FECHAR
Feed

Já é assinante?

Entrar
Índice

Lesão Renal por Anti-Inflamatórios não Esteroidais

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 12/09/2022

Comentários de assinantes: 0

Os anti-inflamatóriosnão esteroidais (AINEs) são amplamente utilizados para tratar dor, febre einflamação. Outros usos potenciais para essas drogas incluem o tratamento e aprevenção da polipose do cólon e da demência de Alzheimer. Além dos AINEs prescritos,uma grande porcentagem da população em geral consome AINEs de venda livre emfarmácias. A cada ano, mais de 50 milhões de pessoas ingerem essas drogas ocasionalmente,e 15 a 25 milhões de pessoas nos Estados Unidos usam um AINE regularmente. Osidosos apresentam risco de complicações múltiplas devido ao uso de AINEs, e aprevalência de uso nessa população é elevada. Os AINEs podem causar lesão renalde diferentes formas, principalmente por alterações hemodinâmicas e,eventualmente, na forma de nefrite intersticial.

 

Epidemiologia

 

Os AINEs apresentamuma série de complicações gastrintestinais e, em menor grau, efeitos renaisadversos. Foi estimado que de 5 a 7% das admissões ao hospital ocorrem devido àtoxicidade por AINEs. Os principais órgãos envolvidos são o tratogastrintestinal, os rins e o sistema nervoso, e cerca de 1 a 5% dos usuárioscrônicos de AINEs desenvolvem eventos adversos. A nefrotoxicidade de AINEs, emparticular a lesão renal hemodinâmica, é um problema relativamente incomum, masimportante. Estima-se que em torno de 1 a 5% dos pacientes que ingerem AINEsdesenvolvem nefrotoxicidade, com até 500.000 casos ao ano nos Estados Unidos. Umestudo com mais de 121.000 usuários novos de AINEs com mais de 65 anosdemonstrou um risco relativo ajustado para lesão renal aguda (LRA) de 2,05usando os critérios AKIN. Com o uso de AINEs, espera-se queda de 10% da taxa defiltração glomerular.

Aexposição a AINEs é associada ao dobro do risco de hospitalização por LRA empacientes com doença renal crônica (DRC). Pacientes com histórico deinsuficiência cardíaca e hipertensão, bem como aqueles tratados com diuréticos,apresentam maior risco de LRA induzida por AINEs. O efeito também é relacionadoà dose dos AINEs, o risco é maior em pacientes hospitalizados e com complicaçõesclínicas e metabólicas, com o uso de antagonistas do sistemarenina-angiotensina (SRA) e diuréticos.

A maioriados efeitos renais adversos dos AINEs é atribuível à inibição deprostaglandinas (PGs) renais pelos AINEs. O inibidor seletivo da COX-2celecoxib apresenta um perfil de risco renal semelhante ao de outros AINEs. Alteraçõeseletrolíticas e distúrbios ácido-básicos podem ocorrer, como hipercalemia,hiponatremia, acidose metabólica e hipertensão que se desenvolve ou é exacerbadapelos AINEs.

 

Patogênese

 

A etapainicial na síntese de PGs é a liberação de ácido araquidônico dos fosfolípidesda membrana celular, e pode ocorrer ainda liberação de precursores dosleucotrienos. Essa reação é mediada pela fosfolipase A2, que é desencadeada porum número de hormônios e fatores mecânicos. Ácido araquidônico é o substratopara COX. Após a síntese, as PGs saem imediatamente da célula para ligarem-se aosreceptores de PGs, modulando, assim, as funções celulares.

Dois isômerosda COX, a COX-1 e a COX-2, catalisam a síntese de PGs e outros tipos de célulasem resposta a mediadores inflamatórios. No entanto, sabe-se agora que a COX-2também é constitutivamente expressa e regulada positivamente no rim edesempenha um papel importante nos processos fisiológicos renais.

A síntesede PGs, apesar de elas serem vasodilatadoras renais, é de importância mínima paraos rins de indivíduos saudáveis ??com volemia normal. Em pacienteshipovolêmicos, hipotensos ou com redução da perfusão renal, a ação das PGs podeser significativa, induzindo vasoconstrição, aumentando a secreção de renina eantagonizando os efeitos do hormônio antidiurético. A PGE2 aumenta a excreçãorenal de sódio e diminui a tonicidade medular pela ação direta daprostaglandina nesses segmentos do néfron. A PGE2 e a PGI2 estimulam a secreçãode renina no aparelho justaglomerular, levando a aumento da síntese deangiotensina II e aldosterona e da retenção de sódio e excreção de potássio nonéfron distal. Por fim, a PGE2 e a PGI2 também inibem a síntese de AMP cíclicoe opõem-se à ação do hormônio antidiurético (ADH), facilitando a excreção deágua.

Uma vezque a produção basal de PGs é baixa em pessoas saudáveis, o

o risco deLRA associada a AINEs é insignificante. Existem, no entanto, os fatores derisco que tornam o rim dependente de PGs e, portanto, colocam os pacientes emrisco de desenvolvimento de LRA quando usam AINEs. As PGs têm seu papelprincipal na preservação da função renal quando estados patológicos estãoassociados e comprometem os processos renais fisiológicos. O desenvolvimento dedepleção de volume, como observado com vômitos, diarreia e terapia diurética,estimula a síntese de PG para otimizar o fluxo sanguíneo. Reduções no fluxosanguíneo renal, conforme visto na insuficiência cardíaca (IC), na cirrose e nasíndrome nefrótica, também estimulam a produção compensatória de PGs.

A PGI2 e aPGE2 antagonizam os efeitos locais da circulação de angiotensina II,endotelina, vasopressina e catecolaminas, que normalmente manteriam a pressãoarterial sistêmica à custa da circulação renal. Especificamente, esses eicosanoidespreservam a taxa de filtração glomerular (TFG), antagonizando a vasoconstriçãoarteriolar e o embotamento mesangial. Os principais fatores de risco para lesãorenal associada aos AINEs estão sumarizados na Tabela 1.

 

Tabela 1: Fatoresde risco para casos agudos associados a lesão renal pelos AINEs

 

- Depleção de volume intravascular

- Vômito

- Diarreia

- Diuréticos

- Insuficiência cardíaca

- Cirrose

- Síndrome nefrótica

- Doença renal

- Lesão renal aguda

- Doença renal crônica

- Diabetes

- Inibidores da enzima de conversão da angiotensina

- Bloqueadores do receptor de angiotensina

 

Umaredução significativa na TFG pode ocorrer após administração de um AINE a umpaciente com alterações predisponentes. A produção de PGs também sofre aumento nadoença renal crônica, induzido por mecanismos intrarrenais ativados paraaumentar a perfusão dos néfrons remanescentes. Como resultado, ocomprometimento da produção de PGs com um AINE está associado a reduções agudasno fluxo sanguíneo renal e na TFG. Certos medicamentos, como drogas queantagonizam o sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA), como inibidoresda enzima de conversão da angiotensina (IECAs) e bloqueadores do receptor deangiotensina (BRAs), aumentam o risco de LRA principalmente em pacientes comdepleção de volume intravascular efetivo. Na ausência de doença renalsubjacente, raramente ocorre LRA quando esses pacientes estão euvolêmicos.

 

Achados Clínicos

 

Naausência de LRA grave, a maioria dos pacientes com AINEs associados com azotemiapré-renal é assintomática, e o diagnóstico é realizado com um achado de aumentode creatinina em exames coletados por outros motivos. Aumento dos níveis decreatinina ocorre geralmente nos primeiros 3 a 7 dias de seu uso, mas sãodescritos em qualquer momento do tempo de uso. Pacientes com depleção de volumepodem apresentar manifestações urêmicas, como anorexia, náusea e vômitos,fraqueza, fadiga, incapacidade de concentração e possivelmente dispepsia. Essespacientes não estão hipertensos ou edemaciados. Em contraste, os pacientes comdepleção de volume intravascular efetivo, como IC, cirrose ou síndrome nefrótica,apresentam sobrecarga de volume. Em pacientes com IC, isso pode se manifestarcomo estertores pulmonares, estase jugular e uma terceira bulha cardíaca, alémde edema periférico. Aumento da circunferência abdominal por ascite e agravamentodo edema periférico podem se desenvolver no paciente com cirrose. Edemaperiférico aumentado e anasarca podem ocorrer no paciente com síndromenefrótica. Pacientes com IC e insuficiência renal frequentemente apresentamhipertensão, enquanto o paciente com cirrose não desenvolve aumento dos níveispressóricos. Pacientes com hipertensão associada, especialmente quando emterapia com medicamentos anti-hipertensivos, muitas vezes apresentam piora docontrole da pressão arterial. O paciente com DRC desenvolve uremia aguda, hipertensãograve, edema periférico e IC. Fraqueza muscular e parada cardíaca queprejudicam a homeostase do potássio (IECAs, BRaS espironolactona, eplerenona,inibidores da calcineurina, heparina) podem ocorrer.

 

Exames Complementares

 

A LRAassociada a AINEs é hemodinâmica, e, portanto, os achados laboratoriais sugeremuma lesão pré-renal. As concentrações de ureia e creatinina estão elevadas, masa concentração de ureia aumenta mais do que a concentração sérica de creatinina.Em geral, a razão ureia (U)/creatinina (Cr) é maior que 20, embora isso nãoocorra em todos os pacientes. Vários distúrbios eletrolíticos podem estar presentes,incluindo hiponatremia e hipercalemia, com ou sem acidose metabólica com ânion-gapelevado. O hipoaldosteronismo hiporreninêmico está associado a hipercalemia eacidose metabólica com ânion-gap normal. Essas alterações podem ocorrer mesmocom LRA mínima.

O exame deurina também sugere uma lesão pré-renal. A densidade urinária é normalmentemaior que 1,015, e o sódio urinário costuma ser inferior a 10-20 mEq/L. O cálculoda fração de excreção de sódio (FeNa = [urina Na × soro Cr] ÷ [soro Na ×urina Cr]) mostra um valor menor que 1%. Isso contrasta com um valor maior que 3%,o que caracteriza a necrose tubular aguda (NTA). Raramente, a densidadeurinária específica e a FeNa podem ser sugestivas de NTA em pacientes com LRAassociada a AINEs. Isso representa uma situação em que algum grau de NTAisquêmica ocorre, provavelmente devido a hipotensão e hipoperfusão renal grave.A hipercalemia é avaliada pelo cálculo do gradiente transtubular de potássio(TTKG). O TTKG é calculado da seguinte forma: TTKG = [urina K ÷ (osmolalidadeurinária / osmolalidade sérica)] ÷ K sérico. O TTKG menor que 6 no cenário dehipercalemia reflete deficiência da excreção renal de potássio devido aohipoaldosteronismo e é consistente com um diagnóstico de nefrotoxicidade pelosAINEs.

O examemicroscópico da urina em pacientes com LRA associada a AINEs geralmente revelasedimento urinário sem elementos celulares e às vezes alguns cilindros hialinossão usados em pacientes que desenvolvem necrose tubular aguda mistos hialinos/granulares.Esses achados são consistentes com a lesão pré-renal que se desenvolve.Raramente, cilindros epiteliais tubulares renais podem estar presentes, o quepode ocorrer se lesão tubular isquêmica também estiver presente. É incomum ver eritrócitose leucócitos ou cilindros contendo esses elementos celulares, a menos que outradoença renal esteja presente. A presença desses achados sugere sobreposição denefrotoxicidade pelos AINEs em outro processo renal, como a nefriteintersticial aguda (NIA).

Os examesde imagem são normais na ausência de outras doenças. A ultrassonografia renalmostra rins de tamanho normal com ecotextura normal e nenhuma evidência dehidronefrose. Tomografia computadorizada (TC) e imagem por ressonânciamagnética (RM) também são normais na LRA pura associada a AINEs. A cintilografiade perfusão renal com IECA mostra diminuição da captação bilateral do traçadorpelos rins, consistente com lesão pré-renal. A nefrite intersticial associada aAINEs costuma cursar com proteinúria significativa, diferentemente das outrascausas de nefrite intersticial.

 

Diagnóstico Diferencial

 

A LRA que ocorreno contexto da terapia com AINEs precisa ser diferenciada de outros estadospré-renais, bem como de vários processos renais intrínsecos, como a NTA ou aNIA. A uropatia obstrutiva também precisa ser considerada no diagnósticodiferencial.

A NTA isquêmicapode ocorrer a partir do problema clínico subjacente (ou seja, hipotensão,sepse), bem como do efeito de AINEs na hemodinâmica renal, o que piora aindamais a perfusão renal e a TFG. Os exames de urina diferenciam a lesão por AINEscom a NTA pela densidade urinária de 1,015 ou menos, sódio urinário maior que20 mEq/L, fração de excreção de sódio (FeNa ) maior que 3%, e sedimento deurina com cilindros epiteliais, e granulares geralmente diagnosticam NTA. Pacientesque não se recuperam dentro de alguns dias após a interrupção do AINE devem serconsiderados para o diagnóstico de NIA. A NIA geralmente, mas não sempre, estáassociada a eosinofilia, proteinúria (< 1 g/dia), piúria (± eosinofilia) ehematúria, mas a NIA associada aos AINEs muitas vezes não tem os achadosclássicos da NIA e pode apresentar sedimento de urina quase normal. Por fim, a LRAdo trato urinário por obstrução parcial pode ser confundida com LRA associada aAINEs porque o sedimento da urina também pode ser normal.

 

Complicações

 

Comoacontece com qualquer droga que induz LRA, pode ocorrer uma série de complicaçõesurêmicas, metabólicas e intravasculares. A LRA grave pode estar associada a sintomasde uremia, incluindo sintomas de disfunção do sistema nervoso central (confusão,agitação, convulsão), sangramento por disfunção plaquetária, aumento do riscode infecção, desnutrição por estado catabólico e inflamação de serosas (pericardite,pleurite). Hiponatremia, hipercalemia e acidose metabólica com ânion-gap normalpodem ocorrer. A hipercalemia pode ser mais grave do que o esperado para onível de disfunção renal devido ao hipoaldosteronismo hiporreninêmico por AINEs.Sobrecarga de volume com edema pulmonar e edema periférico pode complicar aassociação de AINEs e a nefrotoxicidade em pacientes cardíacos. O aparecimento desíndrome hepatorrenal é uma complicação potencialmente devastadora da terapia comAINEs em pacientes com cirrose. Além disso, resistência diurética pode sedesenvolver em pacientes com IC e síndrome nefrótica. O aumento do risco deeventos cardiovasculares adversos tem sido observado com AINEs.

 

Tratamento

 

A base daterapia é a descontinuação dos AINEs. Medidas adicionais incluem a correção doprocesso subjacente que predispõe à nefrotoxicidade. Em alguns casos, soluçãosalina intravenosa restaura o estado volêmico e facilita a recuperação renal empacientes com depleção do volume intravascular. Diuréticos intravenosos emaltas doses podem ser necessários em pacientes com IC complicada por LRA e empacientes nefróticos com anasarca. Hipercalemia com risco de morte leva ao usode gluconato de cálcio intravenoso, insulina intravenosa mais glicose,nebulização em alta dose, ß2-agonistas para transferir K para as células eterapia diurética. É incomum que a acidose metabólica seja grave o suficientepara justificar a administração de bicarbonato de sódio.

 

Prognóstico

 

Adescontinuação do AINE é frequentemente associada com recuperação da funçãorenal. Em geral, a função renal retorna aos níveis anteriores em 2 a 5 dias.Contudo, a recuperação pode ser retardada em pacientes com descompensação de doençacardíaca, cirrose e DRC subjacente. É extremamente incomum que um paciente nãorecupere a função renal.

 

Bibliografia

 

1-PerazellaMA. NSAIDs and the Kidney: Acute Kidney Injuryin Current Diagnosis and Treatment in nephrology ad Hypertension 2018.

2-Whelton A. Nephrotoxicity of nonsteroidalanti-inflammatory drugs: physiologic foundations and clinical implications. AmJ Med 1999; 106:13S.

3-Perazella MA. Renal vulnerability to drug toxicity. Clin J Am Soc Nephrol 2009;4:1275.

Conecte-se

Feed

Sobre o MedicinaNET

O MedicinaNET é o maior portal médico em português. Reúne recursos indispensáveis e conteúdos de ponta contextualizados à realidade brasileira, sendo a melhor ferramenta de consulta para tomada de decisões rápidas e eficazes.

Medicinanet Informações de Medicina S/A

Cnpj: 11.012.848/0001-57

info@medicinanet.com.br


MedicinaNET - Todos os direitos reservados.

Termos de Uso do Portal

×
×

Em função da pandemia do Coronavírus informamos que não estaremos prestando atendimento telefônico temporariamente. Permanecemos com suporte aos nossos inscritos através do e-mail info@medicinanet.com.br.