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Menos horas trabalhadas geram menos erros médicos

Última revisão: 14/02/2009

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O Efeito da Redução das Horas de Trabalho de Internos em Erros Médicos Graves em uma UTI.

Landrigan CP et al.The Harvard Work Hours, Health and Safety Group. Effect of Reducing Interns´ Work Hours on Serious Medical Errors in Intensive Care Units. N Engl J Med 2004; 351:1838 – 48.

[Link Livre para o Artigo]


Fator de Impacto da Revista (New England Journal of Medicine): 52,589.


Contexto Clínico

Em recente artigo discutido em nosso site [Residência Médica: Uma Discussão Sobre Horas Trabalhadas], levantamos a questão das horas de trabalho dos médicos residentes e sua relação com desempenho médico, e, consequentemente, com o número de eventos adversos que podem ser gerados aos pacientes. Já em 1971, no próprio NEJM, uma publicação pioneira já apontava um dado simples, mas interessante: internos que passavam pelo menos 24 horas de plantão cometiam o dobro de erros em leitura de eletrocardiogramas.

Alguns outros estudos semelhantes ocorreram ao longo dos anos subsequentes, porém com várias limitações metodológicas levando ao questionamento de quanto a privação de sono realmente afeta o desempenho médico. Além disso, um importante paradigma do mundo da medicina parecia ser inquebrável, mesmo diante da questão da privação de sono: a descontinuidade de um plantão poderia levar à descontinuidade na assistência ao paciente. Entretanto, é interessante notar que, em um levantamento de 1991 publicado no JAMA3, 41% dos médicos entrevistados relatavam que seus piores erros decorriam de cansaço, erros esses que, em 31% dos casos, resultaram em fatalidade.

Sendo assim, esse estudo foi desenhado para tentar responder à questão sobre os efeitos da privação de sono na quantidade de erros médicos causados por internos de medicina. O foco central desse estudo foi melhorar o tempo de sono dos internos visando à possibilidade disso diminuir a quantidade de erros médicos.


O Estudo

Esse estudo prospectivo e randomizadofoi realizado em um hospital-escola de Boston (EUA), em uma UTI clínica e uma unidade coronariana, ambas de 10 leitos cada, ao longo de 1 ano. Foram escolhidas duas UTI porque são locais propensos à ocorrência de eventos adversos com pacientes, dada sua complexidade e a quantidade de intervenções que são feitas. O objetivo foi comparar as taxas de erros médicos graves (aqueles que causaram dano ao paciente ou que tinham potencial grande de causá-lo) relacionados diretamente com os internos, que foram divididos em dois tipos de turnos de plantão, de forma randomizada. Procurou-se também avaliar a taxa geral de erros médicos graves de forma a rastrear os efeitos das escalas dos internos no sistema como um todo.

O grupo de internos que seguiu uma escala tradicional de plantões (total de 3 internos na escala) trabalhou de 77 a 81 horas semanais, chegando a fazer 34 horas seguidas em determinados plantões. No grupo intervenção (4 internos na escala), plantões de 24 horas ou mais foram eliminados, a média de horas trabalhadas na semana foi de 63 horas e o esquema de plantões colocava um interno em um período das 7h às 22h, e outro plantão das 21h às 13h do dia seguinte, limitando as horas trabalhadas em sequência para 16 horas. Para evitar erros na cobertura entre os plantões, as escalas causavam sobreposições de uma hora no período noturno para ocorrer uma passagem de plantão estruturada e formal (discutiremos esse ponto mais à frente).

Um sistema de coleta de dados focado na segurança do paciente foi desenvolvido. O foco foi em erros relacionados a diagnóstico (erro relacionado a história, exame físico ou interpretação de exames), medicações (erros relacionados a prescrição de fármacos, hemoderivados e fluidos endovenosos) e procedimentos (p. ex., a colocação de um cateter venoso central ou um cateter arterial). A principal forma de detectar erros foi por meio da observação de 6 médicos (todos treinados de forma intensiva, consistente e padronizada), além de 2 enfermeiras que revisavam as evoluções. Estes observadores foram analisados e apresentavam 82% de concordância no que diz respeito à detecção de erros médicos.

Os erros relatados eram então classificados e separados pela possibilidade de serem evitados por 2 outros médicos cegados para o processo de coleta de dados. Na maior parte dos casos em que houve erro médico, a própria equipe médica da UTI percebeu e tomou providências, sem necessidade de ser avisada pelos observadores.

Foram comparadas as taxas de erros médicos sérios por paciente/dia associadas aos internos entre a escala tradicional e a da intervenção, e o total de erros sérios por paciente/dia (erros de internos e erros não causados por internos, mas que foram identificados). Foram também comparadas as taxas de erros por tipo (medicação, procedimento, diagnóstico) por paciente/dia. O estudo foi desenhado para ter um poder de 80% para detectar uma diferença de 16% nas taxas de erros sérios entre os grupos. Entretanto, o estudo não foi capaz de detectar diferenças entre as taxas de eventos evitáveis, por ter apenas 11% de poder de detectar uma diferença de 25% nessa taxa entre os grupos.

 

Resultados

Os resultados foram balisados em um total de 2.203 pacientes/dia (1.294 no grupo de plantões convencional e 909 no grupo da intervenção). Não houve diferença nas taxas de mortalidade ou no tempo de permanência dos pacientes, porém estes não eram os objetivos da análise do estudo.

Os grupos de pacientes tiveram epidemiologia semelhante, sem diferenças que pudessem interferir nos resultados, que  podem ser vistos na Tabela 1.

 

Tabela 1: Incidência de erros médicos sérios

Variável

Esquema tradicional

Esquema da intervenção

Valor de p

Número de erros (taxa por 1.000 pacientes/dia)

Erros causados por internos

Erros sérios

176 (136)

91 (100,1)

< 0,001

Eventos adversos evitáveis

27 (20,9)

15 (16,5)

0,21

Erros de medicação

129 (99,7)

75 (82,5)

0,03

Erros de procedimento

11 (8,5)

6 (6,6)

0,34

Erros de diagnóstico

24 (18,6)

3 (3,3)

< 0,001

Erros totais

Erros sérios

250 (193,2)

144 (158,4)

< 0,001

Eventos adversos evitáveis

50 (38,6)

35 (38,5)

0,91

Erros de medicação

175 (135,2)

105 (115,5)

0,03

Erros de procedimento

18 (13,9)

11 (12,1)

0,48

Erros de diagnóstico

28 (21,6)

10 (11)

< 0,001

 

Comentários

Primeiro, comentaremos os resultados, depois nos atentaremos a outros pontos-chave deste interessante artigo.

Logo de imediato, notamos que, de fato, não houve diferença nas taxas de eventos evitáveis, entretanto, o desenho do estudo não permitia chegar a uma conclusão sobre esse resultado.

Os internos cometeram 36% mais erros na escala tradicional de plantões do que na escala que eliminou o excesso de horas trabalhadas. Esses mesmos internos cometeram 20,8% mais erros de medicação e 5,6 vezes mais erros de diagnóstico. Apenas erros relacionados a procedimentos não foram mais frequentes, talvez por seu caráter relacionado ao aprendizado motor e à capacidade de automatizar passos de certos procedimentos. Importante frisar que a maioria dos erros dos internos foi interceptada ou não resultou em dano ao paciente. Lamenta-se que o estudo não tivesse poder de analisar a diferença entre eventos evitáveis para os dois grupos, mas fica bem caracterizado o quanto a melhora do sono e a realização de turnos não tão longos em plantões podem ser benéficas à segurança do paciente. Essa informação estava mal respondida desde a publicação do Institute of Medicine, “Errar é Humano”, que sempre voltamos a citar nesta seção de Gerenciamento de Risco e Segurança do Paciente.

O desenho dos turnos de plantão foi fundamental para um impacto positivo. Aqui, lembramos que, no desenho tradicional, 3 internos se revezavam nos plantões, enquanto que no novo esquema foram necessários 4 internos. Com mais pessoas na escala, poderia-se alegar que haveria maior possibilidade de descontinuidade na assistência. Pelo menos no que tange erros médicos sérios, isso não se mostrou uma verdade, o que aumenta o impacto da informação obtida com esse estudo.

Poderia se questionar o impacto da formalização da passagem de plantão que a nova escala criou, o que ajudaria na diminuição dos erros. Entretanto, os pesquisadores evidenciaram que este processo foi frequentemente subótimo, pois ora era feito, ora não. Os internos que vinham para o plantão noturno muitas vezes não sabiam muito bem a história de pacientes admitidos durante aquele dia e realizavam uma passagem de plantão ruim pela manhã. Isso nos traz duas perspectivas: um maior reforço da efetividade da intervenção de mudança no regime de plantões (quanto à diminuição de erros) e a necessidade de avaliar o quanto a estruturação da passagem de plantão pode minimizar erros e eventos adversos (este assunto também vem sendo discutido em outros artigos desta seção).

As limitações do estudo ficam por conta de sua realização em um único centro, o que nos leva a uma maior validação em outros locais para reforçar essa evidência. Ainda é necessário avaliar se esse tipo de intervenção tem impacto na diminuição de eventos que poderiam ser evitados, e, para isso, novos desenhos de estudo devem ser traçados. Infelizmente, pelo tipo de estudo desenvolvido, tornou-se impossível cegar os observadores que acompanhavam os plantões dos internos, o que é um problema frequente em estudos que buscam averiguar o impacto em segurança do paciente. O que aumentou a confiabilidade desse sistema foi a presença de 2 revisores cegados para classificar e revisar os eventos descritos.

Foi notável que muitos dos eventos tenham sido evitados. Isso foi realizado por enfermeiros, farmacêuticos e médicos da equipe das 2 unidades, que fizeram uma cobertura do que poderia ter sido causado por internos. Fica então a dúvida de como a privação de sono pode atuar em cada um dos profissionais envolvidos na assistência de uma UTI, e como uma mudança de escala de plantões de todos esses profissionais poderia impactar na diminuição de eventos adversos e erros na assistência.

Fica aqui uma crítica ao esquema de trabalho assumido pela maioria dos médicos e de muitos outros profissionais de saúde. Obviamente uma pressão social e de mercado impõe com mais força esse tipo de situação extenuante para o profissional da saúde, mas a que preço? Um maior risco de erros e eventos adversos em pacientes? Pode ser o momento de quebrarmos paradigmas de como plantões e escalas devem ser formados. Plantões longos geram alguma melhoria de continuidade de assistência quando temos um dado importante que mostra maior chance de erros nessas situações? Não seria suficiente estruturar uma passagem de plantão coesa e focada nas particularidades de cada paciente para suprir esse medo da perda de continuidade (medo esse que pode ser infundado)? Há muito para se mudar naquilo que fazemos para chegarmos a uma situação ideal de assistência médica e de saúde como um todo. Os dados cada vez mais apontam para a necessidade de mudanças radicais na forma de trabalharmos. É necessário colocar ideias em prática e avaliar seu impacto na segurança de nossos processos de assistência o quanto antes.

 

Bibliografia

1.   Iglehart JK. Perspective: revisiting duty-hour limits — IOM Recommendations for patient safety and resident education. N Engl J Med. 2008;359(25):2633-2635. [Link Livre para o Artigo]

2.   Resident duty hours: enhancing sleep, supervision, and safety. Committee on Optimizing Graduate Medical Trainee (Resident) Hours and Work Schedules to Improve Patient Safety. Washington, DC: National Academies Press, 2008. [Link livre para o Livro]

3.   Wu W, Folkman S, McPhee SJ, Lo B. Do house officers learn from their mistakes? JAMA. 1991;265(16):2089-2094. [Link livre para o artigo].

 

Comentários

Por: Renato Dias Barreiro Filho em 02/04/2012 às 11:58:42

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