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Alterações Dermatológicas e Doenças Hepáticas

Autores:

Fabiane Cosendey

Médica internista e dermatologista.

Fábio Sirufo

Médico internista.

Alex Eiras Cosendey

Acadêmico da Escola de Medicina das Faculdades Souza Marques, Rio de Janeiro.
Cirurgião-dentista. Especialista em Cirurgia e
Traumatologia Bucomaxilofacial pela Universidade da Fundação Oswaldo Aranha (Unifoa/RJ). Professor substituto de Cirurgia Oral da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Juliana Paulos de Rezende

Médica.

Última revisão: 08/01/2014

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Versão original publicada na obra Fochesatto Filho L, Barros E. Medicina Interna na Prática Clínica. Porto Alegre: Artmed; 2013.

 

Caso Clínico

Uma paciente do sexo masculino, 58 anos, procurou o serviço médico acompanhado de um familiar por apresentar, há cerca de um ano, aumento progressivo da circunferência abdominal associado, há dois dias, à alteração do ciclo sono-vigília, melena e hematêmese. Ele afirma não apresentar outras comorbidades, não ter feito cirurgias, nem transfusão sanguínea. Também nega estabelecer relações extraconjugais, ser tabagista e usar drogas ilícitas. O paciente consome quatro garrafas de cerveja por dia há 30 anos.

Ao realizar exame, apresentou-se desorientado, desidratado (+/+4), compressão arterial de 110/80mmHg, frequência cardíaca de 90 bpm, frequência respiratória de 20 rpm e temperatura axilar de 37°C. Em relação ao restante da análise, o paciente apresentou os seguintes aspectos: cabeça e pescoço: hipocorado (++/4), ictérico (+++/4), ausência de linfonodos palpáveis, parótida com aumento de tamanho, pulsos carotídeos normais, turgência jugular a 45o; aparelho respiratório: atimpânico, murmúrio vesicular diminuído em bases, sem ruídos adventícios; aparelho cardiovascular: ritmo cardíaco regular, 2T, com bulhas normofonéticas, sem sopro; abdome: peristalse presente, timpânico, traube maciço, fígado não palpável, macicez de decúbito, sinal de piparote positivo, indolor à palpação superficial e profunda; neurológico: flapping; membros inferiores: edema mole com cacifo +2/4, simétrico e indolor; pele e anexos: circulação colateral no abdome, hipergenesia mamária, aranhas vasculares na face e na região torácica, eritema palmar, parte distal da unha rósea com a parte proximal da unha branca.

Os resultados dos exames realizados foram os seguintes: hematócrito: 24% (40-55%), hemoglobina: 8 (14-18), volume corpuscular médio (VCM): 100 fL (80-94), hemoglobina corpuscular média (HCM): 28 pg (27-31), leucócitos: 3.000 (4.800-10.000), plaquetas: 40.000 (150.000-450.000), ureia: 130 mg/dL (10-50), creatinina: 2,7 mg/dL (0,4-1,3), glicose: 80 mg/dL (70-110), albumina: 2,5 g/dL (3,5-4,5), tempo de ativação da protrombina (TAP): 44% (70-100%), INR:1,6(1), tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa): 30 s (23,07 s), aspartato-aminotransferase (AST): 43 UI/L (4-40), alanino-aminotransferase (ALT): 35 UI/L (4-41), gama-glutamiltransferase ( -GT): 242 U/L (5-39), fosfatase alcalina: 100 U/L (até 115), bilirrubina total: 1 mg/dL (< 1,2).

O raio X de tórax evidenciou: hipotransparência discreta em bases; a ultrassonografia do abdome: fígado com diminuição de tamanho, presença de líquido na cavidade peritoneal em moderada quantidade; e a endoscopia digestiva: varizes de esôfago de médio calibre.

 

Definição

Hepatite. Trata-se da lesão do parênquima hepático, que está associada a um infiltrado inflamatório agudo (hepatite aguda) ou crônico (hepatite crônica).

 

Cirrose. Constitui-se em um processo patológico irreversível que acomete o fígado a partir da instalação de necrose hepatocelular difusa e da consequente tentativa de regeneração dos hepatócitos, modificando a matriz extracelular por fibrose em substituição ao parênquima funcionante. Na maioria dos pacientes, as manifestações clínicas só aparecem quando há destruição de 80 a 90% do parênquima hepático (Fig. 16.1).

 

Etiologia

São inúmeros os agentes envolvidos nas lesões hepáticas. Hepatite C e álcool representam, no Brasil, 80% de todas as causas de lesão hepática com progressão para cirrose (Tab. 16.1). Podemos citar também algumas outras doenças que podem levar ao desenvolvimento de cirrose hepática como cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, porfiria e hemocromatose.

 

Cirrose biliar primária: doença autoimune caracterizada por um infiltrado linfocítico e granulomatoso, que gera destruição dos ductos biliares septais e interlobulares e consequente obstrução dessas vias.

As vias biliares extra-hepáticas não são afetadas. É de ocorrência mais comum em mulheres entre 40 e 60 anos. Geralmente assintomático, precede inicialmente o prurido seguido de icterícia e de fadiga.

 

Colangite esclerosante primária: processo de etiologia incerta, possivelmente autoimune, que se caracteriza por inflamação e fibrose progressivas das vias biliares intra-hepática e extra-hepática com consequente obstrução destas. Há alta incidência de colangiocarcinoma nos pacientes acometidos.

 

Porfiria: decorre da deficiência congênita ou adquirida da enzima uroporfobilinogênio III descarboxilase, com acúmulo de uro e coproporfirinas urinárias e isocoproporfirinas nas fezes. A cirrose está presente em menos de 15% dos doentes, que têm mais chances de desenvolver carcinoma hepatocelular (CHC) do que cirrose por outras causas. Essa doença está relacionada a vírus C, HIV, hemodiálise, drogas, como anticoncepcional oral e de terapia de reposição hormonal pós-menopausa, bem como outras causas, e caracteriza-se por vesículas, bolhas (Fig. 16.2), erosões, crostas, milia, cicatrizes atróficas, fotossensibilidade marcante, hipertricose, hipo e hiperpigmentação e placas esclerodermiformes. A lâmpada de Wood corrobora para o diagnóstico por possibilitar a identificação de uma urina amarelo-avermelhada.

 

 

Figura 16.1

Processo patológico da cirrose hepática.

 

 

Hemocromatose: distúrbio multigênico relacionado ao metabolismo do ferro, muito comum na população branca, com uma prevalência de 1:200 a 1:500 indivíduos. O distúrbio caracteriza-se por uma sobrecarga sistêmica de ferro causada devido ao aumento inapropriado da absorção deste pelo intestino. É caracterizada por acúmulo progressivo de ferro, que provoca geralmente dano estrutural e prejuízo funcional em articulações, pele, coração, diversas glândulas e vários órgãos parenquimatosos, como fígado e pâncreas, resultando em desenvolvimento de hiperpigmentação da pele, insuficiência suprarrenal, hipotireoidismo, hipoparatireoidismo, artrose, intolerância à lactose, diabetes melito, perda de pelos corporais, pan-hipopituitarismo e hepatomegalia (com evolução para fibrose, cirrose e hepatocarcinoma), atrofia testicular, amenorreia, cromoníquia, artralgia, perda da libido e insuficiência cardíaca.

 

 

Figura 16.2

Bolha flácida na região interdigital do 2º quirodáctilo da mão direita.

 

Epidemiologia

A epidemiologia varia de acordo com a causa.

 

Sinais e sintomas

As manifestações clínicas da cirrose ocorrem devido às alterações morfológicas (hipertensão porta) e bioquímicas (declínio na produção de fatores de coagulação e albumina, hiperestrogenismo, hipogonadismo etc.). Essas manifestações frequentemente refletem a gravidade da lesão hepática, mas não da etiologia da doença hepática subjacente.

 

O hiperestrogenismo é responsável pelas alterações vasculares cutâneas, como as telangiectasias (tipo aranhas vasculares [Fig. 16.3]), encontradas no pescoço, na porção superior do tronco e dos membros superiores; como também pelo aumento das parótidas e do eritemar (Fig. 16.4), devido a uma vasodilatação cutânea, principalmente nas regiões tenar e hipotenar, podendo ocorrer também na região plantar ou mesmo na face (pletora facial).

 

hipogonadismo é causado pelo aumento da formação periférica de estrogênio, gerado por depuração hepática diminuída do precursor de androstenediona. Geralmente, independe da etiologia da cirrose, embora seja mais frequente na etiologia alcoólica (resulta também do dano gonadal secundário ao álcool), podendo decorrer também da sobrecarga de ferro quando a etiologia da cirrose é a hemocromatose, da deficiência de zinco asso ciada à cirrose, do mau estado metabólico induzido pela falência hepática, medicamentosa ou pela presença de outras doenças. O hipoandrogenismo é responsável pela queda da libido, atrofia testicular, impotência masculina, atrofia dos interósseos, rarefação dos pelos (distribuição feminilizada) e ginecomastia.

 

 

Figura 16.3

Telangiectasia (tipo aranhas vasculares) na região infraclavicular esquerda.

 

 

Figura 16.4

Eritema palmar.

 

Hiperestrogenismo

Telangiectasia, eritema palmar, pletora facial, aumento das parótidas.

 

Hipoandrogenismo

Queda da libido, atrofia testicular, impotência masculina, atrofia dos interósseos, rarefação dos pelos (distribuição feminilizada), hipergenesia mamária.

 

A circulação porta tipo cabeça de medusa visível na região periumbilical (Fig. 16.5) é encontrada com facilidade no exame físico de pacientes com cirrose junto aos outros achados de hipertensão porta, como a ascite.

O prurido é o sintoma da pele de incidência mais frequente na doença hepática, podendo preceder a icterícia de qualquer causa. Ele é mais proeminente na cirrose biliar primária, na colangite esclerosante ou em qualquer outra causa de obstrução do trato biliar ou de doenças que causem colestase. Os sintomas são mais intensos no período noturno, em regiões acrais e em locais que ficam em contato com as roupas.

A alteração de cor da pele mais comum é a da icterícia (Fig. 16.6), que é primeiramente visível na esclera e no palato mole antes de se tornar generalizada, e ocorre devido à hiperbilirrubinemia. A concentração elevada de bilirrubina no sangue pode acontecer quando uma inflamação ou outras alterações dos hepatócitos impedem a sua excreção para a bile ou devido à obstrução dos ductos biliares extra-hepáticos por cálculo biliar ou tumor. Menos comumente, pode ocorrer devido aos elevados níveis de bilirrubina em decorrência da destruição de grandes quantidades de eritrócitos.

As alterações nas unhas, secundárias à doença hepática, são inúmeras. O baqueteamento digital talvez seja a mais comum dessas alterações. Contudo, as unhas de Terry (parte proximal da unha branca e distal rósea) representam uma alteração bastante singular. A lúnula pode estar azulada na degeneração hepatolenticular do fígado (doença de Wilson).

A púrpura é uma mancha causada devido ao pigmento hemático por hemorragia dos vasos da derme e/ou da hipoderme, cujas hemácias extravasadas são fagocitadas pelos macrófagos, que transformam o pigmento hemoglobínico em hemossiderina, resultando em coloração castanho-amarelada e dividindo-se em petéquias (lesão puntiforme), víbice (formato linear) e equimose (lesões maiores em lençol). Todas elas são caracterizadas por não desaparecer à digitopressão, ao contrário da telangiectasia.

 

 

Figura 16.5

Circulação porta tipo cabeça de medusa na região periumbilical.

 

 

Figura 16.6

Icterícia na região da esclera.

 

Diagnóstico

Cada doença tem sua investigação específica, e devem ser realizados uma boa anamnese e um bom exame físico. Em todo caso de suspeita, devem ser solicitados os seguintes exames: aspartato-aminotransferase (AST), alnanino-aminotransferase (ALT), gama-glutamiltransferase (GGT), fosfatase alcalina, bilirrubina total e frações, proteínas totais e frações, coagulograma, exames de imagem, como ultrassonografia e endoscopia digestiva, e, em casos inconclusivos, biópsia do fígado (padrão-ouro). Geralmente as manifestações clínicas e os achados laboratoriais são suficientes para estabelecer diagnóstico e extensão da lesão hepática.

 

Tratamento

Não há um tratamento específico para a cirrose. Como consequência de diversas doenças diferentes, o tratamento visa à interrupção da progressão dessas doenças, que, em alguns casos, pode causar também reversão parcial do grau de cirrose e da hipertensão portal. A terapia é baseada no manejo da doença clínica, pois a maioria das manifestações dermatológicas desaparecem quando é feito tratamento adequado da doença subjacente. Deve-se enfocar cinco pontos para a ligação da terapia da doença: terapia antifibrótica, terapia nutricional, tratamento específico segundo etiologia, tratamento das complicações da cirrose e, em último caso, transplante hepático que é o único tratamento definitivo.

 

Caso Clínico Comentado

O paciente, etilista crônico, evoluiu com quadro de ascite, sangramento digestivo, edema de membros inferiores, circulação colateral no abdome associada a macrocitose, pancitopenia, hipoalbuminemia e tempo de atividade da protrombina (TAP) alargado nos exames laboratoriais. Na endoscopia digestiva, apresentou varizes de esôfago de médio calibre, sugerindo cirrose hepática, uma vez que o exame que fornece o diagnóstico de certeza é a biópsia hepática, geralmente contraindicada devido à coagulopatia. Foi diagnosticado também presença de flapping, desorientação e alteração do ciclo sono-vigília, o que configura um quadro de encefalopatia hepática. Não há tratamento específico para a cirrose hepática, mas sim para as complicações, como sangramento digestivo, encefalopatia e ascite. Foi iniciado tratamento com hidratação, inibidor da bomba de prótons, betabloqueador, vitamina K, ácido fólico e antagonista de aldosterona, e foi realizada paracentese diagnóstica, evidenciando aumento de polimorfonucleares maior do que 250, tratado com antibioticoterapia específica para peritonite bacteriana espontânea, evoluindo com melhora da encefalopatia hepática. Devendo-se continuar o acompanhamento da cirrose hepática.

 

Leituras Recomendadas

Azulay RD, Azulay DR, Azulay-Abulafia L. Dermatologia. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2008 .

Callen J. Dermatologic manifestations in patients with systemic disease. In: Bolognia JL, Jorizzo JL, Rapini RP, editors. Dermatology. 2nd ed. St Louis: Mosby; 2008. p. 675-92.

Chung RT, Podolsky DK. Cirrose e suas complicações. In: Braunwald E, Fauci AS, Kasper DL, Hauser SL, Longo DL, Jameson JL, editores. Harrison medicina interna. 15. ed. Rio de Janeiro: McGraw-Hill; 2002. p.1859-72.

Costa IMC, Nogueira LSC. Poliarterite nodosa. An Bras Dermatol. 2006;81(5 supl 3):s313-6.

Sampaio SAP, Rivitti EA. Dermatologia. 3. ed. São Paulo: Artes Médicas; 2008.

Skare T, Bonam R. Eritema nodoso e infecções pelo vírus da hepatite C. An Bras Dermatol. 2004;79(1):107-9.

Vieira FMJ, Martins JEC. Porfiria cutânea tarda. An Bras Dermatol.2006;81(6):573-84.

Wolff K, Goldsmith LA, Katz SI, Gilchrest, Paller AM, Leffell DJ, editors. Fitzpatrick’s dermatology in general medicine. 7th ed. New York:McGraw-Hill; 2008.

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