Autor:
Rodrigo Antonio Brandão Neto
Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Última revisão: 28/02/2013
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Especialidades: Imunologia / Emergências
Paciente do sexo masculino, 23 anos de idade, relata picada por abelha há 40 minutos. Evoluiu com quadro de mal estar, tonturas, pré-síncope e dispneia. Ao chegar no hospital, apresentava PA 80 x 50 mmHg, FC 120 bpm e ausculta respiratória com sibilos difusos, sem estridor.
Coma evolução do paciente para um quadro que mal estar, hipotensão, dispneia e broncoespasmo, considera-se o diagnóstico de anafilaxia.
A definição mais aceita de anafilaxia é a proposta por Sampson et al., que definem anafilaxia como uma séria reação alérgica, de instalação rápida, que pode causar complicações graves, incluindo morte. As complicações são desencadeadas quase sempre por reações mediadas pela imunoglobulina E (IgE), após exposição a um antígeno em indivíduos previamente sensibilizados. Atualmente, o termo inclui as reações causadas por ou associadas com outros mecanismos.
O choque anafilático, por sua vez, é definido como a mais séria reação da anafilaxia. Nele, ocorre uma insuficiente entrega de oxigênio para os tecidos, resultando em colapso cardiovascular e fluxo sanguíneo insuficiente. As reações ditas pseudoalérgicas ou anafilactoides são definidas como uma reação de hipersensibilidade imediata não mediada por IgE e clinicamente indistinguíveis da anafilaxia. Neste texto, não será feita a distinção entre reações anafilactoides e anafilaxia.
É difícil estimar a incidência real de anafilaxia e reações anafiláticas, pois a subnotificação desses eventos é significativa. Segundo dados norte-americanos, a incidência estimada é de 4 a 50 casos a cada 100 000 habitantes por ano, e a prevalência é 0,05 a 2%. Dados ingleses citam que anafilaxia é responsável por 1 a cada 2.300 atendimentos nos serviços de emergência. A incidência parece estar aumentando, sobretudo na população jovem.
O estudo dos mecanismos da anafilaxia iniciou com Gell e Coombs, que demonstraram a sequência alérgeno-IgE-histamina e sua ação em receptores. O mecanismo mediado por IgE é também definido por mecanismo de hipersensibilidade tipo I. Nesse caso, o alérgeno se liga ao segmento Fab da IgE, que posteriormente ativará e liberará proteinoquinases presentes em basófilos e mastócitos. O resultado dessa cascata de fosforilação leva a aumento de cálcio intracelular e exocitose de grânulos, com liberação de mediadores pré-formados estocados nesses grânulos; tais mediadores incluem histamina, triptase, quimase, heparina, fator liberador de histamina, citocinas e mediadores derivados de fosfolípides da membrana celular (prostaglandina D2, leucotrienos B4, C4, D4 e E4).
O mecanismo independente da IgE é, por sua vez, ativado por IgG ou pelo complemento. O mecanismo é pouco entendido e pode ser causado por atividade física, álcool, anafilaxia associada ao uso de opioides, entre outras causas.
As causas da anafilaxia variam entre as diferentes séries, mas as principais são:
alimentos (33 a 34%);
veneno de insetos da ordem Hymenoptera (abelhas e vespas, 14%);
medicamentos (13 a 20%);
exercício (associado a alimento ou isoladamente, 7%);
imunoterapia (aplicação terapêutica de alérgenos, 3%);
látex e transfusão de plasma (foram responsáveis por menos de 1% dos casos);
nenhuma causa identificada (19 a 37%).
As manifestações clínicas da anafilaxia podem envolver sistemas como respiratório, cardiovascular, neurológico, cutâneo e gastrintestinal. O início das manifestações dos sintomas pode ocorrer com um intervalo de minutos a horas após a exposição ao alérgeno, sendo mais comuns na primeira hora subsequente. A rapidez com que os sintomas ocorrem está associada com a gravidade dos sintomas. O quadro clínico pode seguir um curso unifásico ou bifásico. Neste caso, os sintomas desaparecem ou apresentam melhora parcial, para reaparecerem cerca de 1 a 8 horas depois. Após esse período, pode-se estender até 24 horas.
O envolvimento cutâneo e de mucosas é a apresentação mais comum, estando ausentes em apenas de 10 a 15% dos casos. Esses sintomas incluem prurido, eritema com urticas ou urticária e angioedema, principalmente de lábios e língua.
Após as manifestações cutâneas, as respiratórias são as mais frequentes e podem envolver tanto as vias superiores como inferiores. As manifestações incluem dispneia, estridor, sibilância, broncoespasmo, disfonia, rouquidão ou dificuldade para deglutir. As manifestações podem evoluir para quadro de asfixia, sendo responsável por 45 a 60% dos óbitos nesses casos.
Os pacientes podem apresentar tonturas e síncope, sobretudo quando há hipotensão associada, mas podem ocorrer mesmo na ausência desta. O choque anafilático inicialmente se manifesta por taquicardia hipercinética e diminuição da resistência vascular sistêmica; posteriormente, em virtude do aumento da permeabilidade capilar, pode evoluir com hipovolemia e padrão hipocinético.
Incluem náuseas, vômitos, diarreia e dor abdominal, geralmente na forma de cólicas.
Sampson et al. propuseram os seguintes critérios diagnósticos para anafilaxia:
1. Início abrupto dos sintomas: de minutos a algumas horas após exposição, com envolvimento de pele, mucosas e pelo menos um dos seguintes:
a) envolvimento respiratório;
b) diminuição pressórica com sintomas de disfunção orgânica.
2. Ocorrência de dois ou mais dos seguintes sintomas, rapidamente após exposição a alérgeno:
a) envolvimento de pele ou mucosas;
b) envolvimento respiratório;
c) diminuição pressórica ou sintomas associados;
d) sintomas gastrintestinais persistentes.
3. Queda pressórica após exposição a alérgeno em que o paciente tem sabida predisposição: o critério em adultos é PA sistólica abaixo de 90 mmHg ou queda de 30% dos níveis basais do paciente.
A presença de qualquer um dos critérios citados torna muito provável o diagnóstico de anafilaxia.
O diagnóstico de anafilaxia é eminentemente clínico. Em quadros de menor gravidade, o diagnóstico pode ser difícil, sobretudo quando as principais manifestações são cutâneas.
Apesar de todos os critérios para o diagnóstico dependerem de manifestações clínicas, o diagnóstico pode ter suporte de alterações laboratoriais. Durante os episódios de anafilaxia, os valores séricos de triptase e histamina estão elevados, mas, para tal demonstração, é necessário coletar amostras sanguíneas durante o episódio.
A triptase sérica, por exemplo, deve ser coletada em 15 minutos a 3 horas da instalação do episódio. Valores normais não descartam anafilaxia, mas costumam estar particularmente alterados em anafilaxia induzida por picadas de inseto ou medicações e em episódios que evoluem com hipotensão.
A histamina plasmática, por sua vez, apresenta metabolismo rápido. Assim, o tempo ideal de coleta é de 10 a 60 minutos da instalação do episódio.
Outras investigações podem ser realizadas envolvendo a pesquisa in vitro de IgE específica, testes cutâneos ou de provocação. No entanto, são passos normalmente praticados fora do ambiente de emergência, num seguimento ambulatorial que pode vir a requerer a participação de um alergista.
O diagnóstico diferencial é extenso e depende do sistema envolvido.
Odiagnóstico diferencial de manifestações cutâneas como urticária e angioedema incluem síndrome carcinoide, reação a vancomicina, reações transfusionais, entre outras.
As manifestações asmatiformes apresentam no seu diagnóstico diferencial aspiração de corpo estranho, embolia pulmonar e SARA. Mastocitose sistêmica e leucemia de células mastoides também apresentam manifestações similares e devem entrar no diagnóstico diferencial.
O tempo de evolução das manifestações é rápido, em média de 5 minutos após drogas injetáveis, 10 a 15 minutos após picadas de insetos e 35 minutos em anafilaxia secundária a alimentos. Portanto, as medidas devem ser iniciadas prontamente para impedir as complicações associadas.
O primeiro passo é evitar o fator precipitante, por exemplo, interrompendo a infusão da medicação que iniciou o quadro anafilático.
Na suspeita do quadro, a adrenalina deve ser usada imediatamente. Estudos mostraram que a rota intramuscular é bastante superior à via subcutânea. O ideal é fazer a aplicação na região da coxa, no músculo vasto lateral. Dessa forma, há picos maiores e mais rápidos de concentração da adrenalina. A rota subcutânea deve ser restrita aos casos mais leves. A dose recomendada para adultos é de 0,5 mg, e a medicação pode ser repetida, se necessário, em 5 a 15 minutos. Em pacientes com choque refratário, o uso de adrenalina endovenosa é indicado em dose inicial de 50 a 200 mcg EV em bolus, com solução decimal e, posteriormente, infusão contínua com dose titulada para reverter as manifestações e a hipotensão arterial.
Como em toda situação de emergência, as medidas de suporte devem ser lembrada. Caso o paciente esteja evoluindo para quadro grave, ele deve ser colocado em posição adequada, ou seja, deitado de costas com as pernas elevadas. Oxigênio deve ser fornecido em todos os casos com envolvimento respiratório, e a aplicação de fluidos isotônicos como solução fisiológica deve ser iniciada para controle da hipotensão. Caso o paciente evolua para parada cardiorrespiratória, as medidas de reanimação do ACLS estão indicadas. Nesses pacientes, atenção especial deve ser dada à manutenção da perviabilidade das vias aéreas altas, pois, caso ocorra edema de glote, pode ser necessário realizar cricotireoidotomia. O acesso venoso deve ser preferencialmente calibroso, pois esses pacientes podem necessitar de reposição volêmica agressiva.
As medidas de segunda linha no manejo desses pacientes incluem outras medicações, como corticooides e anti-histamínicos.
Têm efeitos sobretudo em manifestações cutâneas, como as urticas, e em vias aéreas superiores, mas não têm nenhum na hipotensão. O uso é indicado principalmente em caso de quadro urticariforme associado. A via parenteral é a preferida em quadros emergenciais, sendo a difenidramina o anti-histamínico mais utilizado.
Indicados principalmente para reações tardias (indicação controversa) e para controle do broncoespasmo. As doses recomendadas são de 1 mg/kg de metilprednisolona ou 200 mg de hidrocortisona.
São incapazes de reverter o edema das vias aéreas, mas podem agir na musculatura lisa. Podem ser usados como adjuvantes da adrenalina no caso de broncoespasmo, mas nunca isoladamente.
Devem ser utilizadas em infusão contínua. Apresentam várias opções, sendo a epinefrina (0,05 a 0,1 mcg/kg/min) a mais estudada. Pode ainda ser utilizada a norepinefrina e mesmo a dopamina em casos refratários.
Pacientes em uso de betabloqueadores podem ser pouco responsivos à epinefrina; nesses casos, o glucagon – que age via adenilciclase – pode ser uma boa opção. A dose recomendada é de 1 mg EV e pode ser repetida a cada 5 minutos; caso a hipotensão persista, pode ser utilizado em infusão contínua.
O paciente deste caso apresenta critérios diagnósticos compatíveis com quadro de anafilaxia. Assim, uma prescrição inicial possível para ele seria a apresentada na Tabela 1.
Tabela 1. Prescrição sugerida para o paciente
Prescrição |
Observação |
Jejum |
No momento até estabilização do quadro, o ideal é manter o paciente em jejum. |
Epinefrina 0,5 mg IM imediatamente |
A epinefrina ou adrenalina deve ser iniciada imediatamente, podendo ser repetida em intervalos de 5 a 15 minutos; caso a hipotensão persista, a infusão contínua está indicada. |
Solução fisiológica a 0,9%, 1.000 mL EV em 1 hora |
Em paciente hipotenso, a epinefrina é a primeira medida; caso não haja resposta imediata, iniciar infusão de volume, lembrando que os quadros de anafilaxia podem ser associados a extravasamento de grandes volumes do leito capilar. |
1. Bisschopp MB, Bellou A. Anaphylaxis. Current Opinion Critical Care 2012, 18: 308-317.
2. Sampson HA, Muñoz-Furlong A, Campbell RL, Adkinson NF Jr, Bock SA, Branum A et al. Second symposium on the definition and management of anaphylaxis: summary report. Second National Institute of Allergy and Infectious Disease/Food Allergy and Anaphylaxis Network symposium. J Allergy Clin Immunol 2006; 117:391.
3. Lieberman PL. Anaphylaxis. In: Adkinson NF Jr., Bochner BS, Busse WW, Holgate ST, Lemanske RF, Simons FER (eds.), Middleton’s allergy: principles and practice. 7.ed., St. Louis: Elsevier, 2009. p.1027.
4. Simmons FE, Camargo CA. Anaphylaxis: rapid recognition and treatment. Disponível em www.uptodate.com acessado em 21 de janeiro de 2013.
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