Autor:
Rodrigo Antonio Brandão Neto
Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP
Última revisão: 07/08/2017
Comentários de assinantes: 0
A Eritromelalgia é uma alteração vascular periférica que se manifesta como uma sensação dolorosa, em geral queimação em pés e mãos, acompanhada de eritema, palidez ou cianose. Edema e aumento da temperatura local também podem acompanhar o seu aparecimento, quando em crises. Pode se tratar de um fenômeno isolado, mas costuma ocorrer como uma manifestação de outras doenças, em particular a policitemia vera, ocorrendo em cerca de 29% dos pacientes.
A sua primeira descrição foi em 1878 por Mitchell que descreveu a sua tríade característica: hipertermia paroxística de extremidades com eritema, dor em queimação intensa e aumento da temperatura cutânea.
A incidência e prevalência de Eritromelalgia nos Estados Unidos não são bem determinadas, um estudo, entretanto, demonstrou na população norueguesa uma incidência de 0.25/100.000 e uma prevalência de 2/100.000. Outros estudos sugerem uma incidência de 4,7 casos a cada 100.000 pessoas ao ano, as mulheres são mais afetadas do que os homens em uma proporção 3:1.
A Eritromelalgia pode ser primária ou secundária. Os casos primários podem ter início espontâneo em qualquer idade e podem ser subdivididos em familiar (herança autossômica dominante), esporádicos e em início juvenil (antes dos 20 anos, frequentemente antes dos 10 anos) ou adulto. A Eritromelalgia familiar de início juvenil está associada a mutações no gene SCN9A que codifica um canal de sódio voltagem-dependente.
A Eritromelalgia secundária, por sua vez, tem sido associada a muitas patologias, embora sua associação clássica seja com a policitemia vera, mas também existem descrições com trombocitose, outras policitemias, neuropatias e doenças autoimunes. As suas principais causas são especificadas na Tabela 1.
Tabela 1: Causas de Eritromelalgia secundária
Doenças hematológicas Policitemia, trombocitose Leucemia, leucemia mieloide crônica em particular Esferocitose hereditária Anemia perniciosa Púrpura trombocitopênica trombótica
Alterações cardiovasculares Aterosclerose Hipertensão Insuficiência venosa
Embólica Ateroembolismo por cristais de colesterol
Distúrbios metabólicos Diabetes mellitus Hipercolesterolemia Gota
Alterações de tecidos conectivos Artrite reumatoide Lúpus eritematoso sistêmico Doença mista do tecido conjuntivo Síndrome de Sjogren Vasculite
Causas infecciosas SIDA Infecções bacterianas recorrentes Infecções virais Sífilis
Distúrbios osteomusculares Lombalgia com ciatalgia Síndrome do túnel do carpo, peritendinite Trauma ou cirurgia em mãos Trauma de pescoço ou em outras regiões
Distúrbios neurológicos Neuropatias Esclerose múltipla Doença medulares
Induzida por drogas Iodeto de injeção de contraste Vacinas: gripe, hepatite Medicações orais: nifedipina, felodipina, nicardipina, bromocriptina, norefedrina, pergolida, ticlopidina
Outras condições Carcinoma: abdominal, cólon, timoma, astrocitoma Frostbite Transtorno de conversão Envenenamento por mercúrio |
Ao contrário do fenômeno de Raynaud, os pacientes com Eritromelalgia primária normalmente não desenvolvem doenças autoimunes em anos subsequentes. Ainda assim, seu curso é tipicamente crônico e está associado à diminuição da qualidade de vida e morbidade considerável.
O início da Eritromelalgia pode ser gradual com alguns casos em que permanece leve e inalterado por décadas; por outro lado, pode ter início agudo e se tornar incapacitante em semanas.
Existem pelo menos dez mutações conhecidas no gene SCN9A. Este canal é expresso em nociceptores na raiz dorsal de gânglios nervosos e no sistema simpático. Estas mutações causam um maior tempo de abertura nos canais de sódio dependentes de voltagem, aumentando os potenciais de ação local e levando à vasoconstrição.
A fisiopatologia da Eritromelalgia secundária é dependente das causas de base de seu aparecimento, mas apresentam correlação com microtrombose vascular na maioria dos casos.
A Eritromelalgia é caracterizada por dor em queimação intensa, eritema marcado e temperatura da pele aumentada. A maioria dos pacientes experimenta Eritromelalgia nos pés, mas as mãos podem ser os locais primários. Outro local frequentemente acometido são as orelhas. O estudo de Davis e colaboradores revelou que os pés são acometidos em mais de 88% dos casos.
O acometimento tipicamente é bilateral, mas pode ser unilateral, especialmente em casos secundários. Em casos graves, pode disseminar para os membros inferiores e superiores em maior extensão ou para a face e orelhas, tipicamente de forma bilateral.
Em casos leves, os sintomas só aparecem em situações específicas como exposição ao calor. Os sintomas podem ser aliviados com exposição ao frio e elevação dos membros.
A sensação de queimação ocorre normalmente no final do dia e continua até a noite, prejudicando o sono. Em casos graves, o paciente pode ter que manter os membros inferiores elevados a maior parte do dia para obter alívio. Alguns pacientes queixam-se de parestesias e neuropatia sensitiva dolorosa pode ocorrer.
Na Eritromelalgia primária os ataques costumam durar horas ou serem intermitentes e repetidos por várias vezes ao dia. Na Eritromelalgia secundária é mais frequentemente correlacionada com exacerbações da doença de base. Os ataques podem ser precipitados pelo consumo de cafeína, descongestionantes e álcool.
Uma das manifestações características é a intolerância ao calor e alívio com o frio. A exposição ao calor, como já pontuado, pode iniciar o quadro de queimação ou aumentar a sua gravidade. Pacientes descrevem que seus sintomas iniciam em determinadas temperaturas, com variação interindividual considerável.
O alívio da dor com imersão em água gelada é tão comum que é considerado por alguns autores como patognomônico. Aparelhos de ar-condicionado ou uso de ventiladores comuns nas áreas afetadas também levam ao alívio. Em casos graves, o excesso de imersão em água gelada pode levar a complicações como maceração da pele, úlceras cutâneas, infecções, necrose e amputações.
A Eritromelalgia pode afetar muito o funcionamento normal e a qualidade de vida dos pacientes. Muitas vezes é necessário evitar temperaturas elevadas, mudar para climas mais amenos e limitar as atividades a locais frescos ou com ar-condicionado. Muitos pacientes não podem usar meias ou sapatos fechados, mesmo no inverno. Em casos graves, a sensação de queimação se torna contínua e pouco tolerável, o que atrapalha o trabalho e o funcionamento social.
Algumas semelhanças com o fenômeno de Raynaud existem, como o desconforto inicial que ocorre com o aquecimento das mãos e a hiperemia reativa, mas podem ser diferenciados sem maiores problemas. A coexistência da Eritromelalgia com fenômeno de Raynaud é frequentemente descrita pela literatura.
Semelhante ao que ocorre no fenômeno de Raynaud, a vasoconstrição precede a hiperemia reativa e existe considerável variação na temperatura externa do membro durante o dia.
Na maioria dos casos, a perfusão periférica é adequada, mas pode ocorrer hipóxia local, mesmo com a hiperemia associada.
Não existem testes confirmatórios apropriados para o diagnóstico e é necessária uma boa história para confirmação. A imersão de pés ou mãos em água quente pode reproduzir os sintomas, facilitando o diagnóstico.
A Eritromelalgia primária deve ser diferenciada da secundária. Em todos os casos novos, as causas subjacentes devem ser procuradas com investigação de policitemia ou trombocitose.
Inclui síndromes de dor regional complexa como a distrofia simpático-reflexa, que também está associada ao aumento de temperatura, eritema e dor em queimação. Deve-se lembrar de que a maioria dos casos da distrofia simpático-reflexa é secundária a trauma, embora existam descrições de aparecimento espontâneo.
As parestesias dolorosas da Eritromelalgia podem se confundir com neuropatias porque, por vezes, a dor precede o eritema por meses, o que torna o diagnóstico difícil.
Os sintomas da menopausa e reações a medicamentos podem produzir rubor ou sensações de calor intenso, mas não causam a hiperemia específica e a dor localizada e profunda da Eritromelalgia.
Embora haja o esfriamento mecânico dos membros afetados para aliviar os sintomas, não se deve, em nenhuma hipótese, mergulhar os membros em água fria, pois pode piorar a vasoconstrição local, podendo causar ulcerações locais. Evitar fatores precipitantes como calor, mudanças bruscas de temperatura, exercício extenuante, álcool e comida condimentada auxilia no controle dos sintomas.
Terapias com biofeedback, relaxamento e hipnose são relatadas com benefícios tanto para casos primários como secundários, mas a evidência se baseia apenas em relatos de casos.
O tratamento tópico padrão com creme de capsaicina pode diminuir a dor, mas pode causar piora paradoxal, portanto, devem ser usados com cuidado.
As medicações orais são as mais utilizadas para o tratamento e são relatados benefícios com propranolol (10 mg três vezes ao dia), clonazepam, ciproheptadina, metisergida, piroxicam, mas, na maioria dos casos, este benefício é limitado.
O uso de aspirina é extremamente benéfico para pacientes com Eritromelalgia secundária a policitemias, trombocitoses e discrasias sanguíneas; infelizmente este benefício é pequeno em pacientes com a forma primária da doença.
Os inibidores da recaptação da serotonina, como a venlafaxina (18,75-75 mg duas vezes por dia) e a sertralina (25 a 200 mg / dia) foram benéficos em alguns estudos, mas remissões completas não foram alcançadas. Melhora também tem sido relatada com paroxetina, fluoxetina e tramadol. Alguns pacientes são bastante sensíveis a estes medicamentos e necessitam de doses muito baixas inicialmente.
Os antidepressivos tricíclicos têm relatos de casos com benefícios, mas não devem ser usados de rotina nestes pacientes.
O uso da gabapentina (400-3600 mg / dia) reduz a dor, mas não existem descrições de remissão da doença com a medicação.
O uso de bloqueadores dos canais de cálcio pode ser benéfico, pois diminui a vasoconstrição periférica, mas, paradoxalmente, existem descrições de aparecimento de Eritromelalgia com seu uso. O uso de misoprostol pode melhorar o fluxo sanguíneo, mas remissões são raras.
O uso de combinações destas medicações pode ter benefício adicional, mas existe pouca evidência na literatura sobre este uso.
Existem ainda descrições de uso de lidocaína endovenosa e, posteriormente, mexiletina oral. Deve-se considerar os efeitos adversos potenciais destas medicações. Existem também descrições com uso de prostaglandinas endovenosas, mas o benefício também parece limitado.
A realização de bloqueios simpáticos e epidurais pode ter benefício, assim como simpatectomia, mas também existe pouca experiência documentada com estas terapias.
Assim, a aspirina, em casos secundários, a policitemia e o uso de gabapentina e venlaflaxina parecem ser as alternativas de melhor resultado nestes pacientes.
1-Cohen J. Erytromelalgia: New teories and therapies. Journal of the American Academy of Dermatology Volume 43 • Number 5 • November 2000.
2-Albuquerque LG et al. Eritromelalgia primária - relato de caso. An. Bras. Dermatol. vol.86 no.1 Rio de Janeiro Jan./Feb. 2011
O MedicinaNET é o maior portal médico em português. Reúne recursos indispensáveis e conteúdos de ponta contextualizados à realidade brasileira, sendo a melhor ferramenta de consulta para tomada de decisões rápidas e eficazes.
Medicinanet Informações de Medicina S/A Cnpj: 11.012.848/0001-57 | info@medicinanet.com.br |
MedicinaNET - Todos os direitos reservados.
Em função da pandemia do Coronavírus informamos que não estaremos prestando atendimento telefônico temporariamente. Permanecemos com suporte aos nossos inscritos através do e-mail info@medicinanet.com.br.