FECHAR

MedicinaNET

Home

Síndrome hepatorrenal

Introdução

A síndrome hepatorrenal é caracterizada por uma alteração da função renal que ocorre em pacientes com insuficiência hepática. Não é associada a alterações histológicas significativas e, por este motivo, é considerada um quadro funcional. Ocorre quase que exclusivamente em pacientes com cirrose hepática associada a ascite, pois a fisiopatologia de seu aparecimento e do surgimento da ascite são similares.

Os pacientes cursam com intensa vasoconstrição renal, resultante de importante disfunção circulatória e orgânica, indicando mau prognóstico, com mortalidade em poucas semanas para boa parte dos pacientes.

Cerca de 40% dos pacientes com cirrose e ascite desenvolverão síndrome hepatorrenal durante o curso de sua doença. No primeiro ano após o aparecimento da ascite, cerca de 18% dos pacientes evoluem com síndrome hepatorrenal. Ela está presente ainda em 17% dos pacientes com ascite admitidos no hospital e em mais de 50% dos doentes com insuficiência hepática avançada.

 

Fisiopatologia

A fisiopatologia da síndrome não é completamente conhecida. Ela é consequência do processo de vasodilatação arterial na circulação esplâcnica que ocorre concomitantemente à vasoconstrição em outros territórios, como cérebro e rim. A vasodilatação na circulação esplâcnica é secundária à produção de óxido nítrico e outros mediadores vasodilatadores. O motivo da produção destes mediadores é mal definido, mas acredita-se que, inicialmente, ocorram alterações da citoarquitetura hepática, que aumentam a circulação portal e levam a shunts que permitem que certas toxinas não sejam depuradas pelo fígado. Também ocorre quebra de barreiras locais, o que, por sua vez, aumenta a chance do aparecimento de endotoxemia decorrente do metabolismo de substrato, que ocorre no trato digestivo, relacionado às bactérias da flora colônica. Esta endotoxemia é associada a produção do óxido nítrico e outros mediadores vasodilatadores na circulação portal e esplâncnica. Nestas circunstâncias, ocorre uma resposta de vasocontrição sistêmica, sobretudo em região renal, relativa à diminuição do volume circulante efetivo destes pacientes, com predomínio na circulação renal de prostaglandinas vasoconstritoras em relação a vasodilatadoras. Entre os sistemas vasoconstritores, estão envolvidos o sistema renina-angiotensina-aldosterona, catecolaminas, vasopressina e endotelina. Como resultado, há intensa redução da taxa de filtração glomerular.

Existem ainda alterações no débito cardíaco que contribuem para aumentar a hipoperfusão renal. Os pacientes cirróticos apresentam circulação hiperdinâmica e, apesar de valores habituais de fração de ejeção, o débito cardíaco nestes pacientes é relativamente baixo. Quando surgem hipovolemia, infecções ou outros eventos, o equílibrio mantido pela circulação hiperdinâmica é quebrado e o paciente apresenta piora da vasoconstrição renal, com evolução para insuficiência renal.

A síndrome hepatorrenal ocorre quase sempre associada a algum evento precipitante; destes, talvez o mais importante seja a peritonite bacteriana espontânea, que pode evoluir com síndrome hepatorrenal em 30% dos pacientes. Isto ocorre mesmo com a antibioticoterapia adequada com resolução da peritonite bacteriana espontânea.

 

Classificação

A síndrome hepatorrenal costuma ser dividida em dois subtipos, descritos a seguir.

 

Tipo 1

Caracterizada por rápida progressão da falência renal, evolução em menos de 2 semanas e nível de creatinina sérica superior a 2,5 mg/dL. Anteriormente, o critério apresentava o clearance de creatinina inferior a 20 mL/min como alternativa aos níveis de creatinina, mas definições recentes desconsideram tal clearance para o diagnóstico. O prognóstico é extremamente ruim e a média de sobrevida é de aproximadamente duas semanas sem tratamento.

 

Tipo 2

Caracterizada por falência renal de instalação mais lenta e creatinina sérica superior a 1,5 mg/dL. Anteriormente, o clearance de creatinina inferior a 40 mL/min podia ser usado para o diagnóstico, mas definições recentes utilizam apenas os níveis de creatinina. Apresenta melhor prognóstico e ocorre sobretudo em pacientes com ascite refratária ao uso de diuréticos.

 

Achados clínicos

O principal achado é a redução do débito urinário. Dessa forma, é díficil diferenciar entre a síndrome hepatorrenal e a insuficiência renal pré-renal associada a um quadro séptico ou a hipovolemia. O sedimento urinário costuma ser normal e não ajuda a fechar o diagnóstico. Portanto, uma prova de volume (1,5 L de soro fisiológico) é necessária em todos esses pacientes para corroborar com o diagnóstico. Outros achados são os mesmos que ocorrem em outros pacientes com doença hepática avançada, como icterícia, circulação colateral, eritema palmar, entre outros. Ascite é um achado universal nestes pacientes e, hoje, é considerado critério diagnóstico para tal situação.

Na maioria das vezes, existe algum fator precipitante, como uso de medicações nefrotóxicas, hepatite alcoólica, peritonite bacteriana espontânea, retirada de líquido ascítico sem reposição de albumina, sangramento digestivo, entre outras. Portanto, estas também são manifestações que podem estar associadas.

 

Critérios diagnósticos e exames complementares

O diagnóstico é de exclusão e, portanto, exames complementares são necessários. Os primeiros critérios diagnósticos para síndrome hepatorrenal foram descritos em 1994 e incluíam:

 

         insuficiência hepática aguda ou crônica avançada com hipertensão portal;

         ausência de melhora com reposição volêmica com salina fisiológica (1,5 L em quatro horas);

         ausência de proteinúria e de hematúria significativas ou alterações ultrassonográficas;

         ausência de choque, infecção bacteriana, drogas nefrotóxicas, hemorragia digestiva maciça ou grande perda de volume;

         aumento de creatinina acima de 1,5 mg/dL e clearance de creatinina inferior a 40 mL/min.

 

Outros critérios sugeridos, considerados adicionais, incluíam:

 

         volume urinário inferior a 500 mL/dia;

         sódio urinário < 10 mEq/L;

         osmolaridade urinária maior que a plasmática;

         hiponatremia com sódio inferior a 130 mEq/L.

 

Recentemente, os critérios diagnósticos foram reavaliados e os critérios adicionais foram abandonados. Apesar de a grande maioria dos pacientes apresentar sódio urinário baixo, na maioria das vezes até menor que 5 mEq/L, alguns pacientes apresentam sódio urinário aumentado, sobretudo em casos de icterícia associada, e, por isso, tais critérios foram abandonados. A hidratação proposta com salina fisiológica, por sua vez, também foi abandonada como critério, pois o aumento de volemia é apenas transitório, sendo mais apropriado o uso de albumina para tal propósito. O clearance de creatinina, antes utilizado para definir disfunção renal nestes pacientes, foi abandonado por ser pouco prático, sem aumentar a acurácia no diagnóstico.

Por fim, foi abandonado como critério a ausência de infecções, exceto por choque séptico, pois a síndrome hepatorrenal muitas vezes é precipitada por infecções, em particular a peritonite bacteriana espontânea.

Assim, em 2007, foram propostos novos critérios diagnósticos para síndrome hepatorrenal:

 

         cirrose com ascite;

         creatinina sérica maior que 1,5 mEq/L;

         sem melhora com reposição volêmica com albumina 1 g/kg (máximo de 100 g/dia) por 48 horas;

         ausência de choque;

         ausência de tratamento com drogas nefrotóxicas;

         ausência de doença renal parenquimatosa, que pode ser verificada por ausência de proteinúria maior que 500 mg/dia, hematúria maior que 50 hemácias/campo e alterações ultrassonográficas renais.

 

Diagnóstico diferencial

A síndrome hepatorrenal é um diagnóstico de exclusão, portanto, todas as causas de insuficiência renal fazem parte do diagnóstico diferencial. Achados como hematúria e proteinúria sugerem outros diagnósticos, como glomerulopatias, e, portanto, sua ausência é necessária para o diagnóstico. O principal diferencial é a insuficiência renal pré-renal, e a prova volêmica com uso da albumina é a forma de diferenciação entre as duas situações.

 

Tratamento

O tratamento de escolha é o transplante hepático, única medida que corrige a alteração microcirculatória inicial destes pacientes. Outras medidas que minimizam a disfunção hepática são abstinência ao álcool em pacientes com hepatopatia alcoólica ou uso de antivirais para tratamento de hepatites virais crônicas.

Outras opções tentam minimizar a disfunção de órgãos que ocorre nestes doentes. As opções mais utilizadas são os vasoconstritores arteriolares associados à albumina. A associação de midodrina e octreotida já foi testada em alguns estudos e é a preferida da literatura norte-americana, pois um estudo demonstrou redução de mortalidade, embora os dados não sejam robustos. A norepinefrina, por sua vez, foi avaliada em estudos não controlados e pode ser utilizada associada ou não a albumina. A medicação mais estudada para este propósito, com o melhor desempenho hemodinâmico e segurança, parece ser a terlipressina, sendo recomendada como tratamento por grande parte da literatura. No entanto, parte dos autores, sobretudo os norte-americanos, é resistente ao uso da medicação, pois eventos cardiovasculares são mais frequentes nestes pacientes e os estudos não demonstraram diminuição da mortalidade. A dose normal é de 0,5 a 2 mg a cada quatro horas, em geral por via endovenosa. Seu uso é indicado até melhora da função renal, com uso mínimo por cinco dias antes de decidir que a medicação não está apresentando resposta. O tempo máximo de uso da medicação é por volta de 14 dias.

O uso de cristaloides ou coloides (exceto a albumina) como expansores volêmicos, associados a vasoconstritores esplâncnicos, não foi devidamente testado e, portanto, não pode ser recomendado com base na evidência disponível. A dose normal de albumina é de 20 a 40 g/dia, sendo mantida enquanto se faz o uso do vasopressor.

A pentoxifilina foi usada para tratamento da hepatite alcóolica e demonstrou benefício em mortalidade, que parece ser associada à diminuição da evolução para síndrome hepatorrenal. Contudo, não foi testada especificamente para tratamento da síndrome hepatorrenal.

Por reverter a hipertensão portal, o TIPS é uma opção para o tratamento e pode apresentar benefício no curto prazo, mas não é uma terapêutica muito estudada para este fim; outras opções incluem shunts peritoniovenosos.

Em pacientes com síndrome hepatorrenal tipo 2, pode-se utilizar terlipressina e albumina em doses de 20 g/dia, mas, na literatura, há pouca evidência de benefício além do transplante renal.

 

Profilaxia da síndrome hepatorrenal

O uso de albumina no tratamento da peritonite bacteriana espontânea diminui o aparecimento de síndrome hepatorrenal, diminuindo disfunção renal de 33% para 10% no grupo que usou albumina. A dose recomendada no primeiro dia é de 1,5 g/kg de peso por via endovenosa em 6 horas e, no terceiro dia, dose de 1 g/kg de peso por via endovenosa, em 4 a 6 horas. O motivo para repetir a albumina no terceiro dia é somente que o efeito de aumento da volemia da albumina persiste por 24 horas. O benefício parece ser limitado a pacientes com creatinina maior que 1 mg/dL ou bilirrubina total maior que 4 mg/dL.

A terlipressina vem sendo estudada como substituto da albumina após paracenteses para prevenir disfunção renal, mas não existe evidência suficiente para realizar uma recomendação.

A pentoxifilina em dose de 400 mg 3 vezes/dia em pacientes com hepatite alcoólica diminuiu a incidência da síndrome hepatorrenal e é uma estratégia possível nestes pacientes.

 

Bibliografia recomendada

1.     Ginès P, Schrier RW. Renal failure in cirrhosis. N Engl J Med. 2009;361:1279.

2.     Salerno F, Gerbes A, Ginès P, Wong F, Arroyo V. Diagnosis, prevention and treatment of hepatorenal syndrome in cirrhosis. Gut. 2007; 56:1310.

3.     Ginès P, Cárdenas A, Arroyo V, Rodés J. Management of cirrhosis and ascites. N Engl J Med. 2004;1646-54.

4.     Runyon BA. Management of adult patients with ascites due to cirrhosis: an update. Hepatology. 2009;49:2087.