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Síndrome de Budd-Chiari

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 22/11/2021

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Asíndrome de Budd-Chiari (SBC) é definida como a obstrução do fluxo venosohepático em qualquer nível, desde as pequenas veias hepáticas até a junção da veiacava inferior (VCI) e o átrio direito, independentemente da causa da obstrução.A SBC pode ser considerada primária, quando ocorre por processos envolvendopredominantemente o sistema venoso, como tromboses ou flebites, ou secundária, quandoos processos ocorrem fora do sistema venoso, em particular neoplasias malignas.São excluídos da definição de SBC obstruções causadas por síndrome de obstruçãosinusoidal e distúrbios cardíacos ou pericárdicos.

ASBC é uma doença rara, com incidência estimada de 1 por milhão e prevalência de11 por milhão. A doença atinge ambos os sexos em proporções relativamentesimilares, com pequena predominância no sexo feminino em países ocidentais. Aidade média no diagnóstico é de 50 anos. O local da obstrução do fluxo venoso sãoas veias hepáticas, em 62% dos casos, a veia cava inferior, em 7% dos casos, ambas,em 31% dos casos, e, em 14% dos casos, há trombose de veia porta.

Adoença pode ser classificada conforme sua duração e gravidade em:

 

-SBC aguda (fulminante) com insuficiência hepática aguda: caracterizada porlesão hepática aguda, com transaminases elevadas, icterícia, encefalopatiahepática e tempo de protrombina elevado. A encefalopatia hepática ocorre dentrode oito semanas após o desenvolvimento da icterícia.

-SBC aguda, mas sem insuficiência hepática: as manifestações clínicas sedesenvolvem rapidamente (ao longo de semanas), com ascite intratável e necrosehepática. Pacientes com aparecimento de encefalopatia hepática em menos de 8semanas do início do quadro podem ser caracterizados como apresentandoinsuficiência hepática fulminante.

-SBC subaguda: início insidioso, com os pacientes levando até três meses paradesenvolver os sintomas. Ascite e necrose hepática podem ser mínimas devido àdescompressão dos sinusoides por colaterais venosos portal e hepático.

-SBC crônica: os pacientes apresentam complicações de cirrose.

 

Pacientescom insuficiência hepática aguda ou doença hepática aguda (não fulminante)ainda não desenvolveram colaterais venosos, os quais são observados empacientes com doença hepática subaguda e crônica.

 

Fisiopatologia

 

Aobstrução do fluxo hepático pode surgir de lesões endoluminais, como trombose,teias, endoflebite (SBC primária), ou de fora do sistema venoso por invasãoluminal ou por compressão extrínseca, como por tumor, abcesso, cistos (SBCsecundária). Em raras ocasiões, a SBC se origina de malformações congênitas,como telangiectasias ou vasos estenóticos. A obstrução do fluxo de saídageralmente é causada por trombose. A prevalência dos fatores de risco trombofílicosé mostrada na Tabela 1. No entanto, os fatores subjacentes das etiologias podemvariar em diferentes partes do mundo. Trombos são localizados exclusivamentenas veias hepáticas em 49% dos pacientes, exclusivamente dentro da VCI em 2%, ecomo trombose combinada de veias hepáticas e VCI em 49%. Em cerca de 18%, éidentificada trombose concomitante da veia porta.

Aobstrução do fluxo hepático leva à congestão característica. Com o tempo, issoirá induzir a hipotrofia dos tecidos afetados e o crescimento regenerativo departes não afetadas do fígado. Uma área típica de hipertrofia é o segmento 1 dofígado (lobo caudado), favorecido por sua drenagem venosa para a VCI. Nódulosregenerativos podem ocasionalmente evoluir para carcinoma hepatocelular. Alémdisso, podem aparecer colaterais intra-hepáticos durante a evolução da doença.

 

Tabela1. Prevalência de fatores de risco trombofílicos na trombose aguda e crônica daveia porta e na síndrome de Budd-Chiari primária

 

Fatores de risco

Trombose de veia porta

Síndrome de Budd-Chiari

Trombose da veia porta

21-40%

40-50%

Hemoglobinúria paroxística noturna

0-2%

0-19%

Síndrome de anticorpo antifosfolípide

 

6-19%

4-25%

Mutação do fator V Leiden

3-32%

6-32%

Mutação do fator II da protrombina

14-40%

3-7%

Deficiência de proteína C

0-26%

4-30%

Deficiência da proteína S

2-30%

3-20%

Deficiência da antitrombina

0-26%

0-23%

Deficiência de plasminogênio

0-6%

0-4%

Hiper-homocisteinemia (pior se genótipo TT677 MTHFR)

11-50%

12-37%

Gestação recente

6-40%

6-12%

Uso recente de anticoncepcionais orais

12-44%

6-60%

Doença de Behçet

0-31%

0-33%

Doença do tecido conjuntivo

4%

10%

 

 

Achados Clínicos

 

Ossintomas são dependentes da localização da obstrução do fluxo de saída, donúmero de vasos envolvidos e da dinâmica temporal da SBC. Os pacientes podemapresentar desde doença subclínica e sintomas leves a sintomas hiperagudos quepodem progredir para insuficiência hepática aguda. A doença pode ter um curso progressivamenterecorrente envolvendo veias hepáticas sucessivamente diferentes.

Dorabdominal geralmente é o sintoma mais frequente, mas sintomas de congestãohepática também podem ocorrer, com ascite (> 80% dos pacientes), dor abdominal(> 60%) e varizes esofágicas (> 50%). Ainda, pode ocorrer edema demembros inferiores, e alguns pacientes podem evoluir com febre. Os pacientespodem apresentar quadro de dor em hipocôndrio direito e hepatomegalia.

Encefalopatiahepática é descrita em pouco mais de 10% dos casos, assim como o envolvimento deórgãos extra-hepáticos, como, por exemplo, síndrome hepatorrenal (< 10%). Ospacientes podem ter insuficiência hepática aguda em 5% dos casos, mas a maioriatem apresentação subaguda ou crônica.

 

Exames Complementares eDiagnóstico

 

Ospacientes apresentam elevação das aminotransferases, aumento de bilirrubinas ealteração da função hepática com aumento de INR ou diminuição dos níveis defator V em casos de insuficiência hepática fulminante.

Namaioria dos casos, o diagnóstico de SBC pode ser obtido por meio do ultrassom Doppler.Se as dificuldades técnicas evitarem o diagnóstico ultrassonográfico, aressonância magnética é o método de imagem de escolha. Apenas em casos raros é necessáriaa biópsia hepática ou a venografia hepática para confirmar o diagnóstico. Ao ultrassom,as características da SBC estão claramente definidas. Elas compreendem sinaisespecíficos, como visualização direta de trombos, estenose, incapacidade deidentificar a junção das veias hepáticas principais com a VCI, substituição dasveias hepáticas por filamentos fibróticos ou fluxo reverso hepático ou VCI eaparecimento de complexos venosos com telangiectasias, também denominadas spider-webs.Outros sinais incluem colaterais hepáticos, que podem ser interpostos entre asveias hepáticas ou podem estar localizados na cápsula hepática. Alargamento daveia caudada (> 3 mm) também é considerado sugestivo de SBC. Esses sinaisservem para o diagnóstico de SBC e podem ser acompanhados por uma miríade dealterações não específicas (por exemplo, ascite, nódulos regenerativos,esplenomegalia). Como os nódulos regenerativos na SBC podem progredir paracarcinoma hepatocelular, exames de imagem completos são obrigatórios. Noentanto, a identificação da transformação maligna pode ser difícil.

Atomografia computadorizada com contraste pode mostrar anormalidadesinespecíficas semelhantes às da ultrassonografia. Achados sugestivos de SBCincluem:

 

-preenchimento atrasado ou ausente das três veias hepáticas principais;

-aparência irregular do fígado devido ao aumento do contraste central em relaçãoà periferia;

-eliminação rápida de contraste do lobo caudado;

-estreitamento e/ou falta de opacificação da veia cava inferior.

 

Aressonância magnética com contraste também é útil no diagnóstico da SBC. Alémdos achados inespecíficos descritos, a ausência ou redução no calibre das veiashepáticas e os efeitos colaterais intra-hepáticos típicos distorcidos. Avenografia deve ser realizada se os testes não invasivos forem negativos ou nãodiagnósticos, mas persistir forte suspeita clínica da doença. O padrão-ouropara o diagnóstico da SBC é a venografia hepática, que é realizada acessando-sea circulação venosa hepática por via percutânea através da veia jugularinterna, veia cefálica ou veia femoral. Uma vez que a veia cava inferior tenha-semostrado pérvia, deve-se tentar a opacificação de cada uma das veias hepáticasindividuais. No entanto, a venografia de algumas ou de todas as veias hepáticaspode não ser viável em muitos pacientes. A venografia pode ser crítica paradirecionar a terapia. Os estudos não invasivos podem não definir com precisão aextensão ou as características do fluxo venoso hepático. Em particular, acompressão ou oclusão da veia cava intra-hepática leva a um fluxo lento nasveias hepáticas.

Abiópsia hepática raramente é necessária para o diagnóstico da SBC. Ela éindicada:

-quando há confusão quanto ao diagnóstico;

-em pacientes selecionados com apresentação subaguda, quando a presença decirrose não é aparente por estudos não invasivos e o achado de fibrose/ cirrosesignificativa ou congestão centrizonal grave indicaria que o paciente poderiase beneficiar de shunt transjugular intra-hepático ou cirúrgicoportossistêmico.

 

Ascaracterísticas histológicas da SBC incluem congestão centrizonal, necrose ehemorragia. Nódulos regenerativos grandes, venopatia portal obstrutiva efibrose/cirrose também podem ser encontrados. O processo trombótico na SBC podenão envolver todas as veias hepáticas. Assim, a distribuição dos achadospatológicos típicos pode ser focal ou irregular. Como resultado, algunspacientes requerem biópsia dos lobos direito e esquerdo do fígado. Umaabordagem laparoscópica pode ser mais adequada. As biópsias hepáticas sãofrequentemente obtidas por via transjugular durante a realização da venografiahepática, uma vez que a maioria dos pacientes tem ascite e necessitará deanticoagulação, o que aumenta o risco da abordagem percutânea.

 

Manejo e Prognóstico

 

Otratamento da SBC deve ser ajustado à etiologia e à gravidade do quadro clínico.O prognóstico é ruim na maioria dos pacientes, e a mortalidade sem tratamento éde 90% em três anos.

Fatorespredisponentes, como trombofilias, devem ser tratados, e seu tratamento édependente da etiologia. Muitos pacientes apresentam doençasmieloproliferativas, como a policitemia vera; nesse caso, o manejo apropriadopara essas patologias deve ser realizado. A anticoagulação deve ser iniciadaassim que possível, e a maioria dos autores prefere utilizar heparina de baixopeso molecular. Pode-se iniciar o uso de antagonistas da vitamina K ou de anticoagulantesorais de ação direta, mas a anticoagulação isoladamente não consegue prevenir aprogressão da doença na maioria dos casos. Pacientes com doença crônica ousubaguda compensada podem ser tratados com anticoagulação isoladamente.Pacientes com veias trombosadas podem ter a potência das veias hepáticas restauradas,incluindo angioplastia e stents de pacientes selecionados com doençaaguda ou subaguda com obstrução de veia hepática segmentar ou da veia cava inferior.

Sea SBC for causada por malformações congênitas, como telangiectasias,intervenções radiológicas usando dilatação assistida por cateter-balão podemter sucesso. No caso de um evento trombótico primário, a anticoagulação é abase do tratamento, mas outras intervenções podem ser necessárias, como shuntsportossistêmicos intra-hepáticos (TIPS), de forma que levam a um fluxo venosohepático alternativo com recanalização do fluxo hepático. Com o advento doTIPS, a necessidade do transplante hepático na SBC diminuiu drasticamente.Taxas de sucesso do TIPS, tanto a curto como a longo prazo, são altas. Procedimentoscirúrgicos (por exemplo, shunt cirúrgico, transplante hepático) raramentesão realizados. Com essa abordagem, os dados atuais mostram que a sobrevivênciana SBC é superior a 70% após cinco anos.

O transplante hepático pode ser a única opçãopara pacientes com SBC que não são candidatos a outros tratamentos, que têmcirrose descompensada ou para os quais outros tratamentos são ineficazes.Pacientes que desenvolveram a SBC como resultado de deficiência de proteína S,proteína C ou antitrombina III também podem ser curados de sua tendência àcoagulação pelo transplante hepático. A sobrevivência após o transplantedepende da causa subjacente da SBC e da condição do paciente no momento dotransplante. Os avanços na tecnologia de transplante hepático e a adoção dapontuação do Modelo para Doença Hepática em Estágio Final (MELD) para alocaçãode fígado de doador falecido podem ter levado a uma melhor sobrevida após otransplante de fígado na SBC.

 

Bibliografia

 

1-Bahr MJ.Vascular liver disease. Hepatologu Clinical Textbook 2020.

2- Menon KV, Shah V, Kamath PS. The Budd-Chiari syndrome. N Engl J Med 2004;350:578.

3-Ferral H, Behrens G, Lopera J. Budd-Chiari syndrome. AJR Am J Roentgenol2012; 199:737.

4-Northup PG, Garcia-Pagan JC,Garcia-Tsao G, et al. Vascular Liver Disorders, Portal VeinThrombosis, and Procedural Bleeding in Patients With Liver Disease: 2020Practice Guidance by the American Association for the Study of Liver Diseases.Hepatology 2021; 73:366

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