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Gangrena Gasosa

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 21/03/2022

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?Gangrenagasosa? é uma expressão geralmente reservada para uma infecção devastadora causadapor microrganismos das espécies de Clostridium, que também é denominada ?mionecrosepor Clostridium?. As espécies de Clostridium são achadascomumente no solo, em sedimentos e no trato gastrintestinal de diversosanimais.

A gangrenagasosa afeta principalmente os músculos e causa necrose muscular. Era comum emcampo de batalha e atualmente ocorre sobretudo após lesões traumáticas (70% doscasos), particularmente aquelas que ocorrem durante desastres naturais, comoterremotos, após cirurgias ou em associação com injeção de drogas, emindivíduos imunossuprimidos ou em pacientes com neoplasias malignas ocultas. Feridascontaminadas podem progredir rapidamente para gangrena gasosa quando estãofechadas ou desbridadas inadequadamente. O Clostridium perfringens é oorganismo mais comumente envolvido, mas várias outras espécies são patogênicas.O Clostridium produz exotoxinas que levam a alterações fisiológicassistêmicas e auxiliam sua habilidade para invadir localmente. A detecçãoprecoce e o tratamento limitam a morbidade e a mortalidade. As gangrenas queocorrem espontaneamente são mais comumente causadas pelo Clostridium septicum.

O traumaintroduz organismos (formas vegetativas ou esporos) diretamente no tecidoprofundo. Se o trauma comprometer o suprimento sanguíneo, forma-se um ambienteanaeróbio com baixo potencial de oxidação-redução e pH ácido, o que é idealpara o crescimento desses microrganismos. A necrose do tecido pode sedesenvolver horas após a lesão e progride rapidamente em vários centímetros porhora na ausência de tratamento. Na gangrena gasosa, a necrose muscular é grave,e os neutrófilos estão ausentes nos tecidos infectados, em contraste com asinfecções de tecidos moles causadas por organismos como o Staphylococcusaureus, em que um influxo significativo de neutrófilos ajuda a localizar ainfecção clinicamente. Na infecção pelo Clostridium, os neutrófilos quechegam ao local da infecção aderem e se acumulam ao longo do endotélio doscapilares, nas pequenas arteríolas e vênulas pós-capilares, mas não cruzam oendotélio vascular para o tecido infectado. Assim, apesar de dor significativadesde o início dos sintomas, a lesão inicial pode não parecer tãosignificativa.

 

Epidemiologia

 

A gangrenagasosa é rara, com cerca de 0,1 a 1,0 caso por 1 milhão pessoas. Nos EstadosUnidos, estima-se que ocorram 1.000 casos anualmente. Antes do século XX, agangrena gasosa era uma causa comum de perda de membro e morte em tempo deguerra. A introdução da pólvora aumentou a complexidade das feridas nasextremidades no campo de batalha. A taxa de mortalidade por gangrena gasosadurante a Guerra Civil americana era de 62%. Fleming descreveu a bacteriologiade feridas durante a Primeira Guerra Mundial, identificando o C. perfringensem 81% das feridas nos primeiros nove dias após a lesão. Cinco por cento dosferidos desenvolviam gangrena gasosa. Durante a Segunda Guerra Mundial, o desbridamentoprecoce, o fechamento e a administração de penicilina diminuíram significativamentea taxa de mortalidade.

A gangrenagasosa ocorre em três ambientes clínicos principais: trauma, pós-procedimento eespontânea. As causas traumáticas incluem feridas penetrantes por arma de fogo,ferimentos por arma branca, ferimentos por esmagamento e fraturas,especialmente ferimentos contaminados pelo solo. Casos não traumáticos podemser vistos no pós-operatório de feridas e entre usuários de drogasintravenosas. A colonização pelo Clostridium do intestino pode ser fontepotencial de casos não traumáticos de mionecrose clostridial. Esses pacientescostumam ter alterações hematológicas ou neoplasias malignas ocultas.

 

Patogênese

 

Nuttall e Welchdescobriram o C. perfringens em 1892. Esse bacilo gram-positivo foiinicialmente chamado de C. welchii, mas depois foi renomeado como C. perfringens.Essa espécie faz parte da flora normal do sistema gastrintestinal humano e do tratobiliar e geniturinário. O solo, especialmente de fazendas, pode estarfortemente contaminado com esporos de Clostridium.

O C.perfringens é um agente anaeróbico, mas com alguma tolerância ao meioaeróbio. Forma esporos resistentes ao calor, que são capazes de sobreviver emambientes hostis e são difíceis de erradicar. Em certas condições,

é capaz demultiplicação rápida, com a produção de quantidade significativa de gás. Fatorespredisponentes ao desenvolvimento de gangrena gasosa incluem lacerações, perfuraçõesou esmagamento de feridas contaminadas.

A imunossupressãoé frequente em casos de gangrena gasosa não traumática. O crescimento inicialdo organismo começa dentro da área de tecido de desvitalização em um ambienteanaeróbio. A infecção avança através de tecidos saudáveis causando necrose, quepode progredir muito rapidamente. A contaminação e a proliferação são oprimeiro estágio. Um pH baixo favorece o crescimento do Clostridium. Ahipóxia muscular leva à depressão de aminoácidos e glicogênio, ajudando asobrevivência e a replicação da bactéria. Os fagócitos são ineficientes noambiente com baixa saturação de oxigênio. Em uma segunda fase, as bactériaspodem produzir toxinas. A destruição muscular fornece nutrientes como aminoácidose carboidratos. Um ambiente ácido é ideal para o crescimento bacteriano e aprodução de toxinas. Posteriormente, há a destruição dos tecidos pelas toxinas,que criam seu efeito de forma sistêmica e local, mas sem resposta inflamatóriasignificativa. A a-toxina aumenta a adesão de plaquetas e neutrófilos, causandooclusão vascular. Essa oclusão resulta em isquemia do tecido e morte, podendocausar dor. A última fase é de toxicidade sistêmica, em que as toxinasinteragem com macrófagos, plaquetas e células endoteliais, induzindo a produçãode citocinas, como o fator de necrose-a e as interleucinas 1 e 6, o que podelevar ao aparecimento de choque e disfunção de múltiplos órgãos. A toxinatambém tem efeitos diretos sobre a função de fagócitos e macrófagos, bem comosobre a integridade endotelial. As toxinas induzem hemólise e afetamdiretamente o débito cardíaco, a frequência cardíaca e a resistência vascularsistêmica.

O C.perfringens é o organismo mais comumente cultivado a partir de feridastraumáticas que desenvolveram gangrena gasosa. Ele é o organismo causador em 80a 95% dos casos. Outras espécies de Clostridium envolvidas incluem Clostridiumnovyi (8%), Clostridium septicum (4%), Clostridium histolyticum,Clostridium fallax e Clostridium sordellii (1%). Infecções pelo C.septicum se disseminam frequentemente de uma fonte hematogênica ougastrintestinal. Pacientes que sobrevivem a um episódio de gangrena gasosa com esseorganismo devem ser avaliados quanto à possibilidade de neoplasia maligna gastrintestinal.Mais de 75% dos pacientes com gangrena gasosa por C. septicum têm umadoença maligna oculta, principalmente gastrenterológica ou hematológica.

 

Achados Clínicos

 

O períodode incubação é geralmente menor que 1 dia, e pode levar de 6 a 8 horas para queuma infecção por Clostridium se torne estabelecida. A destruiçãomuscular a partir desse momento pode progredir rapidamente, ocorrendo em geral dentrode 2 a 5 dias da lesão. A dor é o primeiro sintoma observado. É descrita comodesproporcional ao grau de lesão e de início súbito e ocorre devido à necroseisquêmica secundária às toxinas. A dor pode progredir para anestesia local. Asalterações teciduais evoluem com rapidez, e a pele local é inicialmente pálida,mas logo evolui para coloração bronzeada; posteriormente ocorrem edema e bolhas,e a pele se torna eritematosa e depois cianótica, e ocorre saída de secreçãoserosa. Um odor de mofo pode estar presente. Pacientes frequentementeapresentam alterações mentais, hipotensão, anemia, plaquetopenia e lesão renalaguda, entre outras alterações sistêmicas. Uma reação leucemoide significativa comcontagem de leucócitos superior a 30.000 células, ou leucopenia, pode serobservada na gangrena gasosa, e bacteremia ocorre em 15% dos pacientes. Algunsapresentam hemólise intravascular. Os pacientes não costumam apresentar febre eàs vezes podem ter hipotermia.

Asculturas de tecidos com Gram são importantes para o diagnóstico clínico. Ashemoculturas são tipicamente negativas na gangrena gasosa, mas devem sercoletadas. Na gangrena gasosa não traumática, os primeiros sinais sãoinespecíficos e incluem dor e confusão mental. Nesse caso, a imagem pode ser essencialpara ajudar a localizar o local da infecção. Sempre que houver dúvida diagnóstica,a exploração cirúrgica é indicada.

 

Exames Complementares

 

Exames deimagem podem não ter valor na avaliação da gangrena gasosa. Frequentemente, ossintomas clínicos são significativos e dispensam a realização de outros exames.Radiografia simples ou ultrassom pode identificar o ar nos tecidos e é provavelmentemais sensível do que o exame físico. A tomografia computadorizada (TC) pode serútil para identificar gangrena oculta, mostrando gás em tecidos profundos. Aexploração cirúrgica para o diagnóstico pode ser necessária em caso deincerteza clínica, e punção de tecidos musculares com agulha estéril podeajudar a identificar o microrganismo.

Exameslaboratoriais necessários incluem hemograma completo, eletrólitos, ureia,glicemia e creatinofosfoquinase, testes de função hepática e provas inflamatórias,como proteína C reativa. Anemia, plaquetopenia e anormalidades de coagulaçãopodem estar presentes e necessitam de correção com ressuscitação volêmica.

 

Tratamento

 

Aressuscitação ocorre simultaneamente com a avaliação. O uso de antibióticos deamplo espectro deve ser iniciado precocemente. O C. perfringens é muitosensível à penicilina, o que não ocorre com o C. septicum. A imunizaçãocontra o tétano deve ser atualizada, e a imunoglobulina antitetânica deve ser administradanos pacientes não vacinados previamente. O tratamento definitivo é a cirurgia. Essespacientes apresentam distúrbios fisiológicos graves, e, se possível, deve-setentar realizar compensação clínica parcial antes da cirurgia. No entanto, deve-selembrar que os pacientes não irão ter melhora significativa sem o procedimentocirúrgico. A ressuscitação deve continuar na fase cirúrgica do tratamento. Aextremidade deve ser preparada e coberta, começando pela articulação acima eabaixo do local do envolvimento. Historicamente, a amputação tem sido o únicoprocedimento recomendado para tratar a gangrena gasosa. Ela pode ser realizadarapidamente e é o tratamento definitivo. O objetivo é antecipar-se à infecção,devendo ser removido o membro abaixo do envolvimento grave da infecção.

Infelizmente,a gangrena gasosa muitas vezes envolve as extremidades proximais, tornandonecessária a amputação proximal. Deve-se tentar equilíbrio entre debridamentoagressivo para remover o tecido comprometido e interromper o crescimentobacteriano com preservação tecidual para posterior reconstrução e possibilidadede extensão da infecção.

A maioriados casos precisa de amputação, mas, em casos mais leves, a exploração doscompartimentos com ressecção dos músculos envolvidos é uma opção. Quando desbridamentoé a opção escolhida, é feita uma incisão vertical na pele sobre a área deanormalidade cutânea, e a pele com evidências de púrpura ou necrose deve serremovida com o desbridamento. Como a infecção atinge o músculo, é vitalgarantir a exploração dos compartimentos musculares, porque o tecido maissuperficial pode parecer não afetado. A dissecção deve continuar até a fásciaprofunda para uma inspeção muscular completa. O desbridamento deve-se estenderao músculo viável. É imperativo que todos os músculos desvitalizados sejamremovidos. Os músculos devem ser avaliados quanto a cor, consistência,contratilidade e perfusão. O músculo inviável é friável e descama facilmente, oferecendopouca resistência à remoção, e tem aparência escura, marrom ou pálida. Não secontrai quando estimulado com o eletrocautério e não sangra ao corte.Conhecimento da distribuição dos feixes neurovasculares no compartimentomuscular é essencial, porque o resultado funcional pode ser prejudicado portransecção desnecessária de vasos sanguíneos ou nervos. Quando múltiplos gruposmusculares estão envolvidos, ou o paciente está hemodinamicamente comprometido,a amputação pode ser a melhor opção de tratamento, mesmo se possível outra conduta.Culturas de fluidos e tecido da ferida devem ser obtidos na sala cirúrgica.

O cuidadode feridas com curativos com gazes simples é a melhor opção para tratamentoimediato da ferida. Reavaliação planejada do ferimento na sala de cirurgia é necessária.Tratamento avançado de feridas por meio de terapia com pressão negativa, espumae curativos com antimicrobianos pode ser utilizado uma vez que a infecçãoesteja controlada. Essas infecções resultam em grandes feridas que desfiguram erequerem múltiplos procedimentos cirúrgicos. Cuidar desses pacientes exigemuitos recursos, e eles frequentemente precisam de longa permanência em unidadesde terapia intensiva. A cobertura de feridas nesses pacientes pode necessitarde enxertos de pele e/ou retalhos de pele. O uso de oxigênio hiperbárico para otratamento da gangrena gasosa é

controverso.Essa controvérsia reside principalmente na falta de estudos randomizados queapoiem seu uso rotineiro como complemento para o manejo da gangrena gasosa. Oaumento da entrega de oxigênio com a terapia hiperbárica pode ser letal para o Clostridium,pois esses microrganismos não têm superóxido dismutase e não podem sobreviver emum ambiente rico em oxigênio. Altas tensões de oxigênio impedem a produção detoxina alfa. A terapia hiperbárica não deve retardar as medidas deressuscitação, a administração de antibióticos ou o desbridamento cirúrgico.

São fatorespreditores de pior desfecho leucocitose > 30.000 leucócitos/mm3,creatinina sérica > 2 mg/dL ou doença cardíaca preexistente. A mortalidade émaior que 50% em pacientes que tiveram três ou mais dos seguintes fatores derisco: idade acima de 50 anos, desnutrição ou obesidade, diabetes, uso dedrogas injetáveis ??e hipertensão.

 

Bibliografia

 

1-Henry S, Cain C . Gas gangrene of Extremities.Current Surgical Diagnosis and Treatment 13 tg 2019.

2-Wang Y, Lu B, Hao P, et al. Comprehensive treatment forgas gangrene of the limbs in earthquakes. Chin Med J (Engl) 2013; 126:3833.

3-Weinstein L, Barza MA. Gasgangrene. N Engl J Med 1973; 289:1129.

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