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Anemia da doença crônica

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 02/10/2017

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A anemia da doença crônica, antigamente denominada de anemia da inflamação crônica, está associada a diversas condições como doenças infecciosas, inflamatórias e neoplásicas. De acordo com relatos recentes, ela pode também estar relacionada a outras condições, como trauma, diabetes melito, entre outras.

A anemia da doença crônica é, em geral, de intensidade de leve a moderada, com níveis de hemoglobina (Hgb) entre 7 e 11g/dL. Outros achados característicos incluem ferro (Fe) sérico baixo, depósitos de Fe aumentados e diminuição da capacidade total de ligação de ferro, sendo também denominada de anemia sideropênica ou siderose reticuloendotelial. Essa anemia é tipicamente normocítica, normocrômica e hipoproliferativa.

Uma variante da anemia da doença crônica é a anemia da doença crítica, com achados similares aos da primeira, mas que ocorre em dias de instalação no contexto de uma doença grave, ao contrário da instalação insidiosa da anemia da doença crônica.

A anemia da doença crônica é, provavelmente, a segunda ou terceira causa mais importante de anemia, o que é compreensível dada a prevalência de condições que podem precipitar seu o aparecimento. Sua prevalência aumenta com a idade. Apesar disso, a incidência da doença tem diminuído em países desenvolvidos; a prevalência em termos precisos, entretanto, é difícil de estimar.

 

 

Etiologia e patogênese

 

A anemia da doença crônica ocorre quando existe uma incapacidade do organismo em aumentar a produção de eritrócitos em situações em que ocorre uma diminuição da sobrevida dos eritrócitos. Na anemia da doença crítica, essa destruição é mais rápida, o que justifica sua instalação relativamente rápida.

Várias alterações concorrem para o aparecimento da anemia em doenças crônicas, como metabolismo anormal do Fe com redução da absorção de Fe pelo trato gastrintestinal e retenção de Fe nos macrófagos. A gravidade da anemia é proporcionalmente relacionada à severidade dos sintomas da doença associada como febre, perda de peso e debilidade geral. Outro fator importante é o aumento da destruição de eritrócitos, nesses pacientes, por ativação de fatores dependentes do hospedeiro.

Existe, ainda, uma diminuição relativa na produção de eritropoietina, diferentemente do que ocorre na maioria das anemias. As citocinas liberadas por inflamação apresentam um papel cada vez mais conhecido nesses casos; dentre elas, destacam-se a interleucina 1 (IL-1) e a interleucina 6 (IL-6), além do fator de necrose tumoral a (TNFa). Essas citocinas podem desencadear uma cascata, incluindo a secreção de interferon (INF) por linfócitos T. Sabe-se, por exemplo, que o INF-? é associado com aparecimento de anemia com características da anemia de doença crônica em modelos animais.

O papel da hepcidina na patogênese da anemia de doença crônica também é relativamente bem definido. Essa proteína tem um papel fundamental no metabolismo do Fe, inibindo a sua absorção pelos enterócitos e interrompendo a sua liberação pelos macrófagos; a proteína tem sua produção estimulada pelas citocinas pró-inflamatórias, justificando a sua atuação nesse tipo de anemia.

A IL-6, em particular, interfere bastante na produção da hepcidina. É necessário o tempo de 1 a 2 meses de infecção sustentada para ocorrer a anemia, depois do qual um novo balanço é estabelecido entre a produção e a destruição de células vermelhas até que os níveis de Hgb se tornem estáveis.

Também é característica da anemia da doença crônica uma leve diminuição da vida das hemácias, embora o papel dessa alteração na fisiopatologia pareça ser de menor importância. A vida média das células vermelhas, nessas condições, é reduzida em 20 a 30%, também por ação das citocinas; a resposta da medula óssea é diminuída, em relação tanto à eritropoetina quanto a outros estímulos; parte desse efeito parece ser mediado por supressão medular pela IL-1.

Uma forma aguda da anemia da doença crônica pode ocorrer após algum evento agudo como infarto do miocárdio, trauma ou sepse grave, que apresenta, laboratorialmente, muitas das características vistas na anemia de doença crônica; os pacientes apresentam níveis altos de hepcidina, mas, principalmente, uma elevação significativa da IL-6, que se correlaciona com a diminuição rápida dos níveis de Hgb, maiores que a velocidade esperada na forma habitual da anemia.

 

Achados clínicos e laboratoriais

 

A gravidade da anemia é severa. Em geral, os níveis de Hgb variam entre 7?11g/dL, não necessariamente com sintomas relacionados à anemia. Níveis de Hgb abaixo de 8,5g/dL são vistos em cerca de 20% dos casos. A contagem absoluta de reticulócitos é baixa ? em geral, com menos de 25.000 células/mm3.

Os achados clínicos de anemia são, normalmente, despercebidos devido à predominância dos sintomas associados à doença de base, que levou ao aparecimento da anemia de doença crônica; lembra-se, ainda, que raramente a anemia associada à doença crônica é significativa.

Níveis de ferritina abaixo de 15g/dL são marcadores da ausência de depósitos de Fe, sendo, na prática, patognomônicos de anemia ferropriva. Esses pontos de corte, apesar de sensíveis, são pouco específicos para a diferenciação entre a anemia por deficiência de Fe e a anemia da doença crônica. Ao se utilizar um ponto de corte de 30g/dL, tem-se um marcador mais adequado para diferenciar esses dois tipos de anemia. Já a concentração de Fe sérico e os níveis de transferrinas são baixos, assim como o observado na anemia ferropriva.

Comumente, a anemia da doença crônica é normocrômica e normocítica. Os pacientes podem apresentar a concomitância de anemia de doença crônica com a anemia ferropriva; nesse caso, a microcitose observada costuma ser maior que a normalmente observada na anemia ferropriva.

Em pacientes com níveis de ferritina acima de 100g/dL, o diagnóstico de anemia ferropriva é praticamente descartado, porém, se os níveis de ferritina se encontram entre 30 e 100g/dL, o diagnóstico diferencial se torna mais difícil, e é necessário verificar os níveis dos receptores solúveis da transferrina. Nesse caso, os níveis são aumentados na anemia ferropriva, e normais na anemia da doença crônica. Pode-se utilizar uma fórmula para facilitar essa diferenciação.

Se a relação entre os níveis dos receptores da transferrina sobre o logaritmo da ferritina sérica for maior que 2, é provável que exista a associação entre anemia ferropriva e doença crônica; se for menor que 1, a possibilidade é que seja anemia de doença crônica isolada. A concentração de Fe menor que 26pg/célula é outro exame sugestivo de deficiência de Fe, e pode ajudar na diferenciação.

A avaliação da medula óssea raramente é necessária, e o seu mais importante achado é a quantificação de Fe medular. Em alguns casos, a avaliação medular pode ser benéfica, ou seja, observa-se que os macrófagos da medula óssea contêm quantidades normais ou aumentadas dos depósitos de Fe, refletindo redução da exportação de Fe pelos macrófagos, assim como partículas coradas com azul da Prússia em macrófagos.

Além disso, os precursores eritroides apresentam diminuição ou ausência de coloração para Fe (isto é, diminuição do número de sideroblastos), refletindo a menor disponibilidade de Fe para a produção de glóbulos vermelhos. De qualquer forma, devido a concomitância de doenças que acometem esses pacientes, é difícil a interpretação do aspirado de medula óssea nessas circunstâncias.

A anemia é, tradicionalmente, normocrômica e normocítica com volume corpuscular médio (VCM) em média de 90fl, mas um grande número de pacientes apresenta VCM e concentração de hemoglobina corpuscular média discretamente diminuídos. O Quadro 1 mostra as características da anemia da doença crônica, comparada a pacientes com deficiência de Fe.

 

Quadro 1

 

CARACTERÍSTICAS DA anemia da doença crônica

Características

Normal

Deficiência de Fe

anemia da doença crônica

Fe plasmático

70?190

30

30

Capacidade de ligação de Fe

250?40

450

200

Saturação de Fe (%)

30

7

15

Fe no macrófago da medula óssea

2+

0

3+

Ferritina sérica

20?200

10

150 ou +

Receptores de transferrina sérica

8?28

aumentada

normal

Fe: ferro.

 

Havendo comprometimento pulmonar, febre ou debilidade física, uma redução moderada do transporte de O2 causada pela queda de Hgb pode agravar de forma signifivativa os sintomas do paciente; nesse caso, a anemia da doença crônica se torna mais sintomática que o habitual, e os pacientes podem, eventualmente, desenvolver sintomas de “cor anêmico”.

 

Diagnóstico diferencial

 

O primeiro diferencial é com a anemia ferropriva. Nos casos que suscitam dúvidas, alguns autores recomendam a terapia com reposição de Fe com reavaliação conforme a resposta. É importante lembrar que os pacientes apresentam, em geral, anemia normocítica e normocrômica hipoproliferativa, que tem como diagnósticos diferenciais significativos a doença renal crônica, quadro de anemia similar ao de doenças endócrinas como hipertireoidismo, hipotireoidismo, pan-hipopituitarismo e hiperparatireoidismo primário e secundário.

Alguns diferenciais a serem levados em conta são a anemia dilucional que ocorre em pacientes com doenças avançadas, sobretudo em neoplasias avançadas, e a supressão da medula óssea induzida por medicamentos, que elimina siderose nos macrófagos. Quando o paciente apresenta anemia microcítica, e principalmente em casos mais severos, o diagnóstico diferencial se torna mais extenso, devendo ser consideradas a talassemia minor, as variantes sideropênicas das síndromes mielodisplásicas, a mieloftise por invasão de medula óssea, entre outras condições.

 

Tratamento e prognóstico

 

O tratamento de escolha é o da doença de base, seja através de cirurgia, seja com quimioterapia para neoplasias ou antibioticoterapia para doenças infecciosas ou qualquer outra modalidade de tratamento cabível para as doenças associadas. A anemia é, em geral, moderada e compatível muitas vezes com as limitações funcionais das doenças de base. Deve-se avaliar a possibilidade de associação com outros fatores complicadores, como deficiência de vitamina B12 e ácido fólico ou deficiência de Fe.

Os sintomas podem ter alguma melhora com o uso da eritropoietina com aumento de até 2 pontos na Hgb sérica. Caso seja decidido por seu uso, deve-se ter em mente que é necessário realizar reposição de Fe para manter saturação de transferrina maior que 20% e ferritina sérica maior que 100ng/ml (essas recomendações valem para qualquer condição com a indicação do uso de eritropoetina).

A eritropoetina pode ser dada em dose de 10.000U, 3x/semana, via subcutânea, podendo ser aumentada ou diminuída conforme a resposta. Como o aumento da Hgb e a diminuição dos níveis de ferritina ocorrem em 2 a 3 semanas, a darbepoetina-a também pode ser utilizada; entretanto, em caso de não haver resposta satisfatória, é recomendado descontinuar o tratamento; os níveis de Hgb desejados são aqueles que aliviam a sintomatologia do paciente.

A transfusão de concentrado de hemácias é recomendada em casos de anemia sintomática, sobretudo se os níveis de Hgb estiverem abaixo de 7g/dL, apesar do tratamento com o agente estimulador da eritropoiese. O tratamento específico da anemia da doença crônica só deve ser realizado em pacientes sintomáticos com níveis de Hgb menores que 10g/dL.

 

Bibliografia

1- Weiss G, Goodnough LT. Anemia of chronic disease. N Engl J Med 2005; 352:1011.

2- Ganz T. Anemia of chronic disease in Williams Hematology 2016

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