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Indicações de Transfusões de Concentrados de Hemácias

Aproximadamente, 11 milhões de unidades de concentrados de hemácias são transfundidas anualmente nos EUA, o que torna a transfusão de hemácias uma das mais frequentes intervenções na prática médica. As hemácias são tipicamente transfundidas como um concentrado, embalado, com uma solução conservante (hematócrito, 60%) que permite até 42 dias de armazenamento refrigerado. Em média, a transfusão de 1 unidade de concentrado de hemácias, que tem um volume de 350mL, resulta em um aumento de hemoglobina de 1g/dL em um adulto com volume sanguíneo estável.

As hemácias fazem a entrega de oxigênio para as células e quase todo o oxigênio circulante está ligado à hemoglobina nas hemácias. Assim, em teoria, a anemia tem o potencial de causar um prejuízo significativo à entrega de oxigênio aos tecidos. Uma fórmula sumariza este processo:

Oferta de oxigênio (DO2) = Débito cardíaco x conteúdo arterial de oxigênio

Apesar disso, a entrega de oxigênio não é fortemente comprometida pela anemia, pois o decréscimo de conteúdo arterial de oxigênio que ocorre com a queda dos níveis de hemoglobina e hematócrito pode ser compensado pelo aumento de débito cardíaco e pelo desvio à direita da curva de dissociação de hemoglobina, o que facilita a liberação de oxigênio da hemoglobina para os tecidos.

Somente com níveis de hematócrito abaixo de 10%, poderia haver algum comprometimento da oferta de oxigênio pela diminuição do conteúdo arterial de oxigênio. Porém, em pacientes criticamente doentes, podem ser necessários níveis de hemoglobina e hematócrito maiores para uma entrega de oxigênio satisfatórias. Estudos antigos demonstravam ainda aumento de mortalidade em pacientes internados com anemia que seriam submetidos a intervenções cirúrgicas; nesses pacientes, mesmo quedas discretas de hematócrito de 3% eram associadas com um aumento de 10% de eventos cardiovasculares e desfechos ruins.

Historicamente, se utilizava a regra 10/30 para indicação de transfusão de concentrado de hemácias, com pontos de corte de 10g/dL para os níveis de hemoglobina e de 30% para o hematócrito. Estudos clínicos randomizados mostraram que os resultados anteriores de estudos observacionais e a racionalidade fisiopatológica dos benefícios da transfusão superestimaram os benefícios associados à transfusão de sangue. Uma revisão sistemática com 31 pacientes avaliou a eficácia da transfusão de hemácias.

Os estudos tiveram um total de mais de 12 mil pacientes, e as indicações mais comuns para a transfusão foram a cirurgia ortopédica, os cuidados intensivos, a cirurgia cardíaca, o sangramento gastrintestinal e as síndromes coronarianas agudas. Os pacientes do grupo de transfusão restritiva foram 43% menos propensos a receber uma transfusão de concentrado de hemácias que os do grupo de transfusão liberal, e a concentração média de hemoglobina foi de 1,3g por decilitro menor.

No geral, a mortalidade de 30 dias foi semelhante nos dois grupos de transfusão. Outros resultados também não diferiram significativamente entre os grupos de transfusão, incluindo pneumonia, infarto agudo do miocárdio (IAM) e insuficiência cardíaca congestiva. Além disso, a mortalidade a longo prazo, com uma média de 3 anos de seguimento, foi semelhante nos dois grupos.

Alguns riscos estão associados com a transfusão sanguínea, como os seguintes:

               Risco de infecção: principalmente associado à diminuição da resposta imune após a transfusão, com infecções bacterianas pós-transfusão.

               Risco de reações alérgicas e imunes que aumentam em pacientes politransfundidos.

               Sobrecarga de volume, particularmente em crianças e cardiopatas.

               Hipercalemia por liberação de potássio pelas células transfundidas.

               Sobrecarga de ferro.

 

Muitos estudos usaram um limiar de transfusão restritivo de 7g/dL ou 8g/dL. Entre os estudos que avaliaram a mortalidade em 30 dias, os resultados com um limiar de 7g/dL foram semelhantes aos com um limiar de 8g/dL. No entanto, a maioria dos estudos com 7g/dL como limiar para transfusão restritiva envolveu pacientes em unidades de terapia intensiva (UTIs), enquanto que os estudos usando 8g/dL como limiar, pacientes envolvidos com vários diagnósticos.

É possível que a mortalidade não seja influenciada por um limiar de transfusão mais baixo, mas a taxa de IAM (em pacientes com doença cardiovascular preexistente ou naqueles submetidos à cirurgia cardíaca) ou a recuperação da capacidade funcional (em pacientes submetidos à cirurgia ortopédica) podem ser adversamente afetadas por um limiar de transfusão de 7g/dL em vez de 8g/dL.

O risco de morte está fortemente associado ao nível de anemia e é aumentado entre os pacientes com doença cardiovascular. Assim, em pacientes com doença cardiovascular, é possível o benefício da utilização de um maior nível de hemoglobina (Hb) para indicar a transfusão. Em geral, a transfusão restritiva não está associada a um risco aumentado de IAM. No entanto, existem algumas evidências que apoiam um benefício da transfusão liberal em pacientes com doença cardiovascular subjacente.

 

Estudos Sobre Transfusão em Diferentes Grupos

 

Diferentes sociedades médicas usam diferentes limiares para indicar transfusão de sangue nos pacientes, mas, como uma regra geral, a maioria das diretrizes recomenda contra transfusão em pacientes com Hb >10g/dL e utiliza, em geral, limiares para indicar transfusão que varia entre 6 a 8g/dL. Os limiares podem variar conforme a situação clínica do paciente; assim, estudos foram realizados em diferentes populações para avaliar o benefício da transfusão sanguínea.

 

Cirurgia Cardíaca

 

Em um estudo envolvendo pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, a mortalidade de 90 dias foi maior no grupo de transfusão restritiva do que no grupo de transfusão liberal (4,2% contra 2,6%), embora os resultados a curto prazo (mortalidade de 30 dias, IAM e outros) tenham sido semelhantes nos dois grupos.

 

Síndrome Coronariana Aguda

 

Em um estudo envolvendo 110 pacientes com doença cardíaca isquêmica aguda, ocorreram 7 óbitos no grupo de transfusão restritiva, em comparação com 1 morte no grupo de transfusão liberal, com sobrevida comparativa de 98% contra 87%, resultado com significância estatística. O limiar no grupo transfusão liberal era de 10g/dL, enquanto o limiar transfusional no grupo restritivo era de 8g/dL; a maioria dos autores recomenda um limiar entre 8 a 10g/dL em pacientes com quadro de isquemia coronariana aguda.

 

Pacientes com Doença Coronariana Crônica

 

Um estudo com 936 pacientes com sangramento gastrintestinal mostrou uma tendência para aumento da mortalidade entre pacientes com doença cardíaca isquêmica subjacente; a mortalidade foi de 3% com a transfusão liberal, mas de 12% com a transfusão restritiva. Outro estudo com pacientes com doença cardiovascular ou fatores de risco cardíacos submetidos à cirurgia de fratura do quadril demonstrou mortalidade semelhante com as estratégias de transfusão liberal e transfusão restritiva (5,2 e 4,3%).

O estudo Focus, que comparou limiares de 8g/dL com limiar de 10g/dL para transfusão, não demonstrou vantagem com nenhuma das duas estratégias de transfusão. No estudo TRICCS, que demonstrou diminuição de mortalidade em pacientes em UTI com uma estratégia restritiva, em pacientes com doença coronariana, ocorreram menos eventos cardiovasculares no grupo com limiar de transfusão maior, mas esses resultados são difíceis de ser extrapolados, pois o estudo não foi realizado para avaliar transfusão em pacientes com doença cardíaca.

Uma metanálise de estudos selecionados em pacientes com doença cardiovascular não mostrou diferença na mortalidade entre os limiares de transfusão liberais e restritivos, mas um aumento no risco de IAM, de síndrome coronariana aguda (SCA) ou de doença cardíaca foi associado à transfusão restritiva (4,5% versus 2,5%); o problema dessa metanálise é que não foram incluídos todos os estudos relevantes que avaliaram essa população.

Os pacientes com insuficiência cardíaca não foram avaliados em estudos, mas o uso da eritropoietina para aumentar os limiares de Hb de 9 a 12g/dL para 13g/dL não melhorou os desfechos nesses casos. Vários estudos estão em curso para abordar a questão da transfusão restritiva versus liberal em pacientes com doença cardiovascular.

O estudo TRICS 3 teve uma amostra projetada de 5 mil pacientes. O Reality, por sua vez, também deve comparar as estratégias liberal e restritiva de transfusão de eritrócitos em pacientes com IAM e anemia, com uma amostra projetada de 630 pacientes; espera-se que esses estudos tragam uma resposta sobre os limiares de transfusão nesses pacientes.

 

Pacientes com Sangramento Gastrintestinal

 

O maior estudo nesse grupo de pacientes comparou uma estratégia transfusional com limiar de hemoglobina de 7g/dL com uma estratégia de 9g/dL; houve menor mortalidade e menos complicações no grupo com limiar maior para transfusão. Foram realizados, no total, três estudos em pacientes com sangramento gastrintestinal envolvendo um total de 1.522 pacientes, que mostraram que a mortalidade foi menor com um limiar de transfusão restritivo do que com transfusão liberal.

O ressangramento também foi menor com um limiar de transfusão restritivo (razão de risco de 0,54). A taxa de ressangramento no grupo de transfusão liberal pode ter sido maior devido ao aumento da pressão intravascular com um maior volume de líquido com a transfusão, levando à ruptura do trombo hemostático no local do vaso hemorrágico.

 

Pacientes em Unidade de Terapia Intensiva

 

O grande estudo que avaliou transfusão em pacientes em UTI foi o TRICS com 838 pacientes, sendo comparadas estratégias com limiar para transfusão com Hb de 7g/dL comparado a 10g/dL; a estratégia restritiva apresentou diminuição de mortalidade, particularmente em pacientes com escore Apache <20. Ao total, cinco estudos envolvendo um total de 2.840 pacientes em UTI, incluindo 998 com choque séptico, não apresentaram diferença significativa na mortalidade entre os limiares de transfusão liberal ou restritivos. Da mesma forma, as taxas de mortalidade em cinco estudos envolvendo um total de 2.831 pacientes submetidos à cirurgia ortopédica foram semelhantes com os dois limiares de transfusão.

 

Limiar de Transfusão em Crianças

 

Apenas um estudo foi realizado para avaliar limiar de transfusão em crianças. Esse estudo, que envolveu 637 crianças em UTI, comparou um limiar de transfusão relativo de 7g/dL com um limiar liberal de 9,5g/dL. Não houve diferença no desfecho primário da síndrome de disfunção de múltiplos órgãos múltiplos ou mortalidade.

 

Recomendação da Associação Americana de Bancos de Sangue

 

Várias diretrizes para transfusão de eritrócitos foram publicadas nos últimos 5 anos, e sua qualidade foi avaliada. A maioria das diretrizes aconselha um limiar de transfusão restritivo de 7 a 8g/dL em pacientes assintomáticos. Muitas das diretrizes recomendam que a transfusão não se baseie na concentração de hemoglobina sozinha, mas também deveriam utilizar em consideração o estado clínico geral, da preferência do paciente e das terapias alternativas.

As diretrizes diferem amplamente para pacientes com SCAs, recomendando-se limiares de transfusão de 7g/dL, 8g/dL, 9g/dL ou 10g/dL. De acordo com as diretrizes da Associação Americana de Bancos de Sangue, são recomendados os seguintes limiares para pacientes hemodinamicamente estáveis:

               Hb <6g/dL: transfusão indicada, exceto em circunstâncias excepcionais.

               Hb entre 6?7g/dL: transfusão geralmente indicada.

               Hb entre 7?8g/dL: transfusão pode ser apropriada em certas condições como cirurgias ortopédicas ou cardíacas ou em pacientes com doença cardiovascular estável.

               Hb entre 8?10g/dL: transfusão geralmente não indicada, podendo ser considerada em algumas circunstâncias como pacientes com anemia sintomática, sangramento ou SCA.

               Hb >10g/dL: transfusão indicada apenas em circunstâncias especiais.

 

Todas as diretrizes enfatizam que as decisões sobre transfusões devem levar em conta também outros fatores como estado hemodinâmico, taxa de sangramento, sintomas e estado geral do paciente; devem ser considerados além dos níveis de Hb, utilizando o julgamento clínico para cada situação. Os biomarcadores laboratoriais poderiam ser úteis para orientar decisões sobre transfusão.

Exceto em casos de sangramento agudo, uma abordagem ideal seria restringir o uso de apenas 1 unidade de concentrado de hemácias com reavaliação clínica e dos níveis de Hb; uma potencial situação em que poderia ser indicada a transfusão de mais de 1 concentrado de hemácias em pacientes sem sangramento seria o caso de níveis de hemoglobina abaixo de 4g/dL.

Os pacientes sintomáticos com anemia têm indicação de transfusão em níveis maiores de Hb; os sintomas de anemia podem ser crônicos como irritabilidade, fraqueza e intolerância ao exercício. Os sintomas podem ser mais agudos e graves como manifestações de isquemia miocárdica, hipotensão ortostática e taquicardia não responsiva à reposição volêmica; nesses últimos pacientes, um limiar de 10g/dL pode ser apropriado, enquanto, em pacientes com sintomas crônicos, o limiar transfusional de 8g/dL é, possivelmente, o mais adequado.

 

Uso Racional de Concentrados de Hemácias

 

Os concentrados de hemácias são o componente sanguíneo mais comumente transfundido no mundo, mas o número de transfusões em subgrupos de pacientes como os com doença maligna ou doença cardíaca tem diminuído significativamente de quase 15 milhões de unidades em 2008 para, aproximadamente, 12 milhões em 2015. A adoção crescente de programas de gerenciamento transfusional focados no paciente em hospitais em todo o mundo é responsável pela maioria dessas diminuições, pois foi baseada nas evidências dos estudos citados da ausência de benefício com a estratégia de transfusão liberal.

O uso de agentes hemostáticos como o ácido tranexâmico e a realização de rotina do tromboelastograma em pacientes com trauma também vêm diminuindo a necessidade transfusional no trauma. Um limite de transfusão restritiva de 7g/dL para adultos hospitalizados que são hemodinamicamente estáveis, incluindo graves doenças, e 8g/dL para pacientes submetidos à cirurgia ortopédica ou cardíaca e aqueles com doença cardiovascular pré-existente está sendo cada vez mais aplicado como protocolo de decisão transfusional hospitalar.

Conforme já discutido, a recomendação para pacientes com SCAs ou trombocitopenias ou para pacientes que necessitam de transfusão a longo prazo é 8g/dL em pacientes com doença cardiovascular preexistente. A boa prática inclui a consideração da situação clínica geral, a preferência do paciente e as terapias alternativas, além da concentração de hemoglobina.

Em pacientes com leucemias ou síndromes mielodisplásicas, o limiar de transfusão deve ser individualizado. Naqueles com câncer e anemia assintomática, o limiar de transformação restritivo de 7?9g/dL é o recomendado na maioria dos serviços. Já em pacientes com anemia sintomática, a transfusão é indicada para corrigir a instabilidade hemodinâmica e manter uma entrega adequada de oxigênio. O objetivo é efetuar a transfusão de 8?10g/dL e o limite de uso de 10g/dL para pacientes com SCAs ou IAM.

Em adultos com sepse, na ausência de hipoperfusão, isquemia miocárdica, hipoxemia grave, hemorragia aguda e doença arterial coronariana (DAC) isquêmica, sugere-se que o limiar de transfusão adequada seja uma concentração de Hb <7,0g/dL. Em adultos criticamente doentes, a maioria dos autores recomenda um limiar de transfusão de 7g/dL ou menor, com um intervalo alvo de Hb de 7?9g/dL, a menos que condições específicas ou fatores relacionados à doença aguda modifiquem a determinação clínica; o limiar de transfusão não deve exceder 9g/dL na maioria dos pacientes criticamente doentes.

Na ressuscitação precoce de pacientes com sepse grave, se houver evidência clara de uma administração inadequada de oxigênio, usa-se um limiar alvo de 9?10g/dL; durante os estágios posteriores da sepse grave, usa-se um limiar de 7g/dL com alvo de 7?9g/dL; para pacientes com lesão cerebral traumática, recomenda-se um limite alvo de 7?9g/dL; para pacientes com lesão cerebral traumática e evidência de isquemia cerebral ou acidente vascular cerebral, é utilizado o limiar alvo >9g/dL.

Em pacientes críticos com angina estável, normalmente utiliza-se um limiar de 7g/dL; já em pacientes com SCAs, o limiar é de 8?9g/dL. Não se deve indicar transfusão de concentrado de hemácias para auxiliar no desmame do paciente a partir da ventilação mecânica quando a Hb for >7g/dL, como já foi realizado no passado.

Em caso de doença renal crônica (DRC), a transfusão em pacientes com anemia não aguda deve basear-se na concentração arbitrária de Hb, mas em sintomas de anemia; a transfusão é indicada quando é necessária uma correção rápida da anemia para estabilizar a condição do paciente (por exemplo, hemorragia aguda, DAC instável).

Os dados de estudos randomizados e controlados são insuficientes para pacientes com DRC; portanto, as diretrizes de transfusão baseiam-se em dados observacionais; sabe-se que estratégias com o uso de eritropoietina que visaram a concentrações de Hb mais elevadas foram associadas a aumento de eventos cardiovasculares e tromboembolismo venoso. Logo, não são recomendados limiares baixos de transfusão nesses casos.

 

Referências

 

1-Carson JL, Triulzi DJ, Ness PM. Indications for and adverse reactions of red-cell transfusion. New Eng J Med 2017; 377: 1261-1272.

2-Retter A, Wyncoll D, Pearse R, et al. Guidelines on the management of anaemia and red cell transfusion in adult critically ill patients. Br J Haematol 2013; 160:445.

3-Qaseem A, Humphrey LL, Fitterman N, et al. Treatment of anemia in patients with heart disease: a clinical practice guideline from the American College of Physicians. Ann Intern Med 2013; 159:770.

4-Carson JL, Grossman BJ, Kleinman S, et al. Red blood cell transfusion: a clinical practice guideline from the AABB*. Ann Intern Med 2012; 157:49.

5-Docherty AB, O'Donnell R, Brunskill S, et al. Effect of restrictive versus liberal transfusion strategies on outcomes in patients with cardiovascular disease in a non-cardiac surgery setting: systematic review and meta-analysis. BMJ 2016; 352:i1351.