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Doença de Buerger

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 07/06/2017

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Tromboangeíte obliterante (Doença de Buerger)

 

A tromboangeíte obliterante (TAO), também conhecida como Doença de Buerger, ocorre sobretudo em pacientes jovens e tabagistas, acometendo os homens em 80% dos casos. A doença é não aterosclerótica, afetando artérias de pequeno e médio calibres de forma segmentar, sendo caracterizada por trombos inflamatórios oclusivos e hipercelulares.

A idade média de início da TAO é aos 40 anos de idade, mas a doença pode acometer tanto adolescentes quanto idosos; pode atingir também as mulheres, sobretudo as tabagistas. O uso de tabaco puro com cigarros caseiros tem maior risco de desenvolvimento da TAO. A prevalência da TAO em pacientes com doença arterial periférica varia de 0,5 a 5% na Europa Ocidental até, aproximadamente, 50% em países como a Índia.

 

Fisiopatologia

 

Desconhece-se o mecanismo exato subjacente à relação entre a TAO e o tabagismo. Reações autoimunes a constituintes do tabaco têm sido postuladas. Os casos podem ocorrer vários anos após o início do tabagismo, mas a TAO não se manifesta na ausência de exposição ao tabagismo. Do ponto de vista anatomopatológico, a doença se distingue pela presença de trombo inflamatório intraluminal, e pode ser distinguida de outras vasculites por poupar as paredes de vasos.

Na fase aguda, um trombo oclusivo altamente inflamatório com leucócitos polimorfonucleares e células gigantes pode ser observado. Entretanto, não existe evidência de necrose fibrinoide. Posteriormente, se dá a organização desse trombo; de forma crônica, o paciente o apresenta sem inflamação e com fibrose secundária. Um estudo mostrou que infecções periodontais são frequentes, podendo ocorrer em até dois terços dos casos; a correlação causal desse achado ainda é desconhecida.

 

Manifestações clínicas

 

A TAO ocorre tipicamente em homens tabagistas entre 40 e 45 anos de idade, com frequente envolvimento bilateral. Uma das principais características da TAO é o seu confinamento às extremidades. Os sintomas iniciais podem ser dores não específicas na panturrilha, no pé ou nos dedos dos pés.

A progressão da trombose e da vasculite pode ocasionar uma dor considerável nos dedos e nos membros, levando, em casos extremos, à gangrena e à perda de tecido. Outros leitos vasculares (por exemplo, a vasculatura cardíaca, a pulmonar, a renal e a mesentérica) são quase sempre poupados. Embora a TAO acometa sobretudo as extremidades inferiores, as mãos e os dedos dela também podem ser afetados de forma significativa.

A tromboflebite superficial é frequente, e ocorre precocemente na TAO. Os pacientes podem apresentar flebite migratória com presença de nódulos dolorosos que seguem o trajeto vascular e ocorrem em paralelo à doença arterial periférica. A isquemia digital é a manifestação mais comum, ocorrendo na grande maioria dos pacientes, com úlceras digitais em cerca de 70% na apresentação.

As úlceras em membros inferiores ocorrem em cerca de 50% dos casos, e em 25% dos pacientes pode haver úlceras em membros superiores. A gangrena costuma ocorrer nos tecidos mais distais, ou seja, nos dedos dos pés. Se o processo permanecer despercebido, ou se o paciente continuar a fumar mesmo após o diagnóstico, grandes porções das extremidades ficarão comprometidas. Em casos avançados, as mãos e os pés podem ficar ocluídos, levando ao resfriamento e à dor de toda a extremidade distal, sendo necessária a amputação.

No início da doença, dores não específicas na panturrilha, no pé ou nos dedos podem simular um processo neuropático primário. Esses sintomas sensoriais podem resultar do espessamento dos tecidos que circundam imediatamente as veias e artérias, levando à proliferação do tecido conjuntivo ao redor dos feixes nervosos que estão intimamente ligados à vascularização, mas a neuropatia periférica verdadeira não costuma ocorrer. Foram relatados casos extremamente raros de TAO envolvendo o trato gastrintestinal e o sistema nervoso central.

O fenômeno de Raynaud ocorre em, aproximadamente, 40% dos pacientes, e pode ser assimétrico; os indivíduos podem apresentar claudicação intermitente, e de 10 a 15% deles apresentam artrite ou artralgias, envolvendo sobretudo joelhos e tornozelos. Alterações de sensibilidade periférica podem ocorrer em até 70% dos casos. Tanto o índice tornozelo-braquial quanto o teste de Allen costumam estar positivos nesses pacientes.

Muitos indivíduos demonstram obliterações dos pulsos da artéria radial ou ulnar no exame físico. Em contraste com a aterosclerose, que é uma doença da vasculatura proximal, a TAO é caracterizada por inflamação e trombose de vasos sanguíneos medianos e distais (ambas as artérias e veias), mais intensos nos níveis dos tornozelos e dos pulsos.

 

Achados laboratoriais

 

Não existe um único teste diagnóstico para a TAO, e a maioria dos exames é realizada para excluir os diagnósticos diferenciais. A demonstração de “lesões colaterais em saca-rolhas” na angiografia é altamente característica, mas não patognomônica. Tais alterações podem também ser observadas na poliarterite nodosa e em outras formas de vasculite de vasos de médio calibre.

As investigações laboratoriais e radiológicas são importantes na TAO, tanto para identificar as lesões vasculares típicas quanto para excluir condições que requerem outras abordagens. Os reagentes de fase aguda como a velocidade de hemossedimentação e a proteína C-reativa devem ser dosados, sendo, em geral, menores do que os níveis observados em outros tipos de vasculite sistêmica, mas a maioria dos pacientes tem elevações moderadas desses reagentes de fase aguda.

Os estudos hematológicos de rotina, bioquímica sérica e urinálise são normais na TAO. Anormalidades nesses testes sugerem outros diagnósticos. Há elevações leves da contagem de leucócitos e plaquetas em alguns casos. As funções renal e hepática costumam ser normais. Testes imunológicos, como a pesquisa de fator antinuclear (Fan), fator reumatoide e autoanticorpos como anticentrômero e Scl-70, costumam ser recomendados.

Os níveis de complemento podem ser dosados, mas os níveis de C3, C4 são comumente normais. As sorologias para hepatites ajudam a descartar a crioglobulinemia. Outros exames recomendados incluem sorologia para teste laboratorial de pesquisa de doença venérea (VDRL) ou Lues e hemoculturas, assim como o ecocardiograma (ECO). Exames toxicológicos para investigar a presença de cocaína e anfetaminas podem ajudar no diagnóstico diferencial.

O exame de imagem de escolha é a angiografia, que pode mostrar lesões colaterais em saca-bocado, com áreas segmentares de envolvimento, com as regiões afetadas intercaladas com trechos sem alterações. Alguns achados que corroboram o diagnóstico são a ausência da evidência de aterosclerose, a ausência de fonte de tromboembolismo, o envolvimento de vasos de pequeno e médio calibres como artérias digitais, plantares, palmares, tibial, peroneal, radial e ulnar. Os pacientes costumam apresentar, ainda, circulação colateral em redor da área de oclusão.

O ECO (possivelmente incluindo um estudo transesofágico) deve ser realizado para avaliar as valvas cardíacas e a raiz da aorta para excluir o cardioembolismo. Estudos angiográficos abrangentes que definam a vasculatura das extremidades, a aorta proximal, o trato gastrintestinal e as artérias renais devem ser considerados.

O envolvimento arterial na TAO é altamente segmentar, com oclusões vasculares abruptas intercaladas com regiões de vasos que aparecem angiograficamente normais. Em casos avançados, o aparecimento de vasos distais aos pulsos e aos tornozelos pode se assemelhar a uma teia de aranha desorganizada.

O Quadro 1 apresenta os critérios diagnósticos para a TAO.

 

Quadro 1

CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS PARA A TROMBOANGEÍTE OBLITERANTE

               Idade <45 anos

               História atual ou recente de tabagismo

               Isquemia distal de extremidades

               Achados arteriográficos típicos

               Exclusão de doenças autoimunes, trombofilias, diabetes melito e fontes tromboembólicas proximais

 

 

Diagnóstico diferencial

 

As principais condições, no diagnóstico diferencial da TAO, são doenças cardiovasculares, doenças autoimunes e vasculites sistêmicas. Entre as doenças cardiovasculares, estão a aterosclerose e os êmbolos cardiogênicos. Em contraste com a TAO, a doença aterosclerótica afeta de forma característica os vasos proximais. As fontes de embolia cardiogênica devem ser excluídas por ECO e hemocultura.

Entre os distúrbios autoimunes, o lúpus eritematoso sistêmico (LES), a síndrome do anticorpo antifosfolipídeo, a esclerose sistêmica e a doença mista do tecido conectivo podem apresentar isquemia digital. A esclerodermia e suas formas limitadas como a síndrome de Crest (calcinose, fenômeno de Raynaud, dismotilidade esofágica, esclerodactilia, telangiectasias) podem apresentar problemas diagnósticos especiais devido à sua propensão a causar perda digital, sobretudo quando associadas a anticorpos anticentrômeros positivos.

O exame cuidadoso da vasculatura nas unhas, onde os capilares dilatados aparecem na esclerose sistêmica, e de outros distúrbios do tecido conjuntivo pode ajudar a distinguir essas condições da TAO. Essa, em contraste com as doenças do tecido conjuntivo, não está associada a uma presença significativa de autoanticorpos.

As vasculites sistêmicas são outro diagnóstico diferencial. As mais comumente associadas à isquemia distal e à gangrena são a vasculite reumatoide, a poliarterite nodosa, a granulomatose com poliangeíte (antiga granulomatose de Wegener), a poliangeíte microscópica, a granulomatose eosinofílica com poliangeíte (síndrome de Churg-Strauss) e a crioglobulinemia.

Em geral, a falta de envolvimento visceral na TAO ajuda a diferenciá-la de outras vasculites. Por exemplo, ulcerações em membros inferiores e regiões maleolares são atípicas na TAO, mas são comuns entre outras formas de vasculite listadas anteriormente. A neuropatia vascular, muitas vezes marcante nas outras formas de vasculite sistêmica, não ocorre na TAO.

Existem quatro fatores para o diagnóstico da TAO, quando comparado aos diagnósticos diferenciais. São eles:

               Reconhecimento de achados clínicos compatíveis com essa condição, ou seja, isquemia digital sem envolvimento de outros órgãos.

               Identificação do padrão típico de envolvimento vascular por angiografia.

               Exclusão de doenças que podem simular a TAO.

               Confirmação de que o principal fator de risco ? a exposição contínua ao tabaco ? está presente.

 

Devido à dificuldade de acesso a vasos de tamanho médio para biópsia, o diagnóstico dificilmente é confirmado por esse exame. As exceções a essa regra são a tromboflebite superficial, que raramente chega à atenção médica, e os espécimes de amputação ? estágio em que a atenção médica é tardia.

Quando a biópsia é possível, a TAO aguda é caracterizada por um trombo altamente inflamatório, composto por uma variedade de tipos celulares: linfócitos, neutrófilos, células gigantes e microabscessos ocasionais. A inflamação é tipicamente mais intensa no próprio coágulo do que dentro das paredes dos vasos sanguíneos afetados. A necrose fibrinoide, uma marca registrada da maioria das vasculites sistêmicas, está ausente na TAO.

O Quadro 2 apresenta o diagnóstico diferencial da TAO.

 

Quadro 2

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL DA TROMBOANGEÍTE OBLITERANTE

Condições cardiovasculares

               Aterosclerose

               Embolia cardiogênica (por exemplo, endocardite infecciosa)

Doenças autoimunes

               LES

               SAF

               Esclerose sistêmica (principalmente, síndrome de Crest)

               Doença do tecido conjuntivo misto

               Vasculites sistêmicas

               Vasculite reumatoide

               Poliarterite nodosa

               Granulomatose com poliangeíte

               Poliangeíte microscópica

               Granulomatose eosinofílica com poliangeíte

               Crioglobulinemia

Outras causas

               Paraproteinemia

               Ergotismo

Crest: calcinose, fenômeno de Raynaud, dismotilidade esofágica, esclerodactilia, telangiectasias; LES: lúpus eritematoso sistêmico; SAF: síndrome do anticorpo antifosfolipídeo.

 

Tratamento

 

A única intervenção eficaz na TAO é a interrupção completa do tabagismo. Apesar das semelhanças da TAO com as vasculites sistêmicas que afetam os vasos sanguíneos de tamanho médio e os estados hipercoaguláveis, não há papel para intervenções imunossupressoras ou anticoagulação nessa condição. As medidas para úlceras digitais são semelhantes as que ocorrem em úlceras por outras condições.

A natureza obliterante dos processos inflamatórios e trombóticos vasculares, a vascularização distal às lesões, em geral, não oferecem vasos sanguíneos suficientemente grandes para sustentar enxertos de revascularização. A trombólise, que não foi estudada em grande número de pacientes, traz riscos significativos e, talvez, uma baixa probabilidade de sucesso, dada a extensão das tromboses presentes na TAO.

O controle efetivo da dor é importante durante os períodos de dor intensa por isquemia digital (sem ela, os pacientes só podem fumar mais). Uma variedade de terapias de investigação tem sido utilizada, com relatos de sucesso duvidosos. O iloprosta, um análogo das prostaglandinas, pode ajudar no manejo da dor em pacientes com TAO; em um estudo, o uso da medicação de forma contínua durante 6 horas, por via endovenosa, foi associado a benefícios.

O uso de bloqueadores dos canais de cálcio como nicardipino ou nifedipino pode ser benéfico se houver vasoespasmo significativo associado. O uso de compressão pneumática intermitente pode aumentar o fluxo e melhorar a isquemia crítica e as úlceras digitais.

As medidas para angiogênese, como o uso do fator de crescimento do endotélio vascular, podem amenizar a dor crônica. Em um estudo, o bosentana, um antagonista dos receptores da endotelina, foi associado à melhora dos desfechos. O cilostazol pode melhorar o fluxo sanguíneo, mas seu benefício em desfechos relevantes é duvidoso.

 

Referências

1-Stone JH. Buerger’s disease. In Current Diagnosis and Treatment Rheumatology 2016.

2-Piazza G, Creager MA. Thromboangiitis obliterans. Circulation 2010; 121:1858.

3-Dargon PT, Landry GJ. Buerger's disease. Ann Vasc Surg 2012; 26:871.

4-Olin JW. Thromboangiitis obliterans (Buerger's disease). N Engl J Med 2000; 343:864.

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