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Estômago doença ulcerosa péptica – duodenal e gástrica

Autores:

Paula Stefenon

Médica residente do Serviço de Medicina Interna do Hospital São Lucas da PUCRS.

Raquel Scherer de Fraga

Coordenadora do Programa de Residência Médica em Gastrenterologia do Hospital da Cidade de Passo Fundo. Doutora em Gastrenterologia pela UFRGS.

Última revisão: 06/12/2013

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Versão original publicada na obra Fochesatto Filho L, Barros E. Medicina Interna na Prática Clínica. Porto Alegre: Artmed; 2013.

 

Caso Clínico

Uma paciente do sexo feminino, 52 anos, comparece ao consultório médico devido à dor epigástrica com sensação de queimação que piora em jejum e alivia com a ingesta alimentar. Ela relata que esse quadro iniciou há cerca de três meses e que acorda à noite com dor abdominal. A paciente utiliza de forma crônica anti-inflamatórios para tratamento de dores articulares e apresenta-se obesa e hipertensa. Ela nega emagrecimento, náuseas ou vômitos e afirma ter realizado colecistectomia. Ao efetuar exame, a paciente apresenta bom estado geral, discreto descoramento, abdome com ruídos hidroaéreos presentes, flácido, dor à palpação profunda de epigastro, sem massa ou megalias. No hemograma, verificou-se hemoglobina de 11,1 g/dL; hematócrito de 33%; volume corpuscular médio (VCM) de 78 fL. Solicita-se, então, endoscopia digestiva alta (Fig. 38.1).

 

Definição

As úlceras pépticas são lesões da mucosa gastrintestinal com, no mínimo, 0,5 cm que penetram na camada muscular da mucosa. Falhas menores são denominadas erosões. O termo úlcera péptica é utilizado tanto para úlceras gástricas quanto para duodenais causadas por diversos mecanismos fisiopatológicos.

As úlceras gástricas são subdivididas em proximais, localizadas no corpo gástrico, e distais, encontradas no antro e na incisura angular, sendo mais frequentes na pequena curvatura. As duodenais localizam-se principalmente na parede anterior ou posterior do bulbo duodenal.

 

Epidemiologia

Cerca de 10% dos habitantes de países ocidentais desenvolvem úlcera péptica em algum momento da vida. Nesses países, a úlcera duodenal é mais frequente do que a gástrica. A idade em que há mais ocorrências é entre 20 e 50 anos, e a maioria dos pacientes afetados são homens. O risco de recorrência da úlcera péptica sem tratamento ultrapassa 50% em 12 meses.

Embora tenha ocorrido um declínio da prevalência da úlcera péptica nas últimas décadas devido à descoberta e ao tratamento do Helicobacter pylori (H. pylori), as taxas de doença ulcerosa complicada com hemorragia ou perfuração não apresentaram reduções significativas.

 

Etiologia

No Quadro 38.1, estão relacionadas as causas de úlceras pépticas, sendo o H. pylori e os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) as principais.

 

Helicobacter pylori. H. pylori é uma bactéria gram-negativa espiralada, de transmissão fecal-oral. Ele está associado a gastrite crônica, úlcera péptica, adenocarcinoma e linfoma gástricos. Essa bactéria é en dêmica nos países em desenvolvimento, estimando-se que metade da população mundial esteja infectada. O risco estimado de úlcera péptica é de três a oito vezes maior nos pacientes com H. pylori em relação aos que não apresentam a bactéria. Entretanto, a maioria das pessoas infectadas é assintomática, pois o desenvolvimento de doença ulcerosa ou de neoplasia gástrica depende da interação no estômago entre a genética do hospedeiro, os fatores de virulência, a dieta e o ambiente. Cerca de 90 a 95% dos pacientes com úlcera duodenal e 70 a 80% dos pacientes com úlcera gástrica são H. pyloripositivos.

 

 

Figura 38.1

Imagens endoscópicas de úlcera ativa em região de antro pré-pilórico.

 

Anti-inflamatórios não esteroides (AINEs). Os AINEs são uma causa comum de doença ulcerosa péptica, sendo que a sua prevalência vem crescendo devido à facilidade de acesso a essas medicações. Estima-se que os AINEs tenham uma associação de 1 a 4% por ano com eventos gastrintestinais, sendo estes relacionados à dose e à duração do tratamento, à idade (idosos apresentam maior risco), ao uso concomitante de corticosteroides e à comorbidades (principalmente cardiopatias).

 

 

Afinal, fisiopatologicamente, como os AINEs ocasionam úlcera péptica?

Os AINEs podem agredir a mucosa gastrintestinal por meio de efeitos tópicos e sistêmicos. No suco gástrico ácido, os AINEs fracamente ácidos (p.ex., ácido acetilsalicílico) apresentam-se na forma não ionizada, podendo penetrar livremente nas células gástricas. No ambiente neutro intracelular, os íons H+ dissociam-se, tornando a molécula do medicamento uma carga negativa que se concentra no interior da célula, uma vez que não pode cruzar a membrana. Lesões superficiais da mucosa podem ocorrer minutos após a ingesta de AINEs. O uso de cápsulas com proteção entérica e a administração parenteral ou retal não parecem reduzir o risco de úlceras gastrintestinais, sugerindo que a formação decorre principalmente da ação sistêmica dos AINEs.

Os AINEs inibem as cicloxigenases, reduzindo opool de prostaglandinas que atuam na proteção gástrica e na reparação do epitélio. Inibição da síntese de prostaglandinas resulta em redução da secreção epitelial de muco e bicarbonato, diminuição do fluxo sanguíneo, menor reparação da mucosa e suscetibilidade ao dano péptico.

 

Patogênese

A mucosa gastrintestinal está em constante processo de descamação e regeneração. O aumento dos fatores agressivos ou a redução dos fatores de proteção e regeneração acarretam lesão da mucosa gástrica, podendo favorecer o aparecimento da úlcera.

 

Fatores agressivos:

Aumento na secreção de ácido clorídrico (HCl) devido aos seguintes fatores:

aumento da população de células parietais;

maior sensibilidade das células parietais à gastrina, à histamina e à acetilcolina;

menor sensibilidade da célula G (produtora de gastrina) aos mecanismos inibitórios (feedbacknegativo com a redução do pH luminal e somatostatina);

Aumento do pepsinogênio.

Fatores ambientais.

alimentação, medicamentos, hábito de fumar, estado emocional, infecção pelo H. pylori.

A redução da defesa e da reparação causada principalmente devido a menor disponibilidade endógena das prostaglandinas ocasionam os seguintes fatores:

redução da produção de muco e bicarbonato pelas células epiteliais;

redução do fator de crescimento epitelial;

redução do fluxo sanguíneo;

redução da capacidade de replicação do epitélio.

 

Sinais e Sintomas

A apresentação típica de úlcera péptica consiste em episódios recorrentes de dor epigástrica, podendo ter irradiação para o dorso e outras regiões do abdome ou do tórax. A dor é geralmente descrita como uma sensação de queimação ou de estômago vazio, que melhora após a ingesta alimentar e piora com o jejum prolongado. O paciente pode despertar à noite devido à dor. Náuseas, vômitos e pirose (mimetizando refluxo gastresofágico) podem ser sintomas relacionados. O exame físico é inespecífico na ausência de complicações.

Em caso de perfuração aguda, o paciente apresenta-se com dor abdominal intensa, sinais de irritação peritoneal e abdome em tábua, além de ar intraperitoneal ao exame de imagem. Já na hemorragia, o paciente manifesta hematêmese ou melena, alterações hemodinâmicas e anemia. Saciedade, incapacidade de ingerir alimentos, náuseas, vômitos e perda de peso são formas de apresentação de obstrução do esvaziamento gástrico.

 

Diagnóstico

Clínico

O diagnóstico clínico fundamenta-se em sinais e sintomas apresentados pelo paciente e na avaliação dos fatores de risco, como baixa condição socioeconômica, tabagismo e uso de AINEs.

 

 Anatômico

A endoscopia é considerada o exame padrão-ouro para o diagnóstico anatômico das úlceras pépticas. Ela deve ser realizada em pacientes com sintomas persistentes ou recorrentes, ou com sinais de alarme (Quadro 38.2). Em pacientes com menos de 45 anos, sem sinais de alarme, pode ser feito teste terapêutico, associado a um teste não invasivo para H. pylori. Na realização de endoscopia, deve-se efetuar também biópsia das bordas da lesão ulcerada e de antro e corpo para a identificação do H. pylori. É importante ressaltar que podem ocorrer resultados falso-negativos em pacientes que recebem tratamento com inibidores da bomba de prótons, bismuto ou antibióticos, devendo a administração desses medicamentos ser suspensa por, pelo menos, duas semanas antes do exame quando possível.

A radiografia contrastada com bário do trato gastrintestinal superior também pode evidenciar a presença de úlceras pépticas, mas sua utilização atual foi substituída pela endoscopia digestiva alta, não apenas devido à sua maior acurácia, mas também pela vantagem de permitir o diagnóstico histológico, além de possibilitar a pesquisa do H. pylori.

 

Laboratorial

Os exames laboratoriais podem ser utilizados no diagnóstico de infecção pelo H. pylori. Há três métodos não invasivos para a identificação da bactéria.

Teste sorológico. Nesse teste, a IgG está elevada em indivíduos contaminados pelo H. pylori, mas isso não significa infecção ativa, uma vez que os títulos diminuem vagarosamente. A vantagem do método é que a IgG não se apresenta negativa com o uso de inibidores da bomba de prótons.

Teste respiratório de atividade da urease utilizando ureia com carbono marcado. Este é um método mais caro, mas sua positividade sempre significa infecção ativa, pois se torna negativo logo após a erradicação do H. pylori. Esse teste pode ser usado para confirmar a erradicação da bactéria em quatro a seis semanas após o tratamento. Na realização desse teste, o paciente ingere ureia marcada com carbono 14 (radioativo) ou carbono 13 (não radioativo). Esse último, por não ser radioativo, é seguro, podendo ser utilizado em mulheres grávidas, em crianças e também para transporte de um local para outro (análise laboratorial em outra localidade). Se o organismo estiver presente, ele transforma a ureia em amônia e dióxido de carbono marcado. Este pode ser detectado e quantificado no ar expirado, 30 minutos mais tarde, em um balão de coleta. O teste apresenta excelentes sensibilidade (90%) e especificidade (96%).

Outra opção é a pesquisa de antígenos nas fezes, que identifica antígenos do H. pylori nas fezes dos pacientes por meio de reação imunoenzimática, com uma sensibilidade e especificidade acima de 90%. É capaz de detectar a infecção após uma semana de suspensão dos inibidores da bomba de prótons, sendo bastante conveniente para a pesquisa da bactéria na população pediátrica.

 

 

Complicações

Sangramento

Úlceras gástricas e duodenais são a principal causa de hemorragia digestiva alta não varicosa, consistindo em uma condição médica comum, que ainda é responsável por alta morbidade do paciente e elevados custos médicos (incidência de 100 hospitalizações/adulto por ano).

Perfuração

Úlceras duodenais são responsáveis por 60% dos casos de perfuração por úlceras pépticas, seguidos pelas úlceras antrais e de corpo gástrico, 20% cada uma. H. pylori e uso de AINEs são fatores de risco independentes de perfuração por úlceras pépticas.

 

Penetração

Trata-se da penetração da úlcera através da parede, mas sem perfuração livre. Séries cirúrgicas têm observado que ocorre penetração em 20% das úlceras, mas apenas uma pequena proporção torna-se clinicamente evidente. As localizações mais comuns de penetração, em ordem decrescente de frequência, são pâncreas, omento gastro-hepático, trato biliar, fígado, omento maior, mesocolo, colo e estruturas vasculares.

 

Obstrução de saída gástrica

Esta é a complicação menos frequente. A maioria dos casos ocorre em decorrência de úlceras duodenais ou de canal pilórico.

 

Tratamento

Suspensão de agentes que contribuem para dispepsia, como AINEs, cigarro e álcool.

Terapia antissecretória:

Inibidores H2 (cimetidina, ranitidina, famotidina). Esses inibidores agem bloqueando o receptor H2 existente na membrana da célula parietal, diminuindo de modo significativo a ativação da ATKPase K+ ativada no canalículo secretor, com consequente bloqueio de aproximadamente 70% da secreção ácida estimulada pela refeição. Todos eles apresentam a mesma eficácia de cicatrização, 60 a 85%, em quatro semanas de tratamento, com um adicional de 10% com a extensão do tratamento por mais quatro semanas.

Inibidores da bomba de prótons (omeprazol, pantoprazol, lanzoprazol, esomeprazol, rabeprazol). Estes são mais eficazes na terapia antissecretória do que os inibidores H2, alcançando uma taxa de melhora de 92 a 100% após quatro semanas de tratamento (sendo todos os representantes desse grupo igualmente eficazes). Eles bloqueiam diretamente a ATKPase K+ ativada, enzima responsável pela união do H+ com o Cl no canalículo da célula parietal, originando o HCl.

 

A terapia antissecretória pode ser suspensa em quatro a seis semanas nos pacientes com úlcera péptica não complicada. Deve-se considerar o mantimento do tratamento para prevenir a recorrência em pacientes com alto risco, definidos pela apresentação de histórico de complicações de úlcera péptica, recorrências frequentes e úlceras gigantes (> 2 cm). No caso de terapia antissecretória de manutenção, é importante confirmar a erradicação do H. pylori, descartar a presença de um gastrinoma ou mesmo o uso de AINEs.

 

Erradicação do H. pylori. Como primeira linha de tratamento, é recomendada a terapia tripla com duração de 7 a 14 dias:

Inibidor da bomba de próton: omeprazol, 20 mg, 2 vezes ao dia; pantoprazol, 40 mg, 2 vezes ao dia; ou esomeprazol, 40 mg, 1 vez ao dia.

Amoxicilina, 1 g, 2 vezes ao dia.

Claritromicina, 500 mg, 2 vezes ao dia.

A cirurgia pode ser considerada em caso de úlcera péptica refratária ao tratamento clínico, mas, com as opções terapêuticas hoje disponíveis, a indicação cirúrgica tornou-se bem menos frequente.

 

Controle de tratamento

É importante ressaltar que as lesões gástricas necessitam de controle de cicatrização por meio de endoscopia. Após seis semanas de início do tratamento, deve-se realizar novamente a endoscopia para avaliar a cicatrização da úlcera e tomar decisões terapêuticas, uma vez que, apesar de múltiplas biópsias, em alguns casos, uma neoplasia gástrica pode não ser diagnosticada. Durante o exame de controle, a lesão deve ser minuciosamente examinada e novas biópsias devem ser realizadas se houver ulceração, depressão hiperemiada ou mesmo cicatriz, uma vez que algumas lesões malignas podem cicatrizar com a utilização de antissecretores de última geração.

 

Caso Clínico Comentado

A paciente em questão apresentava quadro clínico clássico de úlcera péptica, sendo o diagnóstico confirmado por meio da endoscopia digestiva alta com identificação de úlcera gástrica ativa no antro de cerca de 1 cm de diâmetro. A biópsia da lesão não evidenciou células neoplásicas, e a pesquisa de H.pylori foi negativa. Indicou-se suspensão do AINE, e foi prescrito inibidor da bomba de próton por seis semanas, sendo orientada endoscopia de controle após esse período.

 

Leituras Recomendadas

Feldman M, Friedman LS, Brandt LJ, editors. Sleisenger and Fordtran’s gastrointestinal and liver disease. 9th ed. Philadelphia: Saunders; 2010.

Goldman L, Ausiello D, editors. Cecil medicine. 23rd. ed. Philadelphia: Saunders; 2008.

Magalhães AF, Cordeiro FT, Quilici FA, Machado G, Amarante HMBS, Prolla JC, et al., editores. Endoscopia digestiva diagnóstica e terapêutica. Rio de Janeiro: Revinter; 2005.

Malfertheiner P, Chan FK, McColl KE. Peptic ulcer disease. Lancet.2009;374(9699):1449-61.

Malfertheiner P, Megraud F, O’Morain C, Bazzoli F, El-Omar E, Graham D, et al. Current concepts in the management of Helicobacter pylori infection: the Maastricht III Consensus Report. Gut. 2007;56(6):772-81.

Ramakrishnan K, Salinas RC. Peptic ulcer disease. Am Fam Physician.2007;76(7):1005-12.

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