FECHAR

MedicinaNET

Home

Entrevista Psiquiátrica e Exame Psíquico

 Qui bene diagnoscit, bene curat

(Quem bem diagnostica, bem sabe curar)

 

INTRODUÇÃO

Do ponto de vista científico, o conhecimento aceitável é aquele objetivo, passível de reprodução; por isso os cientistas gostam tanto de dados numéricos: eles são os que parecem atingir melhor este ideal. Entretanto, informações subjetivas, dados intuitivos ou que não possam ser medidos quantitativamente são usualmente considerados não científicos ou de menor importância na área médica. Imersa no campo de atuação médico-científico, a psiquiatria habita, no entanto, um local particular e privilegiado, pois se vale tanto dos conhecimentos agregados pelas ciências naturais (fisiologia, química, neuroanatomia) quanto pelas ciências humanas (antropologia, sociologia, psicologia). Estas últimas, por se referirem ao individual e subjetivo, ocupam especial valor ao estudarmos componentes e requisitos para a boa prática da entrevista psiquiátrica e do exame psíquico. Ao utilizarmos o instrumental de diversas ciências para a análise da entrevista psiquiátrica, portanto, notamos que uma boa anamnese não é apenas uma questão de bom senso, não depende só de um conhecimento de fisiopatologia e nem resulta apenas da experiência; antes, é uma habilidade que pode ser decomposta em partes e pode ser aprendida.

Este capítulo pretende abordar possíveis caminhos e os principais obstáculos encontrados pelo médico clínico e também pelo psiquiatra nessa prática. Ressalta-se, desde já, que alguns estratagemas poderiam enquadrar-se tanto no subitem destinado à entrevista psiquiátrica quanto naquele que aborda o exame psíquico. Tal sobreposição é inerente ao tema de estudo, pois, como poderá perceber o leitor, a entrevista psiquiátrica revela-se o próprio instrumento de avaliação do estado psíquico do paciente.

 

A ENTREVISTA PSIQUIÁTRICA

               Além do conhecimento teórico, a sensibilidade e capacidade empática do médico são componentes fundamentais da sua eficácia durante a entrevista de um paciente psiquiátrico. Isso não é o mesmo que o oferecimento de um ouvido compreensivo. Empatia é a capacidade de colocar-se na situação de uma outra pessoa e então se aproximar do que aquela pessoa sente naquela situação – é um esforço que vai além da simples compaixão pela infelicidade do outro. Desta feita, a habilidade de entrevistar não é simplesmente uma questão de ser gentil com os pacientes ou de aceitar placidamente suas características e considerar as agruras psicossociais: a comunicação médico–paciente é praticamente a única ferramenta para a propedêutica e o diagnóstico psiquiátricos, o que faz dela o centro dessa discussão.

               A postura do médico deve ser de suporte e compreensão, garantindo ao paciente um ambiente seguro em que ele possa se abrir, mesmo quando houver pouco tempo disponível. Inicialmente se costuma deixar o paciente falar livremente, expondo sua queixa, enquanto já se avalia seu psiquismo. Num segundo momento, o médico deve inquirir detalhes e esclarecer pontos que tenham ficado obscuros; as perguntas devem ser no início de caráter mais geral, aprofundando-se conforme a entrevista progride. As perguntas mais dirigidas devem ser preferencialmente feitas de modo confirmatório, evitando a indução de respostas (por exemplo: “O senhor quer dizer com isso que está sentindo tristeza?” ao invés de “O senhor está triste?”).

              Após formular as hipóteses diagnósticas, deve-se expô-las de forma clara e inteligível, bem como qual a conduta a ser tomada, sendo útil reservar um momento final para as inevitáveis dúvidas que surgirão. Tais momentos devem ser dosados e divididos conforme as características do paciente, do médico e do contexto em que ocorre a anamnese.

 

Manejo do Tempo, Setting e Anotações

             O tempo utilizado para entrevista costuma variar muito, não apenas de acordo com o local da entrevista (ambiente hospitalar, pronto-socorro, consultório), mas também com a dificuldade em estabelecer as hipóteses diagnósticas e o plano terapêutico. Não obstante as limitações que existam, o médico deverá cuidar sempre do setting da entrevista, isto é, do ambiente físico e emocional onde é realizada a avaliação. É de fundamental importância a privacidade do local (muitas vezes difícil em ambiente hospitalar), pois permite ao paciente maior tranqüilidade para revelar sentimentos mais íntimos. Deverá sempre que possível tentar entrevistar o paciente a sós, mesmo quando acompanhado por familiares íntimos, solicitando que estes retornem à sala para acrescentar informações que se façam necessárias. Pacientes agressivos ou potencialmente suicidas merecem atenção especial, como veremos adiante.

Preconiza-se que o entrevistador não faça anotações prolongadas durante a avaliação, pois poderá comprometer a relação com o paciente e a observação de suas reações. No entanto, é fundamental o relato completo da anamnese e das condutas tomadas em documento adequado ao final da entrevista para fins assistenciais e eventualmente judiciais.

 

História Psiquiátrica

             Como regra geral, a entrevista psiquiátrica segue as mesmas linhas da entrevista médica. Assim, após a apresentação do entrevistador (nome, função e objetivo da abordagem) e a identificação do paciente (nome, idade, proveniência, ocupação, situação conjugal, religião), permite-se o relato ou a queixa principal, isto é, o motivo pelo qual procura ajuda. Naturalmente, a entrevista deverá caminhar para a história da doença atual, caracterizando o início dos sintomas, apresentação, periodicidade e possíveis tratamentos medicamentosos ou internações prévias. É de fundamental importância, ainda neste momento, a caracterização dos antecedentes biográficos, como seu comportamento durante a infância e adolescência, história ocupacional e conjugal, padrão de relacionamentos interpessoais e características de personalidade pré-mórbida. Os antecedentes pessoais clínicos (doenças de base, traumatismos, cirurgias), bem como os hábitos (em especial uso de drogas), devem ser abordados tal qual em uma entrevista clínica, investigado possível correlação temporal entre eles (um traumatismo cranioencefálico na adolescência, por exemplo) e os sintomas da doença. Por último, a história familiar deve ser investigada, com ênfase na presença de doenças psiquiátricas e dependência de drogas entre os parentes. Essa etapa da entrevista é também oportuna para a compreensão do contexto familiar e social do entrevistado.

Vale lembrar que a vivência subjetiva é de fundamental importância na história psiquiátrica; pois muitas vezes, o que diferencia o normal do patológico é a forma como o paciente vivencia a situação, não seu mero relato.

 

Situações de Entrevista

A despeito da estruturação bem estabelecida da entrevista psiquiátrica, esta é muitas vezes dificultada pela não-colaboração do paciente ou por sua dificuldade de prestar informações. Tais situações, contudo, tornam-se por si só informações sobre o estado mental do paciente, como nível de consciência ou agitação psicomotora. Para tais pacientes idealmente conta-se com o auxílio de um informante, que será o responsável pelo fornecimento de detalhes no que alguns autores denominam história objetiva, em contraponto à história subjetiva, contada pelo paciente. Ressalta-se que não adotamos tal nomenclatura por considerarmos que objetivo e subjetivo são termos relativos a quem narra os fatos, não havendo como se ter certeza da plena objetividade dos fatos relatados pelo acompanhante, de igual modo.

Dois aspectos potencialmente complicadores da entrevista psiquiátrica devem ainda ser considerados: a dissimulação e a simulação. A primeira ocorre quando algum sintoma questionado é negado, apesar de sua existência. Se o paciente nega a presença de um sintoma por medo ou embaraço, essa informação só será obtida se o médico conseguir transmitir confiança e aceitação, sem julgamento. Isso ocorre freqüentemente em pacientes com pensamentos obsessivos obscenos ou bizarros, sendo comum que tenham vergonha de relatá-los. Cabe ao médico, se suspeita de dissimulação, inquirir a presença de tal sintoma por outros meios, tangencialmente, para se certificar da sua presença ou não. Já na simulação ocorre o contrário: o paciente procura relatar sintomas que, de fato, não existem. É freqüente a simulação em casos de pacientes beneficiários de afastamentos temporários por doença que não queira perder, por exemplo. Quando há suspeita de simulação, a entrevista deve ser mais refinada, procurando encontrar inconsistências na história ou na forma como o sintoma relatado é vivenciado. É de grande importância, contudo, ter em mente que há sempre a possibilidade de a suspeita de simulação ser infundada e haver, de fato, a presença dos sintomas referidos.

Por último, e não menos importante, ressaltam-se os cuidados diante de pacientes potencialmente agressivos ou com ideação suicida. Nos casos em que o médico se depara com um paciente violento em ambiente hospitalar, deve decidir se pode ser realizado um contato verbal efetivo com o paciente ou se seu senso de realidade está tão prejudicado a ponto de impossibilitar uma entrevista eficaz. Nesse caso, o paciente deverá ser medicado ou mesmo contido fisicamente até mostrar-se mais calmo, cuidando o médico de manter o melhor contato possível com o paciente, esclarecendo o motivo de precaução de danos das atitudes tomadas. Nos casos de pacientes potencialmente suicidas, deve-se cuidar para que a entrevista se dê em ambiente seguro, com grades nas janelas e sem materiais pontiagudos. Deverá o paciente ser hospitalizado ou protegido de outra forma (internação domiciliar, mediante compromisso escrito dos responsáveis), não podendo jamais ser subestimado o risco de suicídio por parte da equipe médica e dos familiares.

 

O EXAME PSÍQUICO

 Para facilitar o entendimento de algo tão complexo como o psiquismo humano, costumeiramente o dividimos em funções, que, embora na prática funcionem em conjunto, podem ser descritas de forma independente.

À medida que o examinador faz cada pergunta, deve pensar quais poderiam ser as possíveis respostas de uma pessoa razoável naquele contexto. No prontuário, o médico pode se abster de usar termos técnicos na descrição do exame psíquico, valendo-se de descrições pormenorizadas daquilo que percebeu durante a avaliação. Tal postura costuma prover uma descrição mais rica e evitar confusões diagnósticas por uso de termos imprecisos. O mais importante é ser capaz de esboçar um painel aproximado de como está o psiquismo do paciente no momento da entrevista, lembrando que ela faz um recorte transversal da apresentação, cabendo à anamnese a visão longitudinal do caso.

As funções psíquicas principais e os sintomas que podem advir de suas alterações são listados a seguir de forma relativamente hierarquizada: assim, em primeiro lugar deve-se avaliar se o paciente está consciente, pois se não o estiver todas outras funções serão afetadas. De igual modo, se não estiver com a atenção preservada a memória será prejudicada, e se o afeto estiver muito deprimido a psicomotricidade estará lentificada, e assim por diante. Dessa maneira, as funções a seguir elencadas são geralmente atreladas às anteriores.

 

Consciência

Para o exame psiquiátrico importa o nível de consciência, de alerta, de quão desperto e funcionante está o sistema nervoso central. Normalmente vai do grau de maior alerta, o estado vigil, passando pela sonolência, torpor (obnubilado), estupor (semicomatoso) e coma, que são graus de rebaixamento do nível de consciência, quando o paciente é dito confuso. O paciente sonolento usualmente oscila entre dormindo e acordado, e com algum esforço desperta e estabelece contato. O torporoso acorda com dificuldade, não plenamente despertando e permanecendo algo confuso. O estuporoso só acorda mediante estímulos muito vigorosos, não sendo capaz de se manter alerta espontaneamente. O comatoso não acorda, apresentando o maior grau de rebaixamento do nível de consciência.

Além das alterações quantitativas, a qualidade da consciência eventualmente se encontra alterada. O paciente pode apresentar estreitamento da consciência, quando o foco fica restrito, quer por alta ansiedade, intoxicações ou crises epilépticas; dissociação da consciência, quando vivencia momentos dos quais não se lembra ao retomar a integridade da consciência. Fazem parte ainda das alterações qualitativas os estados crepusculares, vistos em quadros orgânicos como epilepsia.

 

Atenção e Concentração

            É a capacidade de focalizar um objeto de maneira intencional. Pode ser de natureza voluntária (ativa), quando se pretende direcionar a atenção a este objeto (lendo este texto, por exemplo), ou involuntária (passiva ou espontânea), dirigida a um foco que não é o principal, denotando a capacidade de mudar de foco (notar ruídos da rua enquanto continua lendo). Quanto maior o grau de atenção voluntária, menor o de atenção involuntária e vice-versa. A concentração reflete a capacidade de manter a atenção voluntária.

 

Orientação

É a capacidade de um indivíduo estimar precisamente o tempo, o espaço e as pessoas, inclusive a si mesmo, em seu ambiente corrente. A orientação temporal (capacidade de se localizar adequadamente quanto a datas, dias, horários) é facilmente perturbada pela concentração profunda, emoção forte ou quadros orgânicos. A orientação espacial (saber onde mora, onde está) é alterada mais tarde no processo mórbido. A orientação autopsíquica refere-se ao conhecimento do próprio nome e da identidade pessoal e é prejudicada nos casos avançados de deterioração orgânica.

 

Memória

Clinicamente é subdividida em memória de longa duração, de curta duração e imediata. A memória de longa duração, ou remota, refere-se aos fatos gravados há mais tempo, às recordações antigas, e pode ser avaliada enquanto o paciente conta sua história; a de curta duração, ou recente, trata de dados a serem mantidos por pouco tempo, como um número de telefone até que ele seja discado. A memória imediata, chamada memória de trabalho, permite, por exemplo, que um leitor entenda a coerência de uma frase, embora já não lembre exatamente de quais eram as primeiras palavras lidas. Está intimamente ligada à atenção.

As memórias podem ser medidas com testes simples específicos, como gravar palavras ou nomes. Os déficits podem dar ensejo a confabulações, que são falsas memórias criadas pelo paciente para suprir as lacunas abertas na memória, sendo associadas a quadros de amnésia orgânica, como nas demências.

 

Pensamento

A forma de acessar o pensamento do paciente é, sobretudo, por meio do discurso, cuja avaliação acaba tento, por conseguinte, muitos pontos em comum com a avaliação do pensamento. Deve-se analisá-lo quanto a forma, curso e conteúdo.

A forma do pensamento diz respeito à maneira como as idéias são encadeadas ao longo do raciocínio. As alterações formais ocorrem principalmente nos quadros psicóticos ou maniformes: afrouxamento de associações (idéias relacionadas de forma pobre entre si), arboriforme (tendência à desorganização, mas mantendo ainda a meta do raciocínio), fuga de idéias (idéias levam a novas idéias, perdendo a meta, típica dos quadros maniformes) e desagregado (quando há perda completa da relação aparente entre as idéias).

O curso e a velocidade do pensamento também se alteram, podendo haver aceleração, principalmente em síndromes maníacas, ou lentificação, quando o pensamento vai mais devagar, comum em depressões. Outros fenômenos podem ocorrer, como bloqueio e roubo do pensamento: no primeiro caso, o fluxo é interrompido abruptamente; no segundo, o paciente interpreta tal fenômeno como se o pensamento lhe houvesse sido roubado. Inserção de pensamentos, também típicas de esquizofrenia, é a vivência de um pensamento não próprio ocorrendo ao paciente, interpretado como inserido por terceiros. A sonorização do pensamento tem um componente também de alucinação auditiva, pois o paciente ouve um som que não foi produzido (seu pensamento).

O conteúdo do pensamento é praticamente ilimitado, pois tudo pode estar contido no pensamento. Aqui, o que se deve avaliar é se há algum tema prevalente, que domine e sobrepuje a ocorrência de outros temas. O valor atribuído ao conteúdo, que pode conferir caráter delirante ao pensamento, é avaliado em uma função à parte, o juízo, que veremos adiante. O adoecer do pensamento, embora teoricamente extenso, na prática gravita em torno de poucos temas: culpa e pecado, religiosidade, sexualidade, morte, riqueza e poder ou ruína, perseguição ou adoecimento.

 

Linguagem

            Avaliada principalmente em seu componente verbal, devem considerados também a forma e o conteúdo. Quanto à forma, analisa-se a velocidade do discurso, que pode estar lentificado, caso em que normalmente se nota a latência de resposta, definida como uma pausa acima do normal entre as perguntas feitas pelo entrevistador e a resposta do paciente. É comum ocorrer nas depressões ou em casos de desorganização do pensamento, pois o paciente demora-se ao procurar as respostas em meio à desorganização em que se encontra. Em casos extremos de depressão e em casos de catatonia, verifica-se mutismo. Entretanto, o discurso pode estar acelerado; quando o paciente, além de falar rapidamente, fala em grande quantidade, dizemo-no logorréico; se associada à logorréia houver fala em alto volume e ininterrupta, fala-se em pressão de discurso, sendo usual ocorrer em mania e em quadros ansiosos mais graves. Mussitação, verbigeração e ecolalia são automatismos verbais, semelhantes a uma reza contínua em voz baixa, no primeiro caso; no segundo, trata-se da repetição sem sentido de frases ou palavras incessantemente; no último, da repetição automática das palavras pronunciadas pelo interlucutor. O conteúdo do discurso acompanha usualmente o conteúdo do pensamento, devendo ser descritos eventuais temas prevalentes. Ressaltamos a importância de afastar quadros de afasias com propedêutica adequada no exame da linguagem, que podem confundir o médico que não considerar a possibilidade de tais quadros.

 

Sensopercepção

            As alucinações são definidas como a presença de uma percepção sensorial na ausência de um estímulo real. Podem ser visuais, auditivas, olfativas, gustativas, das sensações corporais, estas últimas subdivididas em cinestésicas (músculos e articulações), viscerais (órgãos internos) ou superficiais (hápticas). A investigação de cada uma dessas alucinações passa pelo conteúdo (por exemplo, o que as vozes falam), duração do fenômeno, circunstâncias em que ocorrem etc., procurando sempre o maior detalhamento possível. Quando o paciente vivencia as alucinações mas sabe que não são reais, percebe que são “coisas da sua cabeça”, costuma-se chamar de alucinose, comum em síndrome de abstinência alcoólica. Finalmente há que se diferenciá-las das ilusões, que são distorções da percepção, ou seja, o estímulo existe, mas é percebido de forma diferente pelo paciente. Chamamos ainda de pseudo-alucinações aquela que ocorre no espaço subjetivo interno, isto é, não é percebida pelos órgãos dos sentidos. O paciente relata ocasionalmente uma experiência “como se”: é “como se estivesse ouvindo uma voz”, é “como se estivesse vendo uma cobra” etc.

 

Juízo e Crítica

            O juízo é a capacidade de dar valor a fatos e idéias, e apresenta-se alterado no paciente que tem delírios. Estes são certezas subjetivas de algo, não encadeadas no fluxo normal de pensamentos, não compartilhadas (não fazem parte de um conjunto de crenças culturalmente aceitas), irrefutáveis e de conteúdo improvável. Embora normalmente de conteúdo bizarro, podem ser plausíveis, como no exemplo do alcoolista traído que tem delírios de ciúme. Por isso é importante determinar a forma de surgimento da idéia em questão: o delírio surge por interpretação delirante, quando o paciente interpreta fatos corriqueiros de forma psicótica; por intuição delirante, caso em que o delírio simplesmente surge, como uma revelação inquestionável que não carece de explicação; ou por percepção delirante, quando, ao receber um estímulo qualquer, o paciente o entende como explicação para os delírios, como quando, ao ver a garrafa de cerveja na mesa, o paciente descobre que a mulher o estava traindo. Os delírios podem incluir os mais diversos temas, mas os mais comuns são os místicos, de persecutoriedade e de grandeza.

Crítica é definida arbitrariamente como a capacidade do paciente de entender sua condição, ter insight sobre seu estado, podendo estar preservada, abolida ou ser parcial, quando o paciente entende que algo está diferente, mas não consegue definir bem o que ocorre.

 

Afeto e Humor

            Afeto é a manifestação da resposta emocional de alguém a eventos internos e externos, pensamentos, idéias, memórias evocadas e reflexões. Mostra o momento do indivíduo, podendo, quanto à qualidade, ser de alegria, raiva, tristeza, ansiedade, interesse, vergonha, culpa, surpresa. No que se refere ao tônus afetivo, ou seja, ao volume do afeto, pode estar aumentado, diminuído ou embotado, o que define o estado de quase ausência de afetos ou de modulação e ressonância afetiva. Modulação é a capacidade de variar entre afetos; ressonância é a capacidade de sintonizar com o ambiente, reagindo adequadamente à situação em que se encontra. Ambos podem ser aumentados ou diminuídos, sendo caracteristicamente menores nas depressões, maiores na mania e praticamente ausentes na esquizofrenia, daí o descrever como embotamento afetivo. O humor é o todo da vida emocional, a disposição afetiva de fundo, algo como a média dos afetos, podendo, portanto, estar polarizado (para depressão, hipomania ou mesmo mania); se mantém-se levemente deprimido de forma constante, pode-se considerá-lo distímico. Hipertímico, por sua vez, é a manutenção de um estado de leve elevação constante. Finalmente diz-se eutímico do humor sem clara tendência para um ou outro lado ao longo do tempo.

 

Volição, Impulso e Prospecção

            Vontade é um empenho ou intenção dirigida ao objetivo, com base em motivação cognitivamente planejada. A redução ou abolição da vontade, em quadros de grande desânimo, denominam-se hipobulia ou abulia, respectivamente. Impulso é a inclinação para satisfazer certas necessidades primárias. Atos impulsivos podem ser esporádicos ou repetidos, com os mais diversos fins – impulso suicida, impulsos de compra, de roubo, alimentares, de fuga etc. Prospecção é a capacidade de projetar os desejos para o futuro; fica limitada em diversas síndromes psiquiátricas.

 

Psicomotricidade

            É a exteriorização comportamental motora dos estados psíquicos; divide-se entre as síndromes hipercinéticas e hipocinéticas. Nas primeiras, em que há aumento da atividade motora, o paciente pode se apresentar inquieto – com dificuldade de permanecer parado, senta-se e levanta-se repetidas vezes, mexe-se constantemente na cadeira (usual em quadros ansiosos) – ou agitado – quando já perdeu o controle de seu comportamento, podendo ser desde agitação leve até grave, em que ocorrem atos agressivos e destrutivos. As hipocinéticas são caracterizadas por inibição motora, com lentificação, inibição, até catatonia – quando há total ausência de atividade motora concomitantemente à flexibilidade cérea (em que o paciente assume a posição em que é deixado como se fosse um boneco de cêra) –, e catalepsia – em que há aumento do tônus e rigidez muscular.

 

Inteligência

Embora algumas vezes possa-se solicitar ao paciente que interprete provérbios populares para se inferir sua capacidade de abstração (reduzida na oligofrenia e em algumas formas de esquizofrenia), normalmente a inteligência não é testada de forma estruturada no exame psíquico; uma idéia do seu nível já é dada no decorrer da própria entrevista, contudo.

As funções mentais também podem ser agrupadas de acordo com o modo como são acessados durante a entrevista. Assim, a aparência, o nível de consciência e o comportamento psicomotor serão imediatamente perceptíveis à observação. Durante a conversação, poderão ser avaliados atenção e concentração, fala, linguagem e pensamento, orientação, memória e afeto. Mediante exploração ativa, por fim, serão analisados humor e volição, percepção, conteúdo do pensamento, crítica e julgamento. Poderão ainda ser realizados testes breves para melhor avaliação de memória e orientação, bem como pensamento abstrato e inteligência, quando necessários.

 

CONCLUSÕES

         Após levantar a história do paciente e realizar o exame psíquico, além de exame físico e neurológico direcionados, poderá o médico determinar as prováveis síndromes psiquiátricas envolvidas no diagnóstico em questão (tabela 1).

         É necessário lembrar que a entrevista psiquiátrica assume, com maior freqüência que em outras especialidades, um caráter terapêutico importante. Os pacientes experimentam algum grau de alívio apenas por expressar e partilhar seus sentimentos e problemas com um profissional. Além disso, a tranqüilização de saber que o fenômeno que o vem acometendo, seja ele qual for, é um diagnóstico médico que pode ser tratado, já é um aspecto na melhora do paciente e das relações familiares.

         Assim, o estabelecimento de uma comunicação médico–paciente empática e respeitosa, transmitindo as orientações diagnósticas e terapêuticas com segurança e com veracidade, são os fatores de excelência para a boa prática médica e psiquiátrica.

 

Tabela 1: Alterações comuns de exame psíquico

          Síndrome

Função

Orgânica

Demencial

Depressiva

Maníaca/

Hipomaníaca

Ansiosa

Psicótica

consciência

Rebaixada

Preservada

Preservada

Preservada

Preservada

Preservada

atenção voluntária

Reduzida

Prejudicada

Reduzida

Reduzida

Prejudicada

Variável

atenção espontânea

Reduzida

Prejudicada

Reduzida

Aumentada

Aumentada

Variável

memória

Prejudicada

Prejudicada/ confabulações

Prejudicada

Prejudicada

Prejudicada

Preservada

orientação

Desorientada

Desorientada

Preservada

Variável

Preservada

Variável

pensamento (conteúdo/forma)

Confuso

Empobrecido

Negativo e lento

Exaltado e acelerado

Acelerado

Desorganizado e delirante

linguagem (conteúdo/forma)

Empobrecida

Empobrecida

Negativa e lenta

Logorréia/

pressão de discurso

Logorréia/

preocupações

Desorganizada e delirante

Afeto e humor

Variável

Variável

Tristeza e depressão

Alegria ou irritabilidade e exaltação

Ansiedade, medo, preocupações

Variável ou humor delirante

Sensopercepção

Possíveis

alucinações

Possíveis

alucinações

alucinações em casos graves

alucinações em casos graves

Sem alterações

alucinações variadas

Juízo e crítica

Prejudicado

Variável

Preservado (delírios se grave)

Preservado (delírios se grave)

Preservado

Delirante

psicomotricidade

Variável

Variável

Lentificação

Aceleração

Inquietação

Variável

 

BIBLIOGRAFIA

1. Alonso-Fernandez F. Compendio de psiquiatria. Madrid: Oteo; 1978.

2. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV). Porto Alegre: Artes Médicas; 1995.

3. Coulehan J, Block M. A entrevista médica: um guia para estudantes da arte. Porto Alegre: Artmed; 1989.

4. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed; 2000.

5. Ey H. Manual de psiquiatria. Rio de Janeiro: Atheneu; 1992.

6. Jaspers K. Psicopatologia geral. 8. ed. São Paulo: Atheneu; 2005. v.1.

7. Kaplan HI, Sadock BJ, Grebb JA. Compêndio de psiquiatria: ciências do comportamento e psiquiatria clínica. 9. ed. Porto Alegre: Artmed; 2007.

8. Mackinnon RA, Yudofsky SC. A avaliação psiquiátrica na prática clínica. Porto Alegre: Artmed; 1988.

9. Othmer E, Othmer SC. A entrevista clínica utilizando o DSM-IV – Fundamentos. Porto Alegre: Artmed; 2003. v.1.

10. Sims A. Sintomas da mente: introdução à psicopatologia descritiva. 2. ed. Porto Alegre: Artmed; 2001.