Hérnia inguinal na criança é a saída de uma víscera, ou parte dela, da cavidade abdominal para a região inguinal por meio de um defeito congênito (processo vaginal ou persistência do conduto peritoniovaginal) ou, mais raramente, por defeito da parede posterior do canal inguinal.1,2
A ocorrência da hérnia inguinal indireta é relacionada com a descida do testículo, que segue o gubernaculum testis até o escroto. Quando o testículo passa do anel inguinal interno, forma-se um divertículo de peritônio em sua superfície anteromedial, chamada de processo vaginal. Nas meninas, a persistência do conduto é denominado canal de Nuck.2
As camadas do processo vaginal normalmente se fundem em 90% das crianças nascidas a termo, obliterando a entrada da cavidade peritoneal para o canal inguinal. Falha nessa obliteração pode resultar em uma variedade de anormalidades da região inguinoescrotal, incluindo a persistência completa larga ou estreita (hérnia ou hidrocele) e o fechamento proximal com presença de líquido ao redor do testículo (hidrocele septada).3, 4 Alguns fatores podem favorecer o aparecimento de hérnia, tais como: tonicidade diminuída da musculatura da região inguinal (prematuros, desnutridos, doenças musculares e do tecido conectivo) e aumento da pressão abdominal (ascite, massas abdominais).1
Aproximadamente 1 a 3% das crianças nascidas a termo pode apresentar, e os prematuros podem ter até 3 vezes mais comumente. É mais comum entre os meninos (9:1) e do lado direito (60% das vezes).5
Toda criança com queixa de aumento de volume em região inguinal ou inguinoescrotal é passível de ser portadora de hérnia inguinal.
A história característica da hérnia inguinal é o aumento de volume em região inguinal ou inguinoescrotal ao choro ou ao esforço físico, e a da hidrocele comunicante é o aumento de volume insidioso do escroto no decorrer do dia, sem relação com esforço físico, e melhora com o repouso.1, 2
DICAS
É necessário atentar para o diagnóstico diferencial entre hidrocele septada (mais comum desde o nascimento, o volume do escroto não é variável ao longo do dia, entre 12 e 24 meses desaparece espontaneamente), criptorquidia (testículo não é palpado no escroto), linfonodomegalia, etc.3, 5 Não esquecer:
hérnia inguinal: queixa de aumento de volume em região inguinal ou inguinoescrotal aos esforços, exame físico com evidência da tumoração ou “sinal da seda”, tratamento cirúrgico;
hidrocele comunicante: queixa de aumento de volume escrotal insidioso ao longo do dia, melhora de manhã e aumenta no decorrer do dia (posição ortostática), exame físico com transiluminação positiva ou “sinal da seda”, tratamento cirúrgico;
hidrocele septada: queixa de aumento de volume escrotal invariável ou que está diminuindo ao longo dos meses, exame físico com transiluminação positiva, tratamento conservador até 12 a 24 meses;
cisto de cordão: queixa de aumento de volume fixo ou pouco variável em região inguinal, cístico, móvel, indolor, exame físico com evidência de nodulação em região inguinal cística, móvel e indolor, tratamento cirúrgico.
O exame físico pode identificar o aumento de volume característico da hérnia ou apenas sinais indiretos como o “sinal da seda” (sensação de roçar entre duas camadas do processo vaginal).
O maior risco é o encarceramento, principalmente nas crianças menores de 1 ano e nas prematuras, que pode levar a obstrução intestinal e estrangulamento. Caso se apresente com aumento súbito na região inguinal, dor, choro, às vezes com vômitos, tumoração visível e palpável, dolorosa à palpação e endurecida, essa hérnia encontra-se encarcerada e tem indicação de tentativa de redução manual. Deve-se colocar a criança em posição de Trendelemburg, fazer compressa com gelo sobre a região e sedar a criança. Se houver muitos vômitos, pode-se passar uma sonda nasogástrica para evitar aspiração. Após alguns minutos, a hérnia se reduzir· espontaneamente ou necessitará de manobras manuais para redução. Se houver hiperemia importante ou sinais de necrose, não se deve realizar a redução manual, pois a chance de sofrimento de alça intestinal é muito grande e a cirurgia est· indicada imediatamente.1, 2
Não há necessidade de realização de exames complementares para confirmar o diagnóstico. Apenas em caso de dúvida, estariam indicadas a ultrassonografia ou a observação da região inguinal ou da bolsa escrotal e a reavaliação, mas, na grande maioria das vezes, dispensa-se a realização de exames.
A cirurgia está indicada em todos os casos quando feito o diagnóstico, devendo apenas ser retardada quando a criança não apresenta condições clínicas, recém-nascido prematuro ainda no hospital (geralmente se indica a cirurgia quando em condições de alta, permanecendo 24 h em monitoração pelo risco de apneia). A cirurgia deve ser feita de maneira mais urgente quando acontece sucesso na redução manual de hérnia encarcerada e, na menina com ovário encarcerado, por haver risco de torção e/ou necrose.1, 4, 5
Visto que toda hérnia tem indicação cirúrgica, todas devem ser encaminhadas para avaliação com especialista.
Deve-se a um defeito do fechamento das estruturas fibromusculares da aponeurose do anel umbilical, que permite a protrusão de órgãos intra-abdominais.6
Aproximadamente 20% dos nascidos a termo apresentam fechamento incompleto do anel umbilical, e esse índice aumenta para 75 a 80% se for prematuro. É mais comum em negros (40%).4
Toda criança com queixa de aumento de volume em região umbilical é passível de ser portadora de hérnia umbilical.
A maioria das crianças é assintomática. Raramente, é causa de dor ou desconforto.
Protrusão redutível, às vezes, produzindo borborigmo. Ocasionalmente o defeito fascial é tão amplo, com pele redundante, que adquire o aspecto de probóscide (semelhante à tromba de elefante).6
Apresenta aumento de volume aos esforços, não necessariamente proporcional ao diâmetro do orifício (pequeno orifício com grande conteúdo e grande orifício com pequeno conteúdo).2
Muito raramente apresenta encarceramento.
Não há necessidade de realização de exames complementares para confirmar o diagnóstico.
DICA
Está contraindicado o uso de ataduras ou faixas sobre o abdome, pois a limitação dos movimentos espontâneos e livres da musculatura abdominal pode ocasionar perda do tônus muscular e inibir o estímulo local de maturação anatômica.4, 5
Na grande maioria dos casos, ocorre fechamento espontâneo do anel umbilical. Aguarda-se no mínimo até 2 anos de idade e acompanha-se a criança após essa idade, se o orifício continua diminuindo gradativamente, e não há queixa importante, pode-se observar até 5 ou 8 anos de idade.6
A partir dos 2 anos de idade, todas devem ser encaminhadas para avaliação com especialista. Antes disso, se houver grande alteração local, com formação de probóscide ou dúvida diagnóstica (hérnia de cordão e onfalocele).
A hérnia epigástrica é um defeito da linha alba com herniação de gordura pré-peritoneal, em qualquer parte da linha média, desde o apêndice xifoide até a cicatriz umbilical.7
Qualquer defeito na continuidade das fibras tendinosas da linha alba (p. ex., rompimento, falha de desenvolvimento) junto à entrada dos vasos sanguíneos pode predispor ao aparecimento de hérnia.4
Toda criança com queixa de aumento de volume na linha média supraumbilical é passível de ser portadora de hérnia epigástrica.
A história característica é de aumento de volume em região epigástrica, na linha média, podendo apresentar queixa de dor local.
Habitualmente, o defeito é pequeno, exigindo exame cuidadoso, às vezes, com a criança em pé e realizando manobra de Valsalva. A palpação deve ser cuidadosa, percorrendo toda a linha média à procura de outras hérnias (identifica-se a falha ou uma nodulação).2, 7
Pode haver encarceramento com dor e sinais flogísticos, o que caracteriza a necessidade de avaliação urgente.
DICA
Atentar para o diagnóstico diferencial com a diástase dos retos abdominais, que é uma falha na fixação da borda medial dos retos abdominais à linha alba e que não apresenta consequências.
Não há necessidade de realização de exames complementares para confirmar o diagnóstico.
O tratamento proposto é a correção cirúrgica, visto que não h· resolução espontânea, especialmente se houver sintoma.4
Visto que toda hérnia tem indicação cirúrgica, todas devem ser encaminhadas para avaliação com especialista.
Criptorquidia é a ausência do testículo no escroto, como consequência da falha da migração normal a partir da sua posição intra-abdominal. Pode ser unilateral ou bilateral.8
A criptorquidia isolada é a anomalia congênita mais comum ao nascimento. Pode ocorrer isoladamente ou associada a outros distúrbios congênitos, endócrinos, cromossômicos e até a anomalias de diferenciação sexual.9
A descida do testículo depende da interação entre diversos fatores hormonais e mecânicos, sendo ainda incompletamente entendida.10
Ocorre em aproximadamente 3% dos recém-nascidos do sexo masculino nascidos a termo e em até 33% dos prematuros. A ocorrência atinge 60 a 70% dos bebês com peso < 1.500 g.11
Com 1 ano de idade, cerca de 1% dos meninos apresenta criptorquidia, e é improvável sua melhora espontânea após essa idade. São divididos em palpáveis (80 a 90%) e impalpáveis (10 a 20%).12
A temperatura no escroto é de cerca de 33 °C, comparado a 34 a 35 °C da região inguinal e 37 °C intra-abdominal. Por estar submetido à temperatura elevada, o testículo sofre alterações progressivas. A cirurgia está indicada a partir do 6º mês de vida e antes do 2º ano para evitar danos ao testículo.12
Por apresentar risco de degeneração maligna cerca de 40 vezes maior do que na população normal e pelo fato de o risco não diminuir após a orquidopexia, essas crianças devem continuar a ser acompanhadas periodicamente, e a localização escrotal desse testículo facilita a avaliação e o seguimento.10
Toda criança com queixa de escroto vazio ou alteração escrotal é passível de ser portadora de criptorquidia.
Os pais habitualmente referem desde quando perceberam o escroto vazio, ou se notaram previamente a presença de testículo na bolsa. É importante também investigar passado de herniorrafia (pelo risco de atrofia testicular secundária), antecedentes familiares de criptorquidia (1,5 a 4% entre os pais e 6% entre irmãos).10
O exame físico deve ser realizado idealmente com a criança em posição supina, relaxada, à temperatura confortável.12
Observar simetria da bolsa (um lado menor do que o outro ajuda no diagnóstico de testículo retrátil e de criptorquidia); inspeção da região inguinal, crural e perineal à procura de aumento de volume característico; palpação de todas as regiões citadas.8
Se o testículo for palpado no canal inguinal, não há necessidade de realizar nenhum exame complementar.
Se o testículo não for palpado, pode-se investigar com ultrassonografia, que tem acurácia de 44% e é examinador-dependente. Outros exames só serão solicitados pelos serviços de referência se necessários.
Visto que atualmente os exames hormonais e de imagem não são conclusivos, recomenda-se que os portadores de criptorquidia impalpável sejam explorados cirurgicamente, independentemente dos resultados da avaliação de imagem ou hormonal.9
O tratamento de testículo não descido reduz o risco de torção, facilita o exame do testículo, melhora sua função endócrina, diminui o estresse psicológico e cria um escroto de aparência normal. Parece não afetar o risco de malignidade ou infertilidade se for unilateral.11, 12
Alguns meninos podem ter indicação de tratamento hormonal (que é controverso) e outros, na sua maioria, de tratamento cirúrgico.
A avaliação cirúrgica deve ser indicada precocemente, pois os estudos atuais mostram que a idade ideal para operação é antes dos 2 anos de idade.8, 10, 12
Logo após o diagnóstico, os casos de criptorquidia podem ser discutidos com o endocrinologista e avaliados pelo cirurgião.
DICA
Atentar para o diagnóstico diferencial com testículo retrátil, que pode tanto ser confundido com criptorquidia como com criança normal, mas que, às vezes, requer tratamento hormonal ou cirúrgico.
Atentar também para o risco elevado de torção de testículo criptorquídico.
Fimose é o estreitamento do orifício prepucial não permitindo a exposição da glande.
Uma vez que o prepúcio possa ser retraído expondo completamente a glande, não há fimose. Existem, entretanto, situações intermedirias com retração parcial e aderências balanoprepuciais ou com retração total, mas com área de estreitamento do prepúcio no corpo peniano.13
A retração prepucial forçada leva a fissuras longitudinais cuja cicatrização circular tende a formar tecido fibrótico, piorando a fimose.
Somente 4% dos recém-nascidos do sexo masculino apresentam prepúcio totalmente retrátil; aos 6 meses, a retratilidade completa é observada em 20%; pelo 5º ano de vida, o prepúcio apresenta-se retrátil em até 90% dos meninos; e quando se aproxima da maioridade, somente uma minoria tem prepúcio não retrátil.14, 15
Pensa-se que a circuncisão reduz a incidência de infecção do trato urinário, ao prevenir a colonização bacteriana do prepúcio, e taxas de ITU são significativamente menores em meninos circuncidados (10 vezes menor).14, 16 Entretanto, não há indicação de realizar a circuncisão com a finalidade de reduzir a ocorrência de infecção urinária.
A criança pode se queixar de disúria (dor ou dificuldade para urinar), sangramento e ocasionalmente retenção urinária.17
Pode haver história prévia de balanopostite ou de infecção urinária, bem como de dermatite amoniacal de repetição ou trauma prepucial na tentativa de exteriorizar a glande, entre outros.14, 15
É importante diferenciar fimose verdadeira ou patológica, que é menos comum e está associada a anel cicatricial esbranquiçado não retrátil.
Mesmo nas crianças maiores, a fimose dita fisiológica (aderência balanoprepucial) pode cursar sem problemas como dor, obstrução ou hematúria.14, 17
Não há necessidade de realização de exames complementares para confirmar o diagnóstico.
DICA
Nem toda criança que apresenta prepúcio não retrátil necessita de tratamento (conservador ou cirúrgico).
É muito importante orientar cuidados de higiene (no banho, com a urina residual após micção) para todas as crianças em todas as idades, mesmo para as que já conseguem expor o prepúcio, pois elas frequentemente “esquecem” de fazer a higiene local.15
Sem dúvida, a intervenção cirúrgica não é necessária para todas as crianças com aderências balanoprepuciais ou com prepúcio não retrátil.
Se a criança tem sintoma associado à presença da fimose, há necessidade de avaliação para a indicação de tratamento conservador (tratamento tópico com corticosteroides e hiluronidase) e/ou cirúrgico.
A maioria das circuncisões são realizadas por razões não médicas, tais como religiosas, emocionais ou culturais.13
A única verdadeira indicação médica para a postectomia é uma fimose patológica, que habitualmente está relacionada à balanite xerótica obliterante (BXO). Outras indicações incluem balanopostites de repetição.16
A criança que não consegue retrair o prepúcio e apresenta sintomatologia deve ser encaminhada ao especialista. Em algumas crianças, o tratamento clínico feito pelo médico de família e comunidade pode resolver o problema, permitindo a exposição da glande.
1. Souza JCK. Hérnia inguinal. In: Souza JCK, Salle JLP, organizadores. Cirurgia pediátrica: teoria e prática. São Paulo: Roca; 2007. p. 321-9
2. Engum SA, Grosfeld JL. Hernias in children. In: Spitz L, Coran AG, organizadores. Operative pediatric surgery. London: Hodder Arnold; 2006. p. 237-56.
3. Baskin LS, Kogan BA. Hydrocele/Hernia. In: Gonzáles ET, Bauer SB, organizadores. Pediatric urology practice. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 1999. p. 649-53.
4. Goldberg P, Pereima MJL. Parede abdominal. In: d’Acampora AJ, coordenador. Manual de terapêutica médica: pediatria. Florianópolis: ACM; 2006. p. 1075-7.
5. Gabriel E. Hérnia inguinal na infância. Rev Col Bras Cir. 2001;28(6):444-52.
6. Souza JCK. Hérnia umbilical. In: Souza JCK, Salle JLP, organizadores. Cirurgia pediátrica: teoria e prática. São Paulo: Roca; 2007. p. 330-1.
7. Souza JCK. Hérnia epigástrica. In: Souza JCK, Salle JLP, organizadores. Cirurgia pediátrica: teoria e prática. São Paulo: Roca; 2007.
8. Chan P, Souza JCK. Criptorquidia. In: Souza JCK, Salle JLP, organizadores. Cirurgia pediátrica: teoria e prática. São Paulo: Roca; 2007. p. 576-82.
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10. Araujo EJ. Distopias testiculares. In: d’Acampora AJ, coordenador. Manual de terapêutica médica: pediatria. Florianópolis: ACM; 2006. p. 1104-5.
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12. Hutson JM, Balic A, Nation T, Southwell B. Cryptorchidism. Seminars in Pediatric Surgery. 2010;19(3):215-24.
13. Sociedade Brasileira de Urologia. Cirurgia peniana: fimose e hipospádia [Internet]. Brasília: AMB/CFM; 2006 [capturado em 04 out. 2011]. Disponível em: www.projetodiretrizes.org.br/6_volume/14-CirurgiaPFimoHipo.pdf.
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17. Camacho JG. Fimose. In: d’Acampora AJ, coordenador. Manual de terapêutica médica: pediatria. Florianópolis: ACM; 2006. p. 1100-1.