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Fasceíte necrotizante

Autor:

Rodrigo Antonio Brandão Neto

Médico Assistente da Disciplina de Emergências Clínicas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Última revisão: 15/08/2014

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As infecções de pele podem ser classificadas em três categorias, dependendo de sua extensão e profundidade:

-Infecções de derme e hipoderme: são as celulites e a erisipela bacterianas simples. Estas infecções envolvem a hipoderme até uma profundidade variável, sem necrose ou dano a tecidos musculares.

-Infecções de derme e hipoderme com necrose: são as infecções cutâneas como as celulites, mas com necrose dos tecidos conjuntivos e adiposos,  sem lesões musculares profundas.

-Fasceíte necrotizante: infecção muscular com necrose, que envolve e se estende além da fáscia periférica profunda.

 

As celulites e erisipelas apresentam resposta satisfatória a  tratamento com antibioticoterapia isoladamente, mas as infecções com necrose necessitam de intervenções cirúrgicas como debridamento nas celulites com necrose de pele e intervenções mais extensas como as necessárias na Fasceíte necrotizante.   Discutiremos a seguir o diagnóstico e o manejo da Fasceíte necrotizante.

 

Definição e epidemiologia

Fasceíte necrotizante é uma infecção bacteriana rapidamente progressiva e com potencial letal elevado, a infecção é rara e não existem dados confiáveis na literatura brasileira para definir sua incidência, mesmo a literatura norte-Americana e europeia têm dados pouco confiáveis, mas acredita-se que ocorram cerca de 1000 casos/ano nos EUA e 500 casos/ano no Reino Unido.

A infecção usualmente se inicia na fáscia superficial e posteriormente os tecidos moles profundos são envolvidos, o diagnóstico é difícil e o limiar para suspeição deve ser baixo, pois vários casos têm diagnóstico apenas em necrópsia. Os pacientes não tratados evoluem com sepse grave e refratária a antibioticoterapia, mesmo com o tratamento cirúrgico a mortalidade se situa entre 20 a 40%.

Diversos microorganismos estão associados com o quadro, mas os estreptococos são os mais comumente implicados, em particular o Streptococos pyogens e, menos comumente, os estreptococos do tipo B, outros agentes infecciosos relevantes incluem o Stafilococos aureus e agentes anaeróbios. Em algumas séries, a flora microbiana chega a ser encontrada em 40% dos casos. Quando a infecção é causada por uma população mista de agentes anaeróbios e envolve região perineal, pode ocorrer a chamada Síndrome de Fournier em que ocorre quadro de gangrena escrotal. Quando ocorre envolvimento por Clostridium pode ocorrer formação de gás em tecido muscular, caracterizando a chamada gangrena gasosa comum, a chamada mionecrose clostridial - quadro mais raro que a Fasceíte necrotizante.

Do ponto de vista microbiológico, as infecções podem ser divididas em tipo I, na qual pelo menos uma espécie anaeróbia é isolada, e tipo II, em que não são encontrados anaeróbios.

 

Fisiopatologia

O envolvimento inicial é limitado a fáscia superficial, ocorre posteriormente rápida extensão secundária a trombose de pequenos vasos sanguíneos da fáscia e o processo necrótico se alastra para as fáscias profundas. O tratamento antibacteriano é prejudicado, pois os tecidos moles e músculos servem como barreira à penetração dos antimicrobianos. O baixo suprimento sanguíneo local facilita o alastramento do quadro infeccioso.

A Fasceíte necrotizante pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas é rara em crianças, um estudo demonstrou que a média  de idade nestes pacientes é entre 40 e 50 anos, a condição está associada com internação hospitalar prolongada, procedimentos cirúrgicos, história de trauma, uso de drogas injetáveis, varicela em crianças, internação em UTI. O risco aumenta  quando se tem comorbidades associadas, Em adultos, a ausência de comorbidade ou trauma ocorre em mais de 25% dos casos.

 

Manifestações clínicas e diagnóstico

As manifestações não são específicas, de forma que o diagnóstico pode ser difícil. Na maioria dos casos, a manifestação inicial é de alterações cutâneas compatíveis com infecção local ou febre, usualmente  associada com dor muscular. O paciente pode apresentar curso rápido e fulminante com desenvolvimento de choque séptico em horas durante dias, mas em geral a evolução é consideravelmente mais lenta particularmente em pacientes idosos ou com diabetes. As alterações cutâneas podem mimetizar hematomas, celulites, erisipelas, artrite séptica ou trombose venosa. A descrição clássica de "bolhas hemorrágicas", creptação e necrose tecidual não é frequente e só ocorre com pelo menos cinco dias de infecção estabelecida. Linfangite e linfadenite satélite são frequentes, mas podem não aparecer. Edema do membro envolvido ocorre em cerca de 80% dos pacientes, e eritema e lesões cutâneas em cerca de metade dos casos.

O paciente pode manter-se em estado geral relativamente bom até fases avançadas da doença e muitas vezes apresenta apenas dor, sem febre e outras alterações sistêmicas. A dor costuma ser intensa e desproporcional aos sinais flogísticos encontrados. Com a evolução do quadro infeccioso pode ocorrer perda da inervação local com alterações de sensibilidade, hipersensibilidade local é um achado sugestivo, porém inespecífico. Os locais mais comumente acometidos são a parede abdominal, as extremidades, a pelve e a parede torácica, mas outras regiões podem ser acometidas.

 

O diagnóstico de Fasceíte necrotizante depende dos seguintes critérios:

-Achado de biópsia;

-Achado intraoperatório de fáscias com alteração de cor e necrosada com fácil ruptura de tecidos com sonda;

-Resposta inadequada de tratamento antibiótico para infecções cutâneas;

 

Exames complementares

Os exames complementares não são diagnósticos na Fasceíte necrotizante, mas marcadores inflamatórios costumam estar alterados e a proteína C reativa costuma estar significativamente elevada mesmo nos primeiros dias do quadro, leucocitose costuma ocorrer e hemoculturas devem ser colhidas em todos os pacientes. A presença de hiponatremia em pacientes com quadro séptico é sugestiva de infecção de tecidos moles e pode ser uma pista diagnóstica.

A radiografia simples pode mostrar espessamento e hiperdensidade relativa dos tecidos moles, e gás é raro em casos visíveis, mas é um exame que costuma pouco auxiliar no diagnóstico.

A tomografia computadorizada (TC) mostra edema das fáscias e gás entre os tecidos musculares, a sensibilidade do espessamento assimétrico das fáscias ocorre em 80% dos casos, a presença de gás em tecidos musculares aparece em pouco mais de 50%. O exame é sensível, com uma série de casos com sensibilidade próxima a 100% dos casos, mas os achados são pouco específicos, os pacientes podem ainda ter insuficiência renal como complicação do quadro infeccioso o que contraindica o uso de contraste e prejudica a performance do exame.

A ressonância magnética (IRM) é um método também sensível e que documenta com maiores pormenores as lesões dos tecidos moles e permite avaliar a sua distribuição melhor que a TC, porém tem menos sensibilidade para detectar gás nos tecidos musculares e fáscias. A principal anormalidade encontrada nestes pacientes é o espessamento das fáscias profundas, com hipersinal em T2 . As lesões podem ser diferenciadas das encontradas na piomiosite pelo predomínio das lesões em fáscias comparadas às lesões musculares predominantes encontradas na piomiosite. Podem ainda ser encontrados abscessos e bolhas de gás. A sensibilidade da IRM em pequenas séries chegou a 100%, o exame entretanto é considerado por alguns como hipersensível e seus achados nem sempre podem diferenciar a Fasceíte necrotizante de outras infecções como a celulite necrotizante.

A ultrassonografia é um exame de menor utilidade nestes pacientes, mas eventualmente pode ser diagnóstica, embora seja necessário  para sua realização  treinamento altamente especializado. O benefício da ultrassonografia parece ser maior em pacientes da faixa etária pediátrica, pois os tecidos moles são menos espessos e permitem uma avaliação mais precisa dos planos profundos.

O esteio diagnóstico continua sendo, mesmo nos dias atuais, a exploração cirúrgica. A decisão de exploração cirúrgica dos tecidos moles, deve idealmente ser tomada precocemente e a extensão da incisão deve ser de quantidade de pele suficiente que permita a exploração de tecidos moles. Se durante a exploração é encontrada fáscia necrótica e liquefação de tecidos, a ressecção deve ser continuada até que se atinjam novamente tecidos saudáveis.

 

Tratamento

O debridamento cirúrgico deve ser precoce. Em pacientes sépticos, a intervenção cirúrgica não leva à melhora imediata, mas a estabilização do quadro é esperada após algumas horas, embora seja  cogitada ainda a permanência do paciente por dias em UTI.

O uso de antibioticoterapia de amplo espectro é indicado, e deve ser adaptada aos resultados de cultura, a combinação de carbapenêmico ou outro beta-lactâmico com betalactamase e clindamicina são uma boa opção. A clindamicina tem um papel adicional por seu papel bacteriostático e seu uso associado à inibição de antígenos pelos estreptocos com menor evolução para choque. Em pacientes graves alguns autores indicam também cobertura para estafilococos meticilino-resistentes com vancomicina, esta cobertura antibiótica pode ser retirada conforme resultados de cultura. Como a infecção é principalmente por estreptococos, muitas vezes estes são suscetíveis à penicilina cristalina ou oxacilina, que poderão substituir os antibióticos de maior espectro comumente utilizados.

A gamaglobulina teve efeito benéfico em um estudo pequeno e pode ser utilizada – a dose recomendada é de um grama por Kg no primeiro dia e 0,5 grama por Kg no segundo e terceiro dia.

A utilidade da terapia hiperbárica nestes pacientes é discutível. Uma revisão de 54 pacientes com Fasceíte necrotizante de tronco demonstrou que nos 30 pacientes tratados com câmara hiperbárica houve nove mortes, ou seja, 30% da amostra, e dez mortes ocorreram nos 24 pacientes com tratamento convencional, ou seja, 42% da amostra. Esta diferença não é estatisticamente significante e um maior número de intervenções cirúrgicas teve  de ser realizada no grupo submetido à terapia hiperbárica, não houve diferenças quanto a tempo de internação hospitalar, permanência em unidade de terapia intensiva e duração da antibioticoterapia entre os dois grupos (21). Em outro estudo observacional com 29 pacientes, com 12 recebendo apenas antibioticoterapia e realizando debridamento, e 19 com tratamento convencional e terapia hiperbárica, a mortalidade foi de 66% na terapia convencional e 23% no grupo com terapia hiperbárica. Esta diferença é significativa estatisticamente e houve diminuição de aproximadamente  duas intervenções cirúrgicas com debridamento. A cada paciente no grupo de terapia hiperbárica, estes resultados não podem ser atribuídos a diferenças de gravidade entre os dois grupos, pois o grupo submetido à terapia hiperbárica era inicialmente mais grave (22). Os autores deste estudo sugerem que terapia com câmara hiperbárica deveria ser indicada em todos os pacientes com Fasceíte necrotizante, porém esta ainda é uma indicação controversa.

 

Referências

1-Sultan H et al. Necrotizing fasciitis.  BMJ 2012;345:e4274

2-Malguem J et al. Necrotizing fasciitis: Contributions and limitations of diagnostic imaging. Joint Bone Spines 2012.

3-Stevens Dl, Baddour LM. Necrotizing soft tissue infections. Disponível em WWW.uptodate.com 2014 acessado em 30 de janeiro de 2014.

Comentários

Por: Raphael Moura Pereira de Brito em 11/08/2014 às 00:48:35

"Resumo que grava fácil e entra no cartel de dx diferencias."

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