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Pé diabético

Quadro clínico

Paciente de 46 anos, diabético, em uso de insulina NPH 30 U subcutânea pela manhã, evoluindo com lesão ulcerada perimaleolar à esquerda. A lesão é associada com área de hiperemia de cerca de 3 cm com saída de secreção purulenta e exposição de músculo e tendões.

Úlcera maleolar com saída de secreção purulenta define a presença de infecção, portanto, temos um paciente com pé diabético.

 

Pé diabético

A mais terrível complicação da neuropatia diabética é a úlcera neuropática. Também é a mais facilmente prevenível, sendo a razão mais comum para se internar um paciente diabético nos Estados Unidos; representa pouco mais de um quarto das internações em pacientes com diabetes melito e é responsável por mais de 60% das amputações não traumáticas naquele país. O risco durante a vida de um paciente diabético de desenvolver úlcera em membro inferior é de cerca de 25%.

A definição da literatura para pé diabético é qualquer infecção inframaleolar em pacientes com diabetes, incluindo, portanto, paroníquia, miosite, fasciite necrotizante, entre várias outras condições, mas a mais importante lesão é a chamada úlcera infectada de pé ou mal perfurante ou úlcera de membro inferior. Seu aparecimento depende de vários fatores, sendo que a neuropatia periférica apresenta um papel fundamental.

São fatores de risco para desenvolvimento de úlcera em pé diabético:

 

          neuropatia periférica;

          doença vascular periférica;

          deformidades anatômicas;

          calosidades e locais de alta pressão;

          outras complicações microvasculares associadas;

          edema local;

          incapacidades do paciente, como alteração da visão, alteração da mobilidade entre outras;

          má adesão ao tratamento e controle inadequado do diabetes.

 

A neuropatia periférica facilita a perda da camada protetora de pele no membro inferior. Essa perda leva o paciente a perder a sensação de dor, facilitando o trauma repetido e, consequentemente, a exposição dos tecidos à colonização por bactérias. Posteriormente, essa colonização pode evoluir para quadro infeccioso que pode se estender para tecidos mais profundos.

Todo este processo pode acontecer rapidamente em poucos dias ou até horas, particularmente se o membro atingido sofre de isquemia local.

 

Microbiologia das infecções do pé diabético

Cocos aeróbicos gram-positivos são os microrganismo predominantes em infecções por ruptura de pele, sendo o S. aureus e os estreptococos ß-hemolíticos os mais comumente isolados. Quando feridas crônicas se desenvolvem, a flora se torna mais complexa, incluindo enterococos, enterobactérias, anaeróbios e Pseudomonas; já em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos, o paciente pode ser colonizado por estafilococos meticilino-resistentes ou enterococos vancomicina-resistentes, o que pode implicar pior prognóstico. A Tabela 1 cita as principais etiologias em diferentes situações de pacientes com pé diabético.

 

Tabela 1. Principais etiologias de infecções em pé diabético (adaptada do consenso sobre pé diabético da IDSA)

Tipo de infecção

Microrganismos

Celulite sem porta de entrada

Estreptococos ß-hemolíticos e S. aureus

Úlcera infectada sem antibiótico prévio

S. aureus, estreptococos ß-hemolíticos

Úlcera crônica sem antibiótico prévio

S. aureus, Estreptococos ß-hemolíticos e enterobactérias

Úlcera macerada e úmida

Pseudomonas aeruginosa associada a outros microrganismos

Úlceras de longa duração sem cicatrização, apesar de antibioticoterapia

Cocos aeróbios gram-positivos, enterobactérias, Pseudomonas, difteroides, outros gram-negativos e eventualmente fungos

Membro fétido com necrose extensa

Flora mista com cocos gram-positivos, incluindo enterococos gram-negativos, anaeróbios obrigatórios

 

Prevenção

Deve ser recomendado aos pacientes diabéticos evitar andar descalço ou com calçados abertos, em razão do risco de trauma. Calosidades devem ser tratadas por podólogos e, caso haja deformidades, calçados específicos devem ser recomendados após avaliação por especialista dos pés.

A pesquisa de neuropatia periférica deve ser realizada pelo menos anualmente, com o teste com monofilamento de 10 g aplicando pressão em pontos específicos do pé que são especificados no próprio monofilamento. A ocorrência de úlcera neuropática em pacientes com teste do monofilamento é extremamente rara e, nestes casos, a etiologia é quase que certamente isquêmica.

 

Manejo da úlcera em pé diabético

As úlceras cutâneas em pacientes com pé diabético podem ser causadas por isquemia, secundarias a neuropatia ou mistas, quando ambos os componentes estão presentes. O aparecimento destas é extremamente dependente do cuidado que o paciente apresenta com seus pés.

O paciente com neuropatia diabética apresenta diminuição de sensibilidade a traumas, permitindo o desenvolvimento de lesões. Disfunção autonômica pode associar-se com diminuição da transpiração, com pele seca e com maior propensão a desenvolver fissuras.

A doença arterial periférica, por si só, raramente causa ulceração, porém, quando ocorre trauma regional e infecção local, a demanda por aporte sanguíneo supera a circulação local com o desenvolvimento de lesão. A ultrassonografia com Doppler nestes pacientes pode apresentar resultados enganadores, e o fator com maior associação com isquemia significativa é a ausência de pulso tibial posterior e pedioso.

 

Classificação

A classificação de Wagner é a mais utilizada para caracterizar as úlceras de pacientes com pé diabético:

 

0.     Pé de risco, sem úlcera.

1.     Úlcera superficial.

2.     Úlcera profunda.

3.     Envolvimento ósseo.

4.     Gangrena parcial.

5.     Gangrena completa.

 

Devem ser considerados 3 aspectos no tratamento das úlceras em pacientes com pé diabético:

 

1.     Determinar se o fluxo arterial é adequado.

2.     Tratar infecção apropriadamente.

3.     Remover a pressão da úlcera e áreas adjacentes.

 

A avaliação clínica, conforme comentado, é o meio mais apropriado para determinar a adequação da circulação local. Em caso de dúvida, outros procedimentos, como arteriografia, podem ser necessários. É mandatório definir se existe infecção ou não; tal definição é obtida presença de secreção purulenta na úlcera ou de pelo menos duas manifestações cardinais, que incluem: hiperemia, aumento de temperatura, edema, dor e induração.

Apos determinar se o paciente apresenta ou não infecção, a determinação da severidade desta infecção é um passo importante no manejo. O consenso internacional de pé diabético tem uma classificação específica (Tabela 2).

 

Tabela 2. Classificação da severidade da infecção no pé diabético

Manifestações da infecção

Severidade da infecção

Sem purulência e menos de duas manifestações de inflamação

Sem infecção

Presença de purulência ou pelo menos manifestações de inflamação, com área de celulite ou eritema menor que 2 cm ao redor da úlcera, sem manifestações sistêmicas de infecção

Leve

Área de celulite ou eritema maior que 2 cm ou extensão para fáscia, tendões, ossos ou músculo, abscesso de tecidos profundos, gangrena

Moderada

Sinais de toxicidade sistêmica ou alterações metabólicas como febre, calafrios, leucocitose, confusão mental, taquicardia, hipotensão, vômitos

Severa

 

Tratamento

O tratamento apropriado de infecção local é muito importante para a evolução destes pacientes. Vale lembrar que a maior parte dessas infecções é polimicrobiana, com cinco e, às vezes, até sete microrganismos envolvidos no quadro infeccioso, de modo que antibioticoterapia tópica não costuma ser apropriada para o manejo destes pacientes.

Pacientes com úlceras neuropáticas com circulação adequada não apresentam indicação de antibioticoterapia, exceto em casos nos quais o paciente apresenta claros sinais clínicos de infecções, como descarga purulenta, eritema local ou celulite. A antibioticoterapia pode ser guiada por cultura de secreções locais em pacientes com lesões consideradas leves, com celulite menor que 2 cm e infecção limitada a pele e tecido subcutâneo. A cobertura deve ser dirigida para Staphylococcus aureus e estreptococos do grupo A; nessa situação, podem-se utilizar cefalosporinas de primeira ou segunda geração, amoxicilina com clavulanato ou clindamicina por sete a 14 dias de tratamento, na maioria dos casos por via oral.

Os pacientes com lesões moderadas – definidas por celulite maior que 2 cm, linfangite, abscesso profundo envolvendo músculos, tendões e ossos – necessitam de cobertura antibiótica de maior amplitude incluindo agentes gram-positivos, agentes gram-negativos e anaeróbios. Conforme a gravidade do caso, é definido o uso de terapia endovenosa ou oral por duas a quatro semanas. Entre as opções terapêuticas, pode-se utilizar ampicilina/sulbactam, cefalosporinas de terceira geração, ciprofloxacino ou levofloxacino, ertapenem, piperacilina/tazobactam associados a clindamicina.

As infecções consideradas graves, além de apresentarem as condições descritas nas infecções moderadas, são acompanhadas de instabilidade hemodinâmica ou metabólica. Nesses casos, a terapia deve ser necessariamente endovenosa e com ampla cobertura microbiana, incluindo a combinação de ciprofloxacino e clindamicina; quando não se espera resistência aos antibióticos ou carbapenêmicos, usa-se piperacilina/tazobactam associados a vancomicina ou teicoplanina.

A duração da antibioticoterapia é uma decisão difícil, pois esperar a cicatrização da úlcera pode prolongar demasiadamente o uso de antibióticos. O recomendado em pacientes com infecções leves é o uso de antibióticos por uma a duas semanas; em infecções moderadas, duas semanas; e em infecções severas, de duas a quatro semanas.

O uso de marcadores inflamatórios para determinar o tempo de antibioticoterapia não é uma estratégia adequada, embora sua queda seja esperada; a avaliação da ferida e a melhora de sinais flogísticos são mais confiáveis nestas circunstâncias.

Uma das decisões mais importantes no manejo destes pacientes é sobre a necessidade de internação hospitalar. Todas as infecções severas ou associadas a isquemia crítica do membro em questão têm indicação de internação, bem como as infecções leves ou moderadas com outras comorbidades ou com problemas de má adesão ou má resposta aos antibióticos.

A avaliação cirúrgica deve ser considerada, pois alguns pacientes, mesmo com poucos achados externos, podem desenvolver complicações importantes, como fasciite necrotizante, em pacientes sem melhora da dor ou aparecimento de dor e hiperemia não explicada, membro isquêmico e com necrose, perda de tecido, crepitações no exame do membro e suspeita de abscesso profundo, quando há saída de grande quantidade de secreção purulenta ao pressionar a úlcera. O cirurgião pode realizar apenas desbridamento e amputação de emergência é rara, exceto necrose extensa do membro ou infecção com risco de morte.

Um plano cuidadoso para manejo da ferida deve ser realizado, com limpeza local adequada, desbridamento de calosidades ou de tecido necrótico e retirada de pressão sobre a úlcera.

Outras medidas importantes são o controle glicêmico adequado e a correção de quaisquer distúrbios hidreletrolíticos e outras condições que porventura acompanhem o quadro do paciente.

 

Osteomielite

Representa um dos problemas mais difíceis e controversos de manejar nos pacientes com pé diabético. Pode complicar qualquer úlcera extensa e profunda, principalmente quando a lesão é crônica e está próxima a uma proeminência óssea. O diagnóstico deve ser considerado quando:

 

         a úlcera não cicatriza em seis semanas de cuidado apropriado;

         a úlcera tem osso visível ou pode ser facilmente palpado com ponta de metal estéril (nestes pacientes, se houver complicações isquêmicas com risco de perda do membro, deve ser considerado como diagnóstico de osteomielite).

 

Outros achados sugestivos incluem edema importante com hiperemia de dedos e leucocitose significativa, com aumento inexplicado de marcadores inflamatórios. Radiografia simples é o primeiro exame para confirmar o diagnóstico, mas em geral não consegue verificar destruição óssea. A cintilografia com pirofosfato de tecnécio é muito sensível, mas o melhor exame para o diagnóstico é a ressonância magnética. Uma opção para casos duvidosos em que estes exames não estão rapidamente disponíveis pode ser estender a antibioticoterapia por duas a quatro semanas e, posteriormente, repetir a radiografia simples. Se o diagnóstico permanece duvidoso, uma biópsia óssea é indicada com retirada de fragmento ósseo, pois, além de confirmar o diagnóstico, permite um diagnóstico microbiológico. Os pacientes com osteomielite associada ao pé diabético devem receber antibioticoterapia por três a seis meses. Anteriormente, ressecção cirúrgica era considerada tratamento padrão, mas hoje o tratamento clínico isolado pode ser considerado sobretudo em pacientes com osteomielite localizada. Em pacientes selecionados, outras modalidades terapêuticas, como câmara hiperbárica, podem ser consideradas.

Para um paciente com infecção moderada, um esquema de antibioticoterapia poderia ser com ciprofloxacino e clindamicina parenteral. O controle do diabetes será realizado com insulina NPH, mais insulina regular ou lispro subcutânea, conforme glicemia capilar.

 

Prescrição

Tabela 3. Prescrição sugerida para o paciente

Prescrição

Comentário

Dieta para diabético

Paciente sem indicação, a princípio, de procedimento cirúrgico, sem motivos para interromper a dieta.

Insulina NPH 20 U SC cedo e 10 U SC antes de dormir

A princípio, poderia ser mantido esquema de insulinoterapia; provavelmente, o paciente precisará dividir a insulinoterapia em pelo menos duas tomadas para melhor eficácia.

Ciprofloxacino 400 mg EV a cada 12 horas

Quadro de pé diabético com necessidade de antibioticoterapia parenteral; esquema de boa penetração e cobertura antibiótica.

Clindamicina 600 mg EV a cada 6 horas

Esquema antibiótico combinado para pé diabético infectado.

Dipirona 2 mL EV a cada 6 horas, em caso de dor

Analgesia padrão, provavelmente será necessário uso de opioides para controle de dor.

Heparina 5.000 U SC a cada 8 horas

Paciente imobilizado com indicação de profilaxia de trombose venosa profunda.

Insulina regular ou lispro conforme glicemia capilar, com medida da glicemia nas refeições e pela manhã:

150 a 200: duas unidades

201 a 250: quatro unidades

251 a 300: seis unidades

Maior que 301: oito unidades

Esquema para correção de glicemia com duas unidades de insulina para cada 50 mg/dL acima do valor de 150 mg/dL.

SC = subcutânea; EV = endovenoso.

Comentários

Por: niceas alves em 24/12/2014 às 09:48:45

"Muito bom"