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Atualização sobre Coagulação Intravascular Disseminada

A coagulação intravascular disseminada (CIVD) ou coagulopatia de consumo é uma síndrome clínico-patológica induzida por pró-coagulantes que entram na circulação ou são produzidos e vencem os mecanismos naturais anticoagulantes e a fibrinólise endógena.

Historicamente, sua primeira descrição é de 1834, quando Dupuy demonstrou achado em animais com injúria cerebral de trombose disseminada. Em 1835, Trousseau mostrou que neoplasias têm tendência a se transformarem em trombose disseminada; em 1961, Lasch e colaboradores demonstraram os mecanismos da, atualmente, denominada coagulopatia de consumo.

A CIVD pode ter uma apresentação tanto aguda quanto uma emergência com alto risco de vida ou uma condição crônica, por vezes até subclínica, que acompanha condições como neoplasia e hepatopatias. Neste texto, será discutida a CIVD com foco nas apresentações agudas da síndrome.

 

Etiologia e Patogênese

 

Em estudos anatomopatológicos, os órgãos mais comumente envolvidos são os pulmões e os rins. Além desses órgãos, são comumente envolvidos o cérebro, o coração, o fígado, o baço, as adrenais, o pâncreas e os intestinos. O sangramento difuso em múltiplos órgãos, a necrose hemorrágica, os microtrombos em pequenos vasos e os trombos em vasos de médio e grosso calibre são os principais achados anatomopatológicos.

Outro achado anatomopatológico significativo é a presença de endocardite marântica, que se manifesta em até 50% dos pacientes com CIVD, quando buscada ativamente, e ocorre sobretudo nas valvas mitral e aórtica. O processo de hemostasia normal se inicia no próprio local da lesão vascular inicial, primeiramente com formação de coágulo e, depois, com a resolução dele para permitir o reparo tecidual. Na CIVD, esse processo ocorre de forma anormal e muito amplificada, levando à coagulação disseminada e à fibrinólise.

O fator iniciador, em geral, é a exposição a um fator coagulante, denominado de fator tissular ou tecidual. O fator tissular é presente na membrana da maioria dos tecidos, incluindo camada média e adventícia dos vasos em condições normais; o sangue não é exposto ao fator tissular; componentes desses fatores tissulares incluem:

               Produtos bacterianos como lipopolissacarídeos.

               Fator tecidual na circulação (na sepse por meningococos).

               Fator pró-coagulante das neoplasias, que são uma enzima proteolítica produzida sobretudo por tumores mucinosos.

               Lesão endotelial pelo trauma com dano endotelial, que libera enzimas pró-coagulantes e fosfolipídeos.

               Na hemólise intravascular severa, como nas reações hemolíticas transfusionais, um processo de coagulação é ativado por vias como liberação de fator tecidual, citocinas, incluindo TNF e produção reduzida de óxido nítrico.

               Em pacientes com deficiência de proteína C, o desbalanço entre geração de trombina e fibrinólise pode sobrepujar os mecanismos normais de proteção contra a coagulação inapropriada.

 

O fator tecidual, em geral, é ativado por citocinas, em particular a interleucina 6 (IL-6); a sepse é um dos principais fatores precipitantes de CIVD, e as citocinas, ao ativarem a cascata inflamatória, levam à produção intravascular de trombina; isso, combinado com a falha dos mecanismos naturais de coagulação, acarreta a coagulação disseminada na maioria dos casos.

O sangue é exposto ao fator tissular (trauma, queimadura, placenta prévia ou outros eventos) ou a entrada de células entranhas na circulação, que podem ocorrer por metástases, leucemias, embolia amniótica, de forma que se ativa o sistema de coagulação, que também é ativado na resposta inflamatória sistêmica ou por bactérias, em um processo que envolve monócitos, células endoteliais, neutrófilos e plaquetas no processo. Alterações no endotélio vascular são necessárias para o início do processo que leva à CIVD.

Os mecanismos de controle envolvem a remoção da trombina gerada por células endoteliais em complexos formados com a antitrombina III (ATIII); outra linha de defesa envolve os inibidores do fator tecidual, além das células do parênquima hepático, que promovem o clareamento dos fatores IX, X e XI da circulação e da reposição dos fatores de coagulação, plasminogênio, A-2 antiplasma, ATIII e proteína C.

A ativação das plaquetas acelera a formação de fibrina por vários mecanismos, sendo outro fator causal significativo. A acidose e a hipotermia alteram os fatores de coagulação, também contribuindo para esse processo.

São fatores causais de CIVD:

               Sepse.

               Doenças neoplásicas malignas: especialmente na leucemia promielocítica aguda, tumores mucinosos como os de pâncreas, do estômago e de ovário, e tumores cerebrais.

               Trauma: sobretudo se envolve o sistema nervoso central (SNC).

               Complicações obstétricas: principalmente, pré-eclâmpsia, aborto retido, esteatose hepática aguda da gestação e placenta prévia.

               Hemólise intravascular: por reações transfusionais, púrpura trombocitopênica trombótica, malária severa.

 

As causas menos comuns de CIVD envolvem:

               Heat stroke ou hipertermia

               Lesões por esmagamento

               Uso de simpaticomiméticos abusivos

               Shunts peritoneovenosos

               Picadas de cobras

               Deficiência de proteína C

               Rejeição a transplante de órgão sólido

               Embolia gordurosa

               Síndrome antifosfolípide catastrófica

 

Quadro Clínico

 

A CIVD ocorre em 1% das internações hospitalares em hospitais terciários. A maior parte das manifestações é atribuível à doença de base que leva ao aparecimento da CIVD, sendo as doenças infecciosas e neoplásicas responsáveis por dois terços dos casos.

As manifestações específicas atribuíveis à CIVD são sangramento e tromboses, sendo mais evidentes clinicamente os sangramentos, comuns em todas as séries de casos publicados; por outro lado, o achado de choque ou disfunção de outros órgãos apresenta proporção variável em estudos nas diferentes séries de casos.

Os sangramentos na CIVD aguda ocorrem em 64% dos casos e costumam ser de múltiplos sítios, incluindo petéquias, equimoses e sangramento em babação em sítios de venopunção; também costuma ser descrito sangramento de mucosas. Os eventos hemorrágicos podem, inclusive, dependendo de sua extensão, ser associados com risco de vida.

Outra manifestação frequente na CIVD grave é a disfunção extensa de órgãos, que, com frequência, resulta de trombos microvasculares; a disfunção respiratória ocorre em 16% dos casos. A ocorrência de tromboembolismo pulmonar e de trombose de grandes veias, por sua vez, é rara, embora, em uma série, 7% dos casos foram associados a eventos tromboembólicos.

Em pacientes com endocardite marântica associada, podem ocorrer acidentes vasculares cerebrais (AVCs); em caso de trombose de vasos cutâneos, bolhas hemorrágicas, necrose acral e gangrena são comuns. O aparecimento de disfunção circulatória com choque pode ser tanto causa como consequência da CIVD; por sua vez, a disfunção renal, com frequência, ocorre por microtrombose de arteríolas glomerulares; as manifestações incluem oliguria, anúria, azotemia e hematúria em 24 a 50% dos casos.

A disfunção hepática é descrita nos pacientes com icterícia, ocorrendo em 19 a 57% dos casos de CIVD; se houver hipotensão prolongada, aumentam as chances de disfunção hepática, simulando, inclusive, as evoluções de hepatites fulminantes.

As disfunções do SNC ocorrem por micro ou macrotrombos, além de eventos embólicos e hemorragias que podem ser associadas à CIVD, manifestando-se apenas em 2% dos pacientes. As manifestações pulmonares incluem desde hipoxemia leve até hemorragia alveolar (achado relativamente específico na doença) e até mesmo a síndrome da angústia respiratória aguda (Sara). Podem, ainda, ocorrer hemoptise, dispneia, dor torácica, roncos, sibilos e atrito pleural. Na radiografia de tórax, podem aparecer infiltrados difusos.

Outra manifestação descrita é a insuficiência adrenal aguda secundária ao processo inflamatório, afetando a adrenal, e hemorragia desta, em quadro que simula a síndrome de Waterhouse-Friderichsen. A púrpura fulminante é uma forma de manifestação com necrose hemorrágica extensa de extremidades e nádegas, ocorrendo sobretudo em crianças, mas acometendo também adultos; aparecem microtrombos em vasos e, por vezes, vasculites em biópsia de pele.

A deficiência de proteína C é um fator associado, sendo frequentemente letal, ocorrendo, muitas vezes, 2 a 4 semanas após infecções relativamente leves como varicela, escarlatina ou rubéola. Deve-se realizar a excisão de grandes extensões de pele para prevenir a piora dos danos. A mortalidade da CIVD varia de 31 a 86% nas diferentes séries, e está relacionada, em grande parte, ao seu fator precipitante.

 

Achados Laboratoriais

 

Na apresentação aguda, a CIVD pode apresentar plaquetopenia, um achado sensível, mas pouco específico, que costuma ser apenas moderado, sendo que raramente há contagens de plaquetas <20.000 células/mm3. Há alterações de exames de coagulação como tempo de protrombina (TP), tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA), D-dímero, tempo de trombina, fibrinogênio, produtos de degradação de fibrina e esfregaço de sangue periférica. A anemia hemolítica microangiopática com células em alvo pode ocorrer, embora menos pronunciada que no tempo de tromboplastina parcial (TTP).

Quando há mudança em mais de três parâmetros e plaquetopenia, o diagnóstico de CIVD é provável e, normalmente, se descarta a necessidade de outros testes. O fibrinogênio pode ser normal no início das manifestações; as alterações podem levar de 1 a 2 dias para ocorrerem (meia-vida do fibrinogênio de 4 dias). Existem escores de CIVD de valor prognóstico, embora pouco validados na literatura. O D-dímero pode ser muito útil, pois indica que o cross-linkage gerado por trombina que digerida pela plasmina.

Para o diagnóstico de CIVD, são considerados os seguintes parâmetros:

               Presença de fator precipitante sabidamente associado com CIVD: sim, 2 pontos; não, 0 pontos.

               Contagem plaquetária: >100.000: 0 pontos; 50.000?100.000: 1 ponto; <50.000: 2 pontos.

               Aumento dos produtos de degradação da fibrina: sem aumento: 0 pontos; aumento moderado: 1 ponto; aumento severo: 2 pontos.

               TP aumentado: <3 segundos: 0 pontos; 3?6 segundos: 1 ponto; >6 segundos: 2 pontos.

               Nível de fibrinogênio <1g/L: 1 ponto.

 

Se o escore for =5 pontos, será considerado um caso de CIVD; se <5 pontos, mas ainda houver suspeita, devem ser repetidos os exames em 48 horas.

 

Coagulação Intravascular Disseminada Crônica

 

A CIVD crônica ocorre em várias doenças como carcinoma metastático, hemangiomas gigantes ou síndrome do óbito fetal; em todas essas situações, os mecanismos de controle tendem a prevenir a ocorrência de manifestações clínicas severas, neutralizando enzimas ativas por aumento da síntese de componentes hemostáticos consumidos.

Com isso, os valores variáveis dos testes laboratoriais, como as plaquetas, por exemplo, estão apenas levemente diminuídos, estando o fibrinogênio normal ou alto, a TTPA ou TP dentro dos limites da normalidade. Entretanto, o paciente tem produtos da degradação do fibrinogênio (PDF) e D-dímeros elevados. São comuns os achados de células fragmentadas, mas em menor proporção que na PTT.

Outra forma de manifestação da CIVD é a chamada CIVD acompanhada de fibrinólise primária; os achados típicos são plaquetas diminuídas, D-dímero aumentado, diminuição da lise de coágulo, diminuição do tempo de lise da hemoglobina e PDF muito aumentado ? como leucemia mieloide aguda (LMA), hipertermia e carcinoma metastático de próstata e embolia de fluído amniótico.

 

Fibrinólise Primária

 

A fibrinólise primária ocorre quando a plasmina é gerada na ausência de CIVD; essa situação tem sido descrita em doença hepática, no carcinoma de próstata, na terapia trombolítica e em alguns casos sem causa aparente. Nesses pacientes, o D-dímero costuma ser normal, aumentando, algumas vezes, na terapia trombolítica com t-Pa.

 

Tratamento

 

O tratamento para CIVD não está muito definido, pois não existem estudos controlados; o mais importante é o manejo das doenças predisponentes. A terapia com componentes sanguíneos é indicada somente se houver sangramento ou por depleção de fatores hemostáticos.

Em pacientes com plaquetas entre 50.000 e 100.000 células/mm3, pode ser indicada a transfusão de 6 a 10 unidades de plaquetas, caso houver sangramento, mas a transfusão de plaquetas profilática não é recomendada, exceto se plaquetas <10.000 células/mm3.

Em pacientes com hipofibrinogenemia com valores <50?100mg/dL (diferentes valores utilizados por diferentes autores), uma opção é a transfusão de 8?10U de crioprecipitado ou plasma fresco congelado; caso esses valores sejam maiores que 100mg/dL, mas com TP e TTPA bastante alargados, deve ser considerado o uso de plasma fresco congelado (PFC).

Para a reposição de outros fatores de coagulação, são indicados de 1 a 2U de PFC ou 15mL/kg de peso de PFC. Pode ser necessário repetir a cada 8 horas a reposição, conforme o TP, o TTPA, o fibrinogênio, o número de plaquetas e o estado volêmico. Não é útil utilizar D-dímero e PDF para monitorar a terapia.

O uso de heparina convencional para diminuir o risco de trombose e tratar a CIVD é controverso, pois pode exacerbar o sangramento; a medicação parece benéfica em caso de carcinoma metastático, purpura fulminante ou síndrome de óbito fetal, sobretudo se for um quadro trombótico associado.

A dose inicial é de 500?750U/h; se não houver melhora em 24 horas, deve-se aumentar a dose; alguns autores consideram o uso da heparina se a antitrombina III (ATIII) for >50% do normal. A maioria dos autores não recomenda seu uso, e mesmo a anticoagulação profilática costuma ser evitada nesses casos.

Outra opção é a utilização de concentrado ATIII ? diminui a duração das alterações laboratoriais e a mortalidade, de acordo com estudos pequenos; de qualquer forma, não há, ainda, recomendação favorável para o uso de heparina, exceto em casos de exceção e com trombose documentada.

Outra opção medicamentosa são os inibidores da fibrinólise como o ácido aminocaproico, ou ácido tranexâmico; de todo modo, antes da sua utilização, é importante fazer a reposição de componentes sanguíneos e manter heparina contínua; essas medicações não são recomendadas de rotina nesses pacientes.

Outras modalidades terapêuticas incluem o Gabexate mesilate, avaliado em um estudo com 395 pacientes, ocorrendo melhora em 58% dos casos. Apesar disso, também não é recomendado seu uso rotineiro. Algumas etiologias específicas de CIVD merecem consideração; as infecções são causas comuns, sobretudo em pacientes asplênicos; na maioria das vezes, a infecção é bacteriana. O staphylococcus aureus, por exemplo, é associado a dano renal cortical e necrose de pele. Outras etiologias que devem ser levadas em conta no tratamento específico são a rubéola, a varicela e o influenzavírus.

A púrpura fulminante é uma forma severa e até letal de CIVD, acometendo extremidades, nádegas, e os pacientes apresentam necrose hemorrágica. A biópsia de pele demonstra microtrombos difusos em pequenos vasos e vasculite, que ocorre de 2 a 4 semanas após a infecção inicial; os pacientes, nesse caso específico, parecem ter benefício com a utilização de heparina.

Outras situações associadas com púrpura fulminante incluem tumores sólidos e leucemias, sobretudo a leucemia aguda pró-mielocítica; nesses casos, a fibrinólise primária é a causa. Em pacientes que sofreram trauma, pode ocorrer exposição ao fator tecidual e choque hemorrágico; nessa hipótese, há aumento de fator de necrose tumoral (TNF), interleucina-1 e PAI-1; essas alterações são preditoras em alguns estudos de desenvolvimento de Sara.

Concentrados de proteína C, 100U/kg, seguidos de 50U/kg, EV, a cada 6 horas, são recomentados até a normalização do D-dímero, além da transfusão de PFC como opção de reposição de proteína C, 2 a 3 unidades a cada 6 horas, embora seja uma opção bastante inferior.

O debridamento de tecidos desvitalizados é outra indicação de tratamento, pois pode parar o fluxo tecidual, inibindo, assim, a continuação da cascata de eventos que leva à CIVD. O concentrado ATIII também pode ser útil.

 

Referências

 

1-Levi M, Seligsohn. Disseminated Intravascular Coagulation im Williams Hematology 2016.

2-Levi M, Toh CH, Thachil J, Watson HG. Guidelines for the diagnosis and management of disseminated intravascular coagulation. British Committee for Standards in Haematology. Br J Haematol 2009; 145:24.

3- Quizzato A, Hunt BJ, Kinasewitz GT, et al. Supportive management strategies for disseminated intravascular coagulation. An international consensus. Thromb Haemost 2016; 115:896.