes do desenvolvimento de diarreia, que inicialmente é aquosa por alguns dias e, depois, apresenta a presença de sangue e outros produtos patógenos, em uma apresentação, portanto, similar à descrita neste caso.

Pesquisa de leucócitos fecais é positiva em cerca de 60 a 80% dos pacientes. Algumas complicações são descritas no curso da evolução destes pacientes, como aparecimento de artrite reativa e síndrome de Guilain-Barré.

Existem evidências de diminuição do tempo de sintomas com o tratamento com antibióticos nestes casos, podendo ser usada quinolonas como ciprofloxacino ou norfloxacino por cerca de 5 dias, porém, o tratamento antibiótico usualmente é reservado para pacientes muito sintomáticos. É preciso ainda estar atento à possibilidade de reinfecção, pois a bactéria permanece até 5 semanas nas fezes dos pacientes.

A shigellose apresenta um quadro clínico semelhante ao da diarreia por Campylobacter. Seu período de incubação é mais curto, com duração de 1 a 2 dias, e é altamente infecciosa; às vezes, menos de 10 micro-organismos são suficientes para desenvolverem sintomas de doença.

Os pacientes inicialmente apresentam dor abdominal em cólica e evoluem rapidamente com febre alta e diarreia, embora existam variações na apresentação e um espectro diferenciado da doença. Nas formas leves, as fezes são líquidas, esverdeadas, com muco e restos alimentares, ocasionalmente com sangue e aproximadamente 10 evacuações/dia. Nas formas graves, ocorre diarreia aquosa, seguida por diarreia sanguinolenta, com muco, tenesmo, urgência, febre alta, vômitos e mialgia. O tenesmo é uma manifestação frequente e importante nestes pacientes.

Os exames complementares revelam, quase que invariavelmente, presença de leucócitos fecais e leucocitose. O diagnóstico é realizado com coprocultura e antibióticos devem ser prescritos em pacientes muito sintomáticos. Em geral, a preferência é pelo uso das quinolonas, como o ciprofloxacino por cerca de 5 dias. Complicações como bacteriemia e perfuração intestinal são infrequentes.

A salmonellose usualmente não causa diarreia sanguinolenta, mas ainda seria uma hipótese diagnóstica cabível neste paciente. Ao contrário da shigellose, frequentemente pode ocorrer associada a bacteriemia; portanto, pacientes com próteses cardíacas deveriam fazer uso de antibióticos, mas usualmente o curso é benigno e raramente é causa de diarreia inflamatória.

A Escherichia coli sorotipo O157 é outra causa significativa de diarreia inflamatória. Apresenta período de incubação de 4 a 9 dias, sendo descrito 1,3 caso a cada 100.000 pessoas/ano, sendo mais frequente em crianças; a infecção ocorre por meio da ingestão de carne e hambúrguer pouco cozidos. A bactéria produz toxina com citotoxicidade na parede vascular intestinal; desse modo, mesmo sem ser enteroinvasivo, o organismo pode causar colite sanguinolenta. Usualmente, a apresentação inicial é de diarreia aquosa, que se torna sanguinolenta em 95% dos casos, num período de horas a dias, acompanhada de cólica abdominal intensa, sobretudo em hipocôndrio direito. Por outro lado, como a doença não é invasiva, náuseas e vômitos não são frequentes e a febre é baixa.

Os exames apresentam positividade dos leucócitos fecais, mas em pequena quantidade, contrastando com os achados dos pacientes com diarreia por Shigella. O diagnóstico definitivo pode ser feito por culturas ou testes sorológicos.

Complicações graves, como a síndrome hemolítico-urêmica (SHU) e a púrpura trombocitopênica (PTT) podem ocorrer tardiamente, em 1 a 3 semanas, em até 5% dos casos. Acredita-se que o uso de antibióticos poderia aumentar a chance de desenvolvimento de tais complicações, portanto seu uso é controverso nestes pacientes.

Existem ainda mais 3 formas de E. coli que podem apresentar diarreia. A mais importante delas é a E. coli enteroinvasiva, que pode ser associada com diarreia sanguinolenta, leucocitose e dor abdominal intensa. A E. coli enteropatogênica é outra causa de diarreia, mas usualmente de menor intensidade, e a E. coli enteroagregativa é uma causa importante de diarreia em viajantes, mas usualmente autolimitada e de menor importância.

É fundamental lembrar que, em casos de diarreia inflamatória em pacientes gravemente doentes, a Shigella é a principal causa e o uso de antibióticos, nestes casos, está indicado mesmo antes da pesquisa específica.

 

EXAMES COMPLEMENTARES

A maioria dos pacientes com quadro de diarreia aguda não apresenta indicação de realização de exames complementares. Entretanto, neste caso, trata-se de um paciente febril com provável diarreia inflamatória, portanto, alguns exames são necessários e incluem realização de hemograma, eletrólitos e função renal e exames específicos em fezes, com pesquisa de marcadores de diarreia inflamatória como sangue oculto, leucócitos fecais e lactoferrina.

A realização de coprocultura é importante para o diagnóstico etiológico assim como eventuais hemoculturas em pacientes imunodeprimidos. Outros exames, como pesquisa de toxina do Clostridium dificille, devem ser realizados na suspeita de colite associada ao uso de antibióticos. Eventualmente, realizam-se procedimentos endoscópicos quando há suspeita de colite isquêmica ou dúvida diagnóstica e diarreia inflamatória por período prolongado, para descartar doença inflamatória intestinal.

 

TRATAMENTO

A mais importante conduta em pacientes com quadro diarreicos é a manutenção da hidratação adequada, idealmente por via oral. Não é recomendado repouso alimentar, mas devem-se evitar derivados do leite e farináceos. A hidratação parenteral pode ser necessária em pacientes com hipotensão, taquicardia, desidratação grave e vômitos intratáveis. Nestes casos, rápida expansão com soro fisiológico deve ser iniciada (em torno de 20 mL/kg de peso em 10 a 15 minutos). Repetidas administrações de igual volume são indicadas até que ocorra melhora clínica.

O tratamento deve incluir medicações antieméticas e para controle da febre e da dor abdominal, mas não deve incluir antidiarreicos, que são contraindicados em diarreia inflamatória.

O paciente deste caso tem diarreia mucossanguinolenta, o que leva a consideração do uso de antibióticos, mas seu estado geral ainda é preservado. Caso apresente persistência ou piora do quadro, pesquisa positiva para Shigella ou Campylobacter quando ainda sintomático ou hipotensão, há indicação de uso de antibióticos, preferencialmente quinolonas.

 

Soluções de Expansão Volêmica

Nas situações de choque caracterizadas pela depleção de volume intravascular (choque hipovolêmico, séptico etc.), o uso de soluções de expansão está indicado.

Com relação às diversas preparações, até o presente momento ainda é controversa a indicação específica de cada uma, devendo-se levar em conta as considerações a seguir.

 

Cristaloides

São soluções simples que contêm eletrólitos em água.

 

1.    Soro fisiológico (NaCl 0,9%)

Solução contendo 154 mEq/L de sódio e 154 mEq/L de cloreto (9 g de NaCl em 1 litro).

 

      Modo de ação

Expansor do volume intravascular.

 

      Indicações

Situações de choque de padrão hipovolêmico e distributivo.

 

      Posologia

Administrado no espaço intravascular com velocidades de infusão variáveis (conforme a função cardíaca de cada indivíduo), em forma de alíquotas de 250 a 1.000 mL com reavaliação frequente da resposta obtida e eventuais efeitos adversos.

 

      Efeitos adversos

O uso de grandes volumes pode estar associado ao desencadeamento de sobrecarga volêmica e acidose metabólica hiperclorêmica, assim como hipernatremia.

 

      Apresentação comercial

Bolsas ou embalagens plásticas contendo solução de cloreto de sódio a 0,9%. As embalagens podem conter volumes de 100, 250, 500 e 1.000 mL.

 

      Monitoração

A taxa da velocidade de infusão deve ser monitorada por meio do exame clínico, em especial pulmonar, para evitar sobrecarga hídrica.

 

      Classificação na gravidez

Classe A.

 

      Interações medicamentosas

Nenhuma significativa.

 

2.   Ringer Lactato

Solução contendo 130 mEq/L de sódio, 4 mEq/L de potássio, 3 mEq/L de cálcio, 109 mEq/L de cloreto e 28 mEq/L de lactato.

 

      Modo de ação

Expansor do volume intravascular.

 

      Indicações

Situações de choque hipovolêmico e distributivo, em especial nos pacientes politraumatizados, como é proposto pelos protocolos do ATLS.

 

      Posologia

Similar à administração de solução fisiológica.

 

      Efeitos adversos

Sobrecarga volêmica quando usados grandes volumes ou em indivíduos com disfunção cardíaca.

 

      Apresentação comercial

Frascos ou bolsas contendo volumes de 100, 250, 500 ou 1.000 mL.

 

      Monitoração

Reavaliação clínica frequente de parâmetros como frequência respiratória e ausculta pulmonar durante a infusão, para prevenir sobrecarga hídrica.

 

      Classificação na gravidez

Classe A.

 

Quinolonas

São derivadas do composto quinoleína, substância presente em vários alcaloides e drogas antimaláricas sintéticas. Apresentam ação bactericida, agindo por inibição da DNA-girase.

 

Primeira Geração: Ácido Nalidíxico

Possui ação bactericida contra bactérias Gram-negativas, porém sem atividade contra Pseudomonas aeruginosa. A concentração em vias urinárias é elevada, contrastando com a reduzida concentração tissular.

A apresentação da droga é oral e sua concentração liquórica é baixa, sendo inadequada para o tratamento de meningoencefalites. A principal indicação é o tratamento de infecções urinárias baixas por enterobactérias do trato urinário. Com o surgimento de novas quinolonas, o ácido nalidíxico é droga pouca utilizada na prática médica.

A dose é de 2 a 4 g/dia, com dose dividida a cada 6 horas, sendo necessário ajustar para função renal e hepática.

 

Segunda Geração: Norfloxacino

A introdução do grupamento piperazimo ligado ao carbono 7 proporciona atividade contra Pseudomonas aeruginosa, o que não ocorre nas quinolonas de primeira geração.

O norfloxacino é disponibilizado somente para uso oral, apresentando baixa taxa de absorção e, consequentemente, nível sérico insuficiente para infecções sistêmicas. Entretanto, apresenta excelente concentração em vias urinárias, justificando seu uso em infecções urinárias baixas. A excreção da droga é renal, com espectro de ação incluindo grande parte dos bacilos Gram-negativos entéricos (Escherichia coli, Klebsiella spp, Salmonella spp, Shigella spp, Proteus spp, Enterobacter spp, Yersinia spp, Morganella spp e Citrobacter spp), Haemophilus spp, Neisseria spp e Pseudomonas spp. As indicações clínicas incluem infecções urinárias baixas, profilaxia de infecções urinárias recidivantes, prostatites nas quais o agente etiológico seja a Escherichia coli e uretrite/cervicite por Neisseria gonorrheae.

A dose é de 800 mg/dia, dividida a cada 12 horas, sendo necessário ajustar para função renal e hepática.

 

Terceira Geração

As quinolonas de terceira geração diferenciam-se pela ação terapêutica sistêmica e ampliação do espectro de ação para estafilococos. A administração da droga pode ser feita por via oral ou parenteral. A eliminação da droga é predominantemente renal.

 

1.    Ciprofloxacino

O ciprofloxacino pode ser utilizado no tratamento de infecções por enterobactérias, estafilococos, Neisseria spp e Pseudomonas aeruginosa. Deve-se, obrigatoriamente, atentar ao perfil de sensibilidade dos patógenos na instituição. As principais indicações incluem infecções urinárias altas e baixas, salmoneloses (incluindo febre tifoide), shigueloses, osteomielites, infecções das vias biliares e respiratórias (Haemophilus e enterobactérias). Deve-se ressaltar que o ciprofloxacino não apresenta atividade adequada contra estreptococos, em especial Streptococcus pneumoniae.

A dose é de 500 a 1.500 mg/dia, dividida a cada 12 horas (VO), ou de 400 a 1.600 mg/dia dividida a cada 12 ou 8 horas) (EV), sendo necessário ajustar para função renal e hepática.

 

2.    Ofloxacino

O ofloxacino não apresenta boa atividade contra Pseudomonas aeruginosa e demonstra menor eficácia para bacilos entéricos se comparado ao ciprofloxacino. Entretanto, apresenta melhor espectro de ação para patógenos responsáveis por quadros respiratórios e excelente atividade contra Mycobacterium tuberculosis.

A droga é disponível em apresentação oral e parenteral, com biodisponibilidade superior ao ciprofloxacino. Há boa penetração liquórica, mesmo na ausência de inflamação meníngea, com níveis entre 50 a 60% da concentração sérica. As indicações clínicas são similares às do ciprofloxacino, devendo-se ressaltar comparativamente a menor resposta microbiológica e a pouca atividade contra Pseudomonas aeruginosa. Entretanto, há boa resposta em uretrites e cervicites por clamídias. Deve ser reservada para o tratamento de cepas de Mycobacterium tuberculosis resistentes aos esquemas habituais.

A dose é de 400 a 800 mg/dia, dividida a cada 12 horas (VO/EV), sendo necessário ajustar para função renal e hepática.