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Apendicite Aguda

Versão original publicada na obra Fochesatto Filho L, Barros E. Medicina Interna na Prática Clínica. Porto Alegre: Artmed; 2013.

 

Caso Clínico

Um paciente de sexo masculino, 28 anos, procura o serviço de emergência por sentir dor abdominal. O quadro havia iniciado há 36 horas de sua chegada com o aparecimento de dor difusa em cólica e náuseas. Nas últimas 12 horas, a dor passa a ser constante e localizada no quadrante inferior direito, acompanhada de um episódio de vômito e de temperatura axilar de 37,8°C. A dor piora com contração da parede abdominal e à deambulação. Ao realizar exame físico, o paciente encontra-se prostrado e imóvel. À palpação do abdome, ele tem contração involuntária da musculatura da parede abdominal no quadrante inferior direito (defesa) e dor forte à retirada súbita de compressão manual nessa região (rebote). A partir de hemograma solicitado, evidencia-se leucocitose (14.000/mm3) com desvio à esquerda (11% de bastonados e 61% de segmentados).

 

Definição

A apendicite aguda é a inflamação do apêndice cecal, causada, na grande maioria dos casos, por obstrução do lúmen. Com a obstrução, ocorre proliferação de microrganismos, principalmente gram-negativos e anaeróbios, e infecção da parede do apêndice, o que é a causa de grande parte dos sinais clínicos da síndrome que acompanha essa doença.

 

Noções de anatomia do apêndice cecal

O apêndice é uma protuberância tubular do ceco que tem a base constantemente localizada na confluência das tênias, próximo à válvula ileocecal, e o comprimento variável, na maioria das pessoas, entre 7 e 11 cm. Ele é uma parte do intestino grosso rico em tecido linfoide, mas sem função específica conhecida. A sua posição a partir da base é variável, pois frequentemente está atrás do ceco (retrocecal), atrás do íleo distal (retroileal) ou na cavidade pélvica (Fig. 48.1).

A posição do apêndice inflamado tem significativa influência na apresentação clínica da apendicite.

 

 

Figura 48.1

Posições do apêndice cecal.

Fonte: O'Connor e Reed¹ e Skandalakis.²

 

Patogênese

O lúmen do apêndice cecal está em continuidade com o lúmen do ceco, portanto o seu preenchimento varia conforme o peristaltismo e o conteúdo deste. O impedimento de esvaziamento do apêndice é o mecanismo mais comum da inflamação. Esse impedimento é causado mais frequentemente devido a uma impactação arredondada de fezes, conhecida como fecalito, mas também pode resultar de hiperplasia linfoide, tumores, parasitas, corpo estranho ou aderências. A estase do material fecal no lúmen apendicular a montante da obstrução propicia a proliferação de microrganismos que, então, invadem a parede do apêndice, causando inicialmente uma inflamação, que, se não tratada, pode evoluir para necrose com perfuração. Essa sequência de eventos determina as fases dos achados clínicos e anatomopatológicos da apendicite: inflamação aguda com edema, microabscessos (flegmão), necrose com perfuração, que pode ser contida por tecidos adjacentes (peritonite localizada, abscesso) ou extravasar na cavidade peritoneal (peritonite difusa).

 

Epidemiologia

A apendicite aguda é a causa mais comum de dor abdominal com indicação cirúrgica de urgência (abdome agudo). Ela afeta indivíduos de ambos os sexos e de todas as faixas etárias, porém é mais frequente entre os 20 e os 30 anos e muito incomum antes dos 2 anos de idade. Ao longo da vida, 12 a 25% da população será submetida à apendicectomia. A apendicite aguda é também a causa mais comum de abdome agudo em gestantes, ocorrendo em uma a cada 700 a 1.500 gestações.

 

Sinais e Sintomas

Dor abdominal é o sintoma mais característico da doença, podendo ocorrer em cólica, difusa ou referida na região periumbilical. A febre em geral é de menos de 38°C. Queixas de anorexia, náuseas e vômitos também fazem parte do quadro.

Vários sinais podem ser encontrados nesses pacientes e devem ser pesquisados, como os seguintes:

Sinal de Blumberg.

Sinal de Lapinsky (dor à compressão do ceco enquanto a coxa direita é flexionada sobre a pelve).

Sinal de Lenander (diferença de temperatura axilar e retal maior do que 1ºC).

Leucocitose.

 

Quadro Clínico

Apesar de haver um quadro considerado como típico de apendicite aguda, em 30 a 50% dos pacientes o diagnóstico clínico inicial é impreciso e esclarecido somente por meio de exames, evolução clínica ou cirurgia. A dor abdominal é o sintoma mais característico e constante. Conforme mencionado anteriormente, a dor inicial é causada por contrações do apêndice com obstrução luminal. Essa dor é do tipo em cólica, difusa ou referida na região periumbilical. Com frequência, ocorrem concomitantemente a essa dor anorexia e náuseas. Ainda que possa haver queixa de diarreia, principalmente em crianças, alteração do hábito intestinal não faz parte do quadro clínico típico, mas deve ser inquirida para fazer diagnóstico diferencial com outras doenças, como a gastrenterite infecciosa. Com a evolução do processo patológico, o apêndice torna-se inflamado, e o comprometimento dos tecidos vizinhos, com inervação somática, é responsável pela localização de dor e rigidez muscular. Com processo inflamatório próximo à parede abdominal anterior, a liberação brusca de uma pressão manual na fossa ilíaca causa dor forte, o denominado sinal de Blumberg. Caso o apêndice seja retrocecal, não há rigidez da parede abdominal, mas o comprometimento do músculo psoas causa dor ao flexionar a coxa sobre a pelve. O sinal de Lapinsky corresponde à dor quando se realiza compressão do ceco enquanto a coxa direita é flexionada sobre a pelve. Nessa fase, a infecção da parede apendicular pode causar febre, geralmente menor do que 38°C, e leucocitose. A inflamação do peritônio pélvico resulta em uma elevação localizada da temperatura, o que determina diferença entre a temperatura axilar e a retal maior do que 1ºC (sinal de Lenander). Se o quadro progride para peritonite localizada, a contratura da parede abdominal é progressiva, bem como há agravamento do comprometimento sistêmico. Em casos de peritonite difusa, a dor, o rebote doloroso e a contratura involuntária tornam-se generalizados no abdome. Há distensão abdominal em quadros de peritonite difusa ou quando o flegmão englobar o íleo distal, podendo ocasionar um quadro de suboclusão intestinal (Tab. 48.1).

 

 

 

Diagnóstico

O diagnóstico de apendicite aguda tem como base a história e o exame físico do paciente, e estes são, muitas vezes, suficientes para a indicação do tratamento cirúrgico. Nos casos considerados típicos, principalmente em homens jovens, pode ser desnecessária a realização de exames complementares. Porém, na maioria dos casos, o diagnóstico diferencial com doenças de tratamento não operatório deve ser investigado com exames. No hemograma, a alteração mais comum é o nível de leucocitose moderado, até 18.000/mm³, com desvio à esquerda. Se a taxa de leucocitose estiver acima de 20.000/mm³, frequentemente associa-se esta à ruptura do apêndice. No início do quadro, o hemograma pode estar dentro dos padrões normais. O exame comum de urina deve ser realizado para auxiliar no diagnóstico diferencial com litíase ureteral ou pielonefrite. Nos casos em que o apêndice inflamado está em contato com o ureter ou com a bexiga, pode ocorrer leucocitúria e hematúria microscópica.

O raio X de abdome rotineiramente agudo não faz parte da investigação usual de apendicite. Entre os possíveis achados, somente a incomum visualização do fecalito é altamente sugestiva de apendicite. A ultrassonografia abdominal pode ser muito útil para confirmação diagnóstica. Os achados serão de dor à compressão com o transdutor, estrutura tubular de fundo cego, sem peristalse, com diâmetro maior ou igual a 6 mm à compressão com transdutor, com líquido ao seu redor. A visualização do fecalito e os outros sinais ecográficos praticamente diagnosticam a condição. Os valores preditivos da ultrassonografia são superiores a 90% em algumas séries. A tomografia computadorizada de abdome apresenta valores iguais ou superiores aos da ultrassonografia. O uso desse exame é limitado devido a custo, exposição à radiação e alergia ao contraste. Apesar de alguns especialistas defenderem o uso liberal da tomografia em pacientes com suspeita de apendicite, por diminuir substancialmente o índice de cirurgias não terapêuticas, essa indicação ainda é tema de controvérsia na literatura. A ressonância nuclear magnética pode ser um exame substituto para a tomografia computadorizada em pacientes gestantes, alérgicos ao contraste e em crianças.

Mesmo com os avanços nas técnicas de imagem do abdome, as taxas de erro no diagnóstico de apendicite pouco se alteraram nos últimos anos. Elas são de 22% em mulheres e 8% em homens. O valor de variáveis clínicas e laboratoriais foi estudado, e muitos escores são encontrados na literatura, sendo o de Alvarado o mais conhecido. Neste, são colocados em uma equação os seguintes dados: dor no quadrante inferior direito, leucocitose, migração da dor, desvio à esquerda, febre, náusea ou vômito, anorexia e cetonemia e sinal de rebote.

Gestantes representam o grupo de pacientes que maior desafio impõe para a realização do diagnóstico de apendicite aguda. O crescimento do útero desloca o apêndice progressivamente para posições mais craniais no abdome (Fig. 48.2). A dor, na maioria das gestantes, permanece no quadrante inferior direito. O quadro clínico tende a ser mais brando devido às alterações imunológicas normais da gestante.

 

 

 

Figura 48.2

Posição do apêndice cecal conforme a fase da gestação.

Fonte: Skandalakis² e Baer e Arens.³

 

Tratamento

O tratamento da apendicite aguda é cirúrgico em quase todos os casos. Representa uma exceção o grupo de pacientes pediátricos com diagnóstico tardio de plastrão inflamatório. Esses podem beneficiar-se de tratamento com antibióticos e apendicectomia eletiva. O procedimento cirúrgico para tratamento da apendicite depende do estágio da doença e caracteriza-se por remoção cirúrgica do apêndice, lavagem da cavidade, drenagem de coleções localizadas ou, nos raros casos de comprometimento grave do intestino, ressecção parcial do colo direito. Em qualquer fase da doença, a abordagem cirúrgica pode ser realizada por laparotomia ou por videolaparoscopia. Pode-se realizar laparoscopia se não houver contraindicação (coagulopatia estabelecida, múltiplas cirurgias abdominais prévias, hipertensão portal, instabilidade hemodinâmica) e se houver disponibilidade de equipamento e equipe treinada. A videolaparoscopia, em relação à laparotomia transversa geralmente empregada para apendicectomia, tem a vantagem de propiciar melhor avaliação do restante da cavidade peritoneal e, com isso, fornecer também o diagnóstico diferencial de outras causas de dor abdominal. Essa vantagem é potencialmente mais relevante em mulheres, nas quais a doença inflamatória pélvica representa um diagnóstico diferencial de difícil distinção com a apendicite aguda. Outro grupo de pacientes que se beneficia bastante dessa abordagem é o dos candidatos à laparotomia mais extensa, os obesos e os com suspeita de peritonite. A lavagem da cavidade peritoneal nas peritonites é totalmente factível pela videolaparoscopia. Recente metanálise, incluindo 44 estudos randomizados, observou que a apendicectomia laparoscópica necessita de menos tempo de internação hospitalar, é menos dolorida, a recuperação é mais rápida e apresenta menor índice de complicações do que a apendicectomia convencional, entre essas a taxa de infecção de ferida operatória.

O tratamento da apendicite aguda com antibióticos vem sendo estudado e tem sucesso em aproximadamente 68% dos casos. Ainda não há evidência científica suficiente para recomendar essa prática na rotina.

A escolha do uso de antibióticos depende da fase da apendicite aguda. A flora do apêndice é a mesma do intestino grosso, predominantemente representada por germes gram-negativos, sendo a Escherichia coli o mais comum, e por anaeróbios, entre eles, o Bacteroides fragilis é o mais comum. Na fase inicial e flegmonosa, o uso de dose única de antibióticos na indução da anestesia é a conduta mais indicada. A administração de cefoxitina é muito difundida para esse fim. Nos casos em que há abscesso ou peritonite, o tratamento deve ser continuado por alguns dias até que haja melhora dos parâmetros clínicos. Nesses casos, o tratamento pode ser realizado com algum regime que dê cobertura à flora mencionada, e a cefoxitina não deve ser empregada, pois está associada à indução de resistência. Os esquemas mais empregados são monoterapia com ampicilina-sulbactam, ticarcilina-clavulonato, moxifloxacino e carbapenêmicos ou associações, como cefalosporinas (ceftriaxona, cefepima, cefuroxima), cipro ou levofloxacino e aminoglicosídeo (gentamicina ou tobramicina) associados ao metronidazol.

 

Caso Clínico Comentado

O caso em questão pode ser considerado típico de apendicite aguda em fase flegmonosa. Quase todos os critérios do escore de Alvarado estão presentes, aumentando muito a probalidade desse diagnóstico. O rebote positivo e a dor na realização de mobilização sugerem envolvimento inflamatório dos tecidos adjacentes e da parede abdominal. Outros diagnósticos possíveis são mais raros e de difícil definição sem a exploração da cavidade peritoneal. Entre eles, os principais são diverticulite de Meckel, diverticulite de ceco ou sigmoide e doença de Crohn complicada. Um paciente jovem, como o do caso, sem apresentar comorbidades, pode ser submetido à apendicectomia sem nenhum exame pré-operatório. Os exames que melhor complementariam a avaliação inicial seriam o exame do sedimento urinário e a ultrassonografia abdominal.

 

Referências

1.O’Connor CE, Reed WP. In vivo location of the human vermiform appendix. Clin. Anat. 1994;7:139-42.

2.Skandalakis JE, editor. Skandalakis’ surgical anatomy: the embryologic and anatomic basis of modern surgery. New York: McGraw-Hill; 2004. 2 v.

3.Baer JL, Arens RA. Appendicitis in pregnancy. JAMA 1932;98:1359.

 

Leituras Recomendadas

Alvarado A. A practical score for the early diagnosis of acute appendicitis. Ann Emerg Med. 1986;15(5):557-64.

Awad ZT, Eubanks WS. Laparoscopic appendectomy. In: Fischer JE, editor. Mastery of surgery. 5th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2007. p. 1444-57

Berger DH, Jaffe BM. The appendix. In: Brunicardi FC, Andersen DK, Billiar TR, Dunn DL, Hunter JG, Polock RE. Schwartz’s principles of surgery. 8th ed. New York: McGraw-Hill; 2007. p. 784-99

Figueiredo FA. Apendicite aguda. In: Cavazzolla LT, Silva RS, Bregeiron R, Menegotto R, Figueiredo F, organizadores. Condutas em cirurgia geral. Porto Alegre: Artmed; 2008. p. 192-8.

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Lowry SF, Hong JJ. Appendicitis and appendiceal abscess In: Fischer JE, editor. Mastery of surgery. 5th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2007. p. 1430-43.

Sauerland S, Jaschinski T, Neugebauer EA. Laparoscopic versus open surgery for suspected appendicitis. Cochrane Database Syst Rev. 2010;(10):CD001546.

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